Houve um tempo em Fortaleza, em que as pessoas colocavam as cadeiras nas calçadas e contavam histórias umas às outras. Os mais velhos contavam e os mais jovens ouviam extasiados. Era um tempo em que a televisão ainda não havia alienado nossos ouvidos e nossos olhos.
Foi partindo desse referencial que Raymundo Netto escreveu seu livro Um conto no passado: Cadeiras na Calçada. Escreveu e inscreveu na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, sendo então ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação e Divulgação de Obra Inédita na categoria Romance.
Publicado em 2004 pelas Edições Livro Técnico, na ficha catalográfica está escrito ´conto cearense´. Essa falta de uma definição do gênero pode até ser proveitosa, pois cabe ao leitor rotular do que quiser. Eu chamaria apenas de ´Narrativas´. O importante nesse livro é a viagem que o autor faz por uma Fortaleza que não existe mais, começando por um tempo em que a Barão do Rio Branco ainda se chamava Rua Formosa e em que as fachadas das casas apresentavam frontões, cimalhas, ´jacarés´ na platibanda e arabescos que o tempo se encarregou de devastar pelas mãos destruidoras de seus moradores.
Raymundo Netto, no entanto, reconstrói esse contexto devastado. Restaura a antiga paisagem, usando seus ´chinelos de cordovão´, como fazia aquele esperto novo rico personagem machadiano. Depois acende um candeeiro para verificar as rótulas das janelas, as taramelas das portas, os punhos das redes, feitas com algodão do Seridó. Vai em seguida à Pensão de D. Amélia Campos, sem esquecer uma passada no Café Java para um dedo de prosa com Antônio Sales e Mané Coco.
Isso torna-se possível quando o jovem escritor de posse de seu candeeiro de porcelana com manga de vidro, começa a clarear um passado que teima em se esconder na penumbra do tempo. Daí ele se dirige de fraque e com o cabelo besuntado de brilhantina para um baile na Itapuca Villa, na Guilherme Rocha, um pouco antes do aristocrático Jacarecanga, onde o morador se distinguia pelo tamanho do seu bangalô ou pelo número de compartimentos de sua mansão. É então que todo um clima da belle époque fortalezense é criado pelo autor ao som da música ´Ontem ao luar´, tomando champagne, usando pincenê e transitando na rua de cabriolet.
Raymundo Netto consegue estabelecer um diálogo da ficção com a realidade. Para que o real se imponha sobre o ficcional ele acrescentou à sua narrativa, imagens fotográficas da Fortaleza histórica. Ícones da arquitetura fortalezense ilustram quase todas as páginas do livro e conferem ao leitor a possibilidade de, mesmo enveredando pelo enredo fictício, não desgrudar do nosso patrimônio cultural. É por isso que os bancos da Praça do Ferreira recebem os nomes que um dia ostentaram para o público e entraram para o folclore: ´Banco da Opinião Pública´, ´Banco da Democracia´, ´Banco dos Comunistas´ e o ´Banco que não teve nome´.
Nessa mesma Praça do Ferreira ainda se mantém de pé, abrigando uma agência da Caixa Econômica, o Palacete Ceará. Ali, no andar térreo, funcionava a Confeitaria Rotisserie e na parte superior o animado Clube Iracema. Isso tudo no tempo em que motorista era chofer, a Major Facundo era Rua do Palma, o Majestic era o cinema chique e Ponce de Leon era o Rei Momo do carnaval. Todos esses acontecimentos ocorrendo quando o Estoril ainda era Vila Morena, a Segunda Guerra nem havia começado, a morte do bode Ioiô causava consternação na cidade e Manezinho do Bispo, semianalfabeto, lançava livros de moral e humor.
Ao lado do caminho ficcional do livro, trafega uma via histórica e real da cidade de Fortaleza. O hospital principal é a Santa Casa de Misericórdia, fundada em 1861. O Passeio Público vai dando espaço para a Praça do Ferreira. A estátua de Nossa Senhora da Paz se ergue defronte à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro, e não em frente da Igreja da Paz, na Aldeota. As praças são iluminadas por combustores de gás carbônico que em dia de lua cheia não eram acesos, por economia. E essa penumbra que se instalava, vai se instalando à proporção que mergulhamos no passado.
Nesse passado não tão remoto abrem-se as cortinas da década de 1930 e ocorrem várias mudanças sociais a partir da Revolução que depôs o Presidente da República, no caso, Washington Luiz. Aqui no Ceará terminava o mandato de Matos Peixoto que à frente do governo do Estado, destacava-se pelos bailes que promovia no Palácio da Luz e no Clube Iracema. O seu grande destaque era o fato de ser exímio dançarino.
É no início dessa década, mais precisamente em 1931, que aos noventa e cinco anos, falece Juvenal Galeno que deixa sua casa como ponto de encontro até hoje de intelectuais e artistas, na rua General Sampaio, 1128. E vem a descrição do poeta ´sentado numa rede, de gorro azul na cabeça e provando seu rapé, enquanto ditava para Henriqueta, sua filha, alguns versos´. No ano seguinte, 1932, perdíamos Rodolfo Teófilo, o benemérito da pátria. Essas personalidades e os fatos históricos vão sendo tratados ao longo da narrativa.
Finalmente chega-se ao final do livro como quem acaba de fazer um passeio pela Fortaleza dos tempos idos. Pensa-se tratar-se, o autor, de um velho fortalezense revivendo seu passado. Raymundo Netto, no entanto, ainda não chegou aos quarenta anos. É, todavia, amante desta cidade. E sofre com a sua descaracterização. Daí justifica porque escreveu o livro. ´Escrevi porque me dói no coração o abandono e a ingratidão mesquinha por parte dos filhos dessa cidade que não aprenderam a amá-la... É a nossa Fortaleza como uma mãe esquecida´.
Fonte : Caderno 3 – 24 de julho de 2007 - Diário do Nordeste
Foi partindo desse referencial que Raymundo Netto escreveu seu livro Um conto no passado: Cadeiras na Calçada. Escreveu e inscreveu na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, sendo então ganhador do Prêmio de Incentivo à Publicação e Divulgação de Obra Inédita na categoria Romance.
Publicado em 2004 pelas Edições Livro Técnico, na ficha catalográfica está escrito ´conto cearense´. Essa falta de uma definição do gênero pode até ser proveitosa, pois cabe ao leitor rotular do que quiser. Eu chamaria apenas de ´Narrativas´. O importante nesse livro é a viagem que o autor faz por uma Fortaleza que não existe mais, começando por um tempo em que a Barão do Rio Branco ainda se chamava Rua Formosa e em que as fachadas das casas apresentavam frontões, cimalhas, ´jacarés´ na platibanda e arabescos que o tempo se encarregou de devastar pelas mãos destruidoras de seus moradores.
Raymundo Netto, no entanto, reconstrói esse contexto devastado. Restaura a antiga paisagem, usando seus ´chinelos de cordovão´, como fazia aquele esperto novo rico personagem machadiano. Depois acende um candeeiro para verificar as rótulas das janelas, as taramelas das portas, os punhos das redes, feitas com algodão do Seridó. Vai em seguida à Pensão de D. Amélia Campos, sem esquecer uma passada no Café Java para um dedo de prosa com Antônio Sales e Mané Coco.
Isso torna-se possível quando o jovem escritor de posse de seu candeeiro de porcelana com manga de vidro, começa a clarear um passado que teima em se esconder na penumbra do tempo. Daí ele se dirige de fraque e com o cabelo besuntado de brilhantina para um baile na Itapuca Villa, na Guilherme Rocha, um pouco antes do aristocrático Jacarecanga, onde o morador se distinguia pelo tamanho do seu bangalô ou pelo número de compartimentos de sua mansão. É então que todo um clima da belle époque fortalezense é criado pelo autor ao som da música ´Ontem ao luar´, tomando champagne, usando pincenê e transitando na rua de cabriolet.
Raymundo Netto consegue estabelecer um diálogo da ficção com a realidade. Para que o real se imponha sobre o ficcional ele acrescentou à sua narrativa, imagens fotográficas da Fortaleza histórica. Ícones da arquitetura fortalezense ilustram quase todas as páginas do livro e conferem ao leitor a possibilidade de, mesmo enveredando pelo enredo fictício, não desgrudar do nosso patrimônio cultural. É por isso que os bancos da Praça do Ferreira recebem os nomes que um dia ostentaram para o público e entraram para o folclore: ´Banco da Opinião Pública´, ´Banco da Democracia´, ´Banco dos Comunistas´ e o ´Banco que não teve nome´.
Nessa mesma Praça do Ferreira ainda se mantém de pé, abrigando uma agência da Caixa Econômica, o Palacete Ceará. Ali, no andar térreo, funcionava a Confeitaria Rotisserie e na parte superior o animado Clube Iracema. Isso tudo no tempo em que motorista era chofer, a Major Facundo era Rua do Palma, o Majestic era o cinema chique e Ponce de Leon era o Rei Momo do carnaval. Todos esses acontecimentos ocorrendo quando o Estoril ainda era Vila Morena, a Segunda Guerra nem havia começado, a morte do bode Ioiô causava consternação na cidade e Manezinho do Bispo, semianalfabeto, lançava livros de moral e humor.
Ao lado do caminho ficcional do livro, trafega uma via histórica e real da cidade de Fortaleza. O hospital principal é a Santa Casa de Misericórdia, fundada em 1861. O Passeio Público vai dando espaço para a Praça do Ferreira. A estátua de Nossa Senhora da Paz se ergue defronte à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Centro, e não em frente da Igreja da Paz, na Aldeota. As praças são iluminadas por combustores de gás carbônico que em dia de lua cheia não eram acesos, por economia. E essa penumbra que se instalava, vai se instalando à proporção que mergulhamos no passado.
Nesse passado não tão remoto abrem-se as cortinas da década de 1930 e ocorrem várias mudanças sociais a partir da Revolução que depôs o Presidente da República, no caso, Washington Luiz. Aqui no Ceará terminava o mandato de Matos Peixoto que à frente do governo do Estado, destacava-se pelos bailes que promovia no Palácio da Luz e no Clube Iracema. O seu grande destaque era o fato de ser exímio dançarino.
É no início dessa década, mais precisamente em 1931, que aos noventa e cinco anos, falece Juvenal Galeno que deixa sua casa como ponto de encontro até hoje de intelectuais e artistas, na rua General Sampaio, 1128. E vem a descrição do poeta ´sentado numa rede, de gorro azul na cabeça e provando seu rapé, enquanto ditava para Henriqueta, sua filha, alguns versos´. No ano seguinte, 1932, perdíamos Rodolfo Teófilo, o benemérito da pátria. Essas personalidades e os fatos históricos vão sendo tratados ao longo da narrativa.
Finalmente chega-se ao final do livro como quem acaba de fazer um passeio pela Fortaleza dos tempos idos. Pensa-se tratar-se, o autor, de um velho fortalezense revivendo seu passado. Raymundo Netto, no entanto, ainda não chegou aos quarenta anos. É, todavia, amante desta cidade. E sofre com a sua descaracterização. Daí justifica porque escreveu o livro. ´Escrevi porque me dói no coração o abandono e a ingratidão mesquinha por parte dos filhos dessa cidade que não aprenderam a amá-la... É a nossa Fortaleza como uma mãe esquecida´.
Fonte : Caderno 3 – 24 de julho de 2007 - Diário do Nordeste
Oi amiga,
ResponderExcluirteu blog ta mto bom,
to morrendo de saudades!
BJS!!!!!!
Crisssssssssssssssss saudades amiga!!!
ResponderExcluirFiquei super feliz com o nascimento do
seu bebê, que por sinal é uma coisinha de fofo, dar
vontade de apertar todinho rsrs
Que bom q vc gostou do blog, eu sempre tive vontade
de fazer algo sobre a história de Fortaleza...amo fotos,
antigas então, nem se fala, então juntei o últil ao agradável
e assim surgiu esse blog q é o meu xodô!!!
Apareça mais vezes
Beijossssssss
Tanta e tanta gente amando Fortaleza e cada dia algo tomba....literalmente! O imaterial, como as conversas nas calçadas,já era!!!!
ResponderExcluirDe 1945 a 1952 brincquei muito de roda, enquanto mamãe conversava com as vizinhas...a calçada era o PALCO IDEAL...
Foi bom, enquanto durou!
Agora você nos traz de volta!
Recordar é mesmo "VIVER DUAS VEZES",ou mais!!!
Obrigada, Leila!
Lúcia Paiva
Minha mãe conta que quando era criança, meu avô(seu pai) quando ia anoitecendo, os meninos vinham todos para a calçada de frente a casa do vovô para ouvir as inúmeras histórias que ele gostava de contar, na época em que televisão não existia para todos, meu avô era quem distraia as crianças da rua. Ele amava contar lendas e algumas faziam os meninos ficarem temerosos ao ir dormir rsrs mas na noite seguinte, lá estavam todos novamente para ouvir os contos do seu Expedito(meu amado e saudoso avô). :)
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