Ao fazer o post anterior sobre a Praia Formosa, eu lembrei da Praia do Peixe e fui pesquisar na internet e achei um vasto material que vou compartilhar com vocês. :)
Ao lado - Fotografia colorida à mão
No desejo de descobrir diferentes ambientes para o desenvolvimento de novos hábitos e prazeres diversos, no início do século XX surge o interesse pelo mar por parte da elite. É nesse contexto que na década de 1920 passa a existir a Praia do Peixe. Para a compreensão do surgimento e evolução do bairro, se faz necessário entender as fases vivenciadas pelo objeto através dos fatos históricos que marcaram a história do lugar.
As antigas casinhas de pescadores na Praia do Peixe - Nirez
De Praia do Peixe à Praia de Iracema
Embalagem do Sabonete Iracema, do ano de 1928, um dos muitos produtos que então eram designados com o nome da personagem de José de Alencar. Fonte: Arquivo Nirez
Não se pode falar da Praia de Iracema sem voltar ao passado e mencionar a sua imagem incorporada à memória e ao cotidiano da cidade, dividida entre o mar e o sertão, fazendo com que aproximadamente três séculos após a sua colonização viesse a manter vínculos urbanos mais sólidos com o litoral.
Com a chegada do século XIX veio à redescoberta do mar, tendo como fator propulsor um novo direcionamento econômico que sobreveio ao Ceará. O Estado, por sua vez, devido à exigência do mercado internacional, condicionou a economia cearense a trocar o charque pelo algodão e porque não dizer o sertão pela capital. Assim, em um sentido inverso ao percebido até então, Fortaleza, uma cidade litorânea, ao redescobrir o mar, continuava interiorana, ou seja, extremamente ligada ao sertão. A partir desse momento, a elite procurou novos espaços, surgindo um interesse discreto pelo litoral que não passava de um lugar voltado para os desafortunados.
A tranquilidade da Praia de Iracema - Arquivo Nirez
O ciclo do algodão gerou um novo olhar sobre Fortaleza, um olhar, diga-se de passagem, tão atraente que a cidade, passou de uma população estimada em 3.000 habitantes em 1800, para 16.000 habitantes em 1863 e a 21.372 em 1872. Tudo isso pelos incentivos decorrentes do “ouro branco”, o algodão, que determinou a economia do século XIX, bem como elevou Fortaleza de oitava para a posição de segunda cidade do Ceará. As preocupações em melhorar Fortaleza como cidade comercial passou a existir a partir de então, afinal, com a cultura algodoeira unida aos demais produtos de produção do Estado, houve a necessidade de melhores instalações portuárias e foi nessa condição que surgiu na costa Fortalezense, após algumas tentativas frustradas, a construção de um quebra-mar ligando à praia por meio de um viaduto. Com o insucesso do projeto devido ao assoreamento formou-se uma espécie de bacia parada de água chamada pela população de Poço da Draga.
O Poço da Draga em 1932
Finalmente, em 1906, Fortaleza viu surgir na Praia do Peixe um viaduto de construção da Ceará Harbour Corporation Ltda, o Viaduto Moreira da Rocha. Segundo Sousa (1999), a construção surgiu da necessidade de um porto na cidade. É bem verdade que na antiga Praia Formosa, ao lado da Praia do Peixe, já havia o estaleiro, onde funcionava um porto, porém, devido às condições de trabalho extremamente precárias, houve a necessidade de um novo que foi modificado em 1928 pelo Departamento Nacional de Obras Contra Seca (DNOCS), até que 1930 um trecho desabou deixando de ser utilizado. As construções portuárias viabilizaram a existência de um suporte comercial para favorecer as relações portuárias, logo não demorou para surgirem armazéns e Alfândega na área entre a praia e o centro da cidade consolidando a ocupação comercial das proximidades da praia conforme observa-se na foto, ao mostrar o areal da Praia do Peixe em 1910:
Areial da Praia do Peixe 1910
Evidencia-se que com o desenvolvimento comercial e o acúmulo de capital, acentua-se o processo de segregação social e na cidade passam a existir bairros somente para ricos, bairros para remediados, pobres e extremamente pobres.
Postal histórico, 1931, Praia de Iracema - Loja Chrysanthemo
Seguindo essa cronologia, pode-se afirmar que o início do século XX foi marcado, sobretudo, pela valorização do mar. Foi um momento em que a elite, oriunda do sertão, passou a se localizar principalmente no centro de Fortaleza e, ao ser contagiada pelo modismo das práticas marítimas desenvolvidas na Europa, almejou se inteirar com um espaço pouco percebido da cidade. Logo, não demorou muito para a praia dos pescadores se transformar em lugar importante, reduto das práticas marítimas modernas, como o banho de mar e as caminhadas, assim como se consolidar como um dos lugares mais procurados para o veraneio.
Praia de Iracema na década 1940
A interessante denominação de Praia do Peixe, veio da simbologia da venda diária do peixe fresco que era trazido pelos pescadores que dava ao lugar a imagem popular de “pinga, jogo de caipira e facada de pescador”. Quem passava pela praia numa época como aquela via um cenário completamente diferente do que é hoje. Era o mar repleto de jangadas e a praia lotada de casas de palha, residências dos pescadores, como se observa nas primeiras fotos da postagem.
Praia do Peixe, início da década de 1920 com panorâmica ao fundo do
Viaduto Moreira da Rocha
A urbanização propriamente dita começou somente a partir de 1920 de forma lenta e gradual, afinal para as classes abastadas se fixarem no novo espaço pretendido o mesmo deveria perder a sua aparência de insignificância. De acordo com Dantas (2002, p.39), o litoral era tido “[...] como lugar de habitação das classes pobres da sociedade fortalezense”.
A primeira mudança almejada segundo a revista da época Ceará Ilustrado, foi o nome: Praia do Peixe!
Uma fila de casas alpendradas, à beira dos verdes mares bravios, orlando aquela extensão em que a “praia beija a vaga e em que a vaga beija o mar”, aquele recanto, aquela marinha cearense, perde muito de sua beleza com esse nome de Praia do Peixe, nome que exala tanta maresia e tão intenso fartum de vísceras de garôpa expostas ao sol, a vista cobiçosa dos urubus malandros. Foi, por isso, muito feliz a ideia daqueles moços- ideia abraçada de pronto pelas famílias que habitam a Praia do Peixe de atirar-se fora, lá para longe, esse nome tão prosaico e que parece dizer uma tolice – que as demais praias não tem peixe.
Praia de Iracema sim! Praia de Iracema, da “virgem que tinha os lábios de mel e os cabelos mais negros que as asas da graúna”... Vença a ideia feliz! Ceará Ilustrado
(CEARÁ ILUSTRADO, 1925a, p. 217).
1937 Postal raro Praia de Iracema
A ideia da mudança do nome surgiu a partir da iniciativa da cronista social Adília de Albuquerque Morais (Veja fotos dessa época) em sugerir a construção de um monumento do escritor cearense José de Alencar na beira-mar. De agrado do público e da imprensa foram rápidas as solicitações formais para que o nome da praia fosse mudado (CEARÁ ILUSTRADO, 1925a).
Portanto, foi provavelmente inspirada na musa do escritor cearense José de Alencar que a Praia do Peixe se tornou Iracema. Uma Iracema bela como a descrita no romance que se revestiu de belos trajes; afinal o odor forte das “vísceras de garôpa expostas ao sol”, deram espaço a uma Iracema asséptica e elegante. De acordo com o Guia Cultural (ESCÓSSIA, 2000), isso ocorreu em 1925 quando o bairro passou a se chamar oficialmente de Iracema e suas ruas ganharam nomes de tribos indígenas, recebendo inclusive a extensão da linha do bonde.
Fachada de Bangalôs da Praia de Iracema na década de 1940
Os moradores do aprazível bairro da “Praia do Peixe” vão erigir nas brancas areias afagadas pelos “verdes mares” uma estátua de Iracema. Já deve estar nas mãos do Sr. Dr. Prefeito Municipal um abaixo assinado, solicitando um decreto que mude a denominação imprópria e vulgar por que é conhecido aquele encantador trecho de Fortaleza para a de “Praia de Iracema”. Nada mais justo do que a inspiração dos suplicantes e, estamos certos, de que o Sr. Dr. Godofredo Maciel irá ao encontro dos desejos de seus munícipes.
Praia de Iracema. É esse o nome que se procura dar ao antigo bairro Praia do Peixe. Não há dúvida que a ideia é simpática, por se tratar da heroína do romance de José de Alencar – Iracema, a virgem dos lábios de mel – símbolo de ternura e amor das filhas da terra do sol. (CEARÁ ILUSTRADO, 1925, pág. 15; 275).
Beira Mar da Praia de Iracema, 1930
Diante do interesse da classe abastada pelo mar são intensificadas mudanças na Praia do Peixe com vista a adaptá-la aos novos gostos. A beira-mar começa a receber construções de casas alpendradas apregoando um novo estilo residencial não comum na cidade de Fortaleza.
Praia de Iracema, 1920 - Arquivo Gerard Boris
Durante todo o século XIX o tipo de casa da área urbana de Fortaleza era voltado para o estilo de lotes profundos e estreitos, mudando por volta de 1930 quando a nova legislação urbana passou a exigir recuos laterais.
O embarque e desembarque era feito por alvarengas
Diante da diferente proposta de ocupação, o panorama da praia muda e os casebres bem como os pescadores, seus antigos proprietários, migram para outras áreas. Percebe-se com isso a existência de um processo de expulsão que passa a ocorrer, abrindo definitivamente espaço para os novos residentes. Foi nessa política de expansão que em 1913, Fortaleza viu os bondes elétricos substituírem os bondes puxados a burro.
Rua dos Tabajaras, corredor turístico da Praia de Iracema
A Rua dos Tabajaras transformou-se no lugar principal do bairro, não era à toa a chegada dos investimentos econômicos, culturais e residenciais; como a “Vila Morena”, considerada a primeira residência de grande porte da orla, construída com material oriundo da Europa, sendo inclusive a primeira residência da cidade a possuir piscina (SOUSA, 1999).
Ainda em 1920, a praia de Iracema recebeu a construção da Ponte dos Ingleses, que objetivou viabilizar ações portuárias. Porém, a utilidade da construção foi muito mais social que econômica, pois, ainda durante o seu andamento, o projeto foi abandonado e o povo da cidade aproveitou a beleza do lugar para transformá-la em ponto de encontro, principalmente para apreciar o pôr do sol que, segundo relatos, era a melhor programação do final da tarde (SOUSA, 1999).
Durante esse período verificou-se o estabelecimento de várias formas de sociabilidade. Muitas pessoas passaram a conviver com o novo espaço estabelecendo relações de posse no uso da Praia, levando ao surgimento de rivalidade entre as classes ricas e pobres por questões até mesmo de ordem recreativa. Isso pôde ser observado com a delimitação na Praia de uma área para pobres e outra para as “pessoas de bem”, ou seja, os ricos, pois para estas pessoas, “[...] a presença de pobres, tanto nas praias como nas festas públicas, constituía falta de zelo e irresponsabilidade do governo” (JUCÁ 1996 apud DANTAS, 2002, p. 54).
Em 1925, a revista Ceará Ilustrado publicou uma matéria, mostrando o estilo de vida social da Praia e evidenciando a transformação ocorrida entre o que foi a Praia do Peixe e a nova Praia de Iracema. Parece que, com a mudança do feio nome de Praia do Peixe, a mais formosa marinha cearense, encanto da nossa sociedade elegante, está adquirindo um desusado movimento nestes últimos dias. Ranchos de namorados felizes e sorridentes confundem os seus arrulhos com o marulho das ondas; automóveis buzinam; ouvem-se risadas e canções, consta mesmo que alguns poetas indígenas tencionam abrir nesta revista um concurso de sonetos sobre as maravilhosas perspectivas que aquela praia nos sugestiona (CEARÁ ILUSTRADO, 1925b, p. 228).
No início da década de 1930 foi construída a Igreja de São Pedro, construção de iniciativa de senhoras católicas com a ajuda da população, que teve como padroeiro o santo dos pescadores - São Pedro. A Igreja representava a alta sociedade católica presente na Praia de Iracema, pois as missas eram frequentadas pelas famílias ricas de Fortaleza como “[...] Jereissati, Ary, Bachá, Dummar, Nassar, Otoch, Romcy, [...]” dentre outras (FAHEINA, 2003, p.5).
Igreja de São Pedro
Fonte: Sousa 1999
No início da década de 1940, a Praia de Iracema começa a viver sua fase de consagração como sendo o lugar de maior importância da cidade. É a partir de então que o interesse pelo mar deixa de ser contemplativo e passa a se configurar como prática daqueles que trocam a Praça do Ferreira e o seu entorno pelo novo atrativo da cidade. Nesse período a Praia de Iracema se consolida como espaço de balneabilidade, se transformando em produto de consumo para a sociedade, usada para banhos de mar e caminhadas na faixa de areia nas manhãs e nas noites enluaradas.
“O banho de mar, até então visto apenas como tratamento médico, começava a se transformar opção de lazer, especialmente para os homens. Mulheres só de manhã cedo, ou aos domingos [...]” (ESCÓSSIA, 2000, p.35).
Devido a essa realidade, surgem vários balneários, entre eles o mais famoso data de março de 1944, cujo proprietário, Zairton Ferreira Lopes – o “Gruta” - veio a se tornar uma figura conhecida na época em virtude do seu temperamento forte e do seu ar de ermitão, fenótipo este que restava complementado pela presença de uma longa barba.
Ao observar a maré baixa, o proprietário do local enchia a praia de mesas e cadeiras para receber o público que chegava de bonde. No balneário se alugavam roupas de banho e ainda havia armários para guardar os pertences dos visitantes.
Durante a 2ª Guerra Mundial, com a proibição da venda de bebida alcoólica a partir de determinados horários, o “Gruta” costumava servir aguardente em recipientes de louça para burlar a fiscalização (O POVO, 20 03, p.7).
Antigo Porto anos 30
Até o final da metade da década de 1940, a Praia de Iracema conseguiu alinhar-se ao gosto exigente da sociedade elegante de Fortaleza. O bairro tomou ares de estação balneária e se consolidou como produto de consumo da elite local vivendo sua fase áurea, apelidada pelos boêmios e apaixonados de “Praia dos Amores”. Na revista Bataclan (1926, p. 227) Iracema já era descrita como o “supremo encanto de Fortaleza”.
O bairro começava a romper suas barreiras limítrofes e crescia no sentido sul e oeste, em direção ao centro. Apesar dos pescadores terem mudado de habitação pelo perfil imposto a praia, ainda continuavam a desenvolver relações de trabalho buscando o sustento de suas famílias através da pesca. É por essa razão que mesmo com o aformoseamento e consagração dos balneários, as jangadas continuavam a emoldurar o cenário da praia coexistindo relações de moradia, trabalho e lazer. Esse fato é reforçado por Schramm (2001), ao mencionar os campeonatos de jangadas que aconteciam aos domingos oferecendo entretenimento aos visitantes.
Nota-se que desde a criação da praia de Iracema as pessoas interessadas no objeto, passaram a desenvolver atividade de lazer e entretenimento com o espaço. Isso é percebido com os vínculos de veraneio estabelecidos a partir da construção dos primeiros bangalôs; dos passeios de bondes e encontros românticos para assistir o pôr do sol; as festas no cassino dos americanos; o banho de mar; a missa na igreja de São Pedro e os campeonatos de jangada.
No entanto, a valorização da Praia de Iracema em relação aos passeios, os banhos de mar e às festas nos clubes foi de certa forma de curta duração exatamente devido ao processo erosivo gerando pela construção do Porto do Mucuripe que, no final de 1940, fez com que as classes abastadas mudassem de endereço. Parte da Praia foi erodida e foram construídos quebra-mares para defender as casas que sobraram do ímpeto do mar. A dinâmica marinha foi comprometida por não existir o deslocamento natural dos sedimentos que vinham do sentido leste-oeste, ou seja, da Praia do Futuro em direção a Praia de Iracema, gerando com isso o avanço do mar.
Dessa forma, a Praia de Iracema, deixou de ser alimentada e situando-se fora da sombra de abrigo do quebra-mar passou a ser violentamente atingida pelas correntes da costa, quando estas retornam sua velocidade original. O objetivo das obras na Praia de Iracema é protegê-la no sentido de que a onda tenha a sua força atenuada antes da arrebentação.
Destruição das casas da Praia de Iracema no final da década de 1940
Fonte: Arquivo Nirez
A panorâmica da Praia, além da destruição aparente, passou a expor aos seus visitantes uma piscina que se formou em plena beira-mar devido a construção das barreiras de pedras estabelecidas para defender as residências.
Piscina formada com o avanço das marés na Praia
de Iracema – década de 1960
Fonte: Arquivo Nirez
Dessa forma, os moradores viram surgir, mesmo de forma não projetada, um outro lugar para banho que, diante do caos apresentado, serviu como distração para aqueles que tinham por hábito o banho de mar (FURLANI, 2001, p. 4).
A partir de então, o que se observava era um paredão de pedras que se estendia do Mucuripe à Praia de Iracema, resultando em comentários no sentido de que pouca coisa havia se salvado da Praia mais bela do Brasil. “Resta agora aos cearenses, amantes do sol e da liberdade, apelar para o Mucuripe, com a sua enseada mansa como um lago, fazendo dali uma nova Praia de Iracema” (AUGUSTO, 1946b, p.3).
Postal anos 30
Não foi imediata a saída dos moradores da Praia de Iracema para outros bairros. Havia certa resistência sentimental e porque não dizer um orgulho em relação a área mais “chic” da cidade, ainda surgiam aqueles que queriam morar na tradicional Praia de Iracema. A exemplo disso foi a construção pertencente à família Philomeno Gomes, o edifício São Pedro (assunto para outra postagem) também chamado de “Copacabana Palace” da capital cearense.
Postal de 1946
O fato é que após a voragem do mar e o prenúncio do desenvolvimento, o bairro de Iracema tornou-se pacato e sem maior expressividade. Mesmo assim, ainda contava com a presença de algumas famílias tradicionais que pelo apego sentimental ainda insistiam em residir no Bairro.
Calçadão da Praia de Iracema
Fonte - Elsine Carneiro de Souza e pesquisa de internet