quinta-feira, 17 de junho de 2010

O bonde III

Bonde na Estação da RVC, 1918. - Arquivo Luis Antonio Alencar

Quem teve a felicidade de se transportar utilizando-se do bonde até os fins dos anos de 1947, e ultrapassou meio século de existência, pode ainda recordar para dizer da sensação que sentia até no balanço causado pela trepidação do bonde que vibrava no deslizar dos trilhos. Tão perfeitamente ajustados ao solo como duas listras de ferro que pareciam intermináveis na sua forma perpendicular. Na ardência do sol a pino essas duas listras negras reluziam como se fossem faiscar no calor, capaz de queimar quem ousasse pisar sobre as mesmas descalço. Era o trilho de ferro de intenso brilho e por onde os bondes passavam conduzindo passageiros. Contrariamente, à época invernosa, os trilhos parecia que se escondiam nas pequenas poças e regos d’água formados pelas chuvas caídas ao solo, como se estivesse das nuvens recebendo prenúncio da chegada do inverno; para isso o bonde se munia com o aparato das sanefas brancas listradas de verde, que acionadas verticalmente deslizavam por fresta e fechavam o compartimento de cada banco tornando-o protegido das águas das chuvas. O mesmo ocorria quando o sol estava a pino e muito quente. Embora, às vezes, essa fase invernosa não se prolongasse quase nada, contrariando o período de sua duração, do seu devido tempo, eis que a escassez pluviométrica se acentua e o nosso Ceará vem a sofrer as agruras de uma seca, que no seu império absoluto, expulsa levas e mais levas de nossos irmãos sertanejos que por aqui se achegam à procura de emprego e melhores dias para a família. Mas, mesmo assim, o sofrido cearense que de tudo tira proveito, até do sofrimento e da desgraça atmosférica, para amenizar o sofrimento causado pelo efeito da metereologia, arranja jeito para filosofar, quando resolve emigrar do sertão bravo e toma o trem rumo à Capital. E dentre eles surge sempre o matuto inteligente e astuto que quando desce do trem sabe que chegou à Capital; observa a diferença logo na Estação central, e quer satisfazer a curiosidade de conhecer o tão falado “bonde elétrico” que tem na Cidade e transporta gente, porque até então só conhece além do trem “o lombo dos animais”, automóvel, nem sabe se é “homem ou se é mulher”... Em aqui chegando e descobrindo o bonde verseja no repente: I Eu vim do sertão, pro’ mode vê A capitá do Ceará! Eu vi coisa do árcu da véia! Qu’i faz à genti siarripiá. II Q’uando eu cheguei na estação centrá Vi u’ma luz acendê sem pavio U’ma “gaiola cum nome de bonde”, Qui vinha danada pu riba du trilhu!! III Na casa em qui fui amoitado, Tinha u’ma “tirrina” no pé da mesa O povo cuspia dentro, Meu Deus nunca vi Tama-nhá nogenteza. Daí corria o olhar para cidade baixa, ou seja, a descida do curral das éguas e logo se engraçava de uma “grinfa” já traquejada e levava para dançar no Salão Azul ou no Bola Preta... ou para ver o “Açude do Sr. Boris” - a Praia Formosa. O nosso passageiro ilustre do bonde Via Férrea - é o naturalista, - o cientista Prof. Dias da Rocha, que morou durante 61 (sessenta e um) anos (de 1899 a 1960) na Rua 24 de Maio No 214, há exatamente uma quadra da Praça da Estação Central - entre as ruas Sen. Castro e Silva e Senador Alencar, vizinho à antiga Escola de Artífice do Ceará (esquina da Rua Senador Alencar). Um pouco de sua história: - “Dic. Barão de Studart”. Francisco Dias da Rocha - Filho do negociante português Joaquim Dias da Rocha e D. Francisca de Paula Rocha, nasceu em Fortaleza a 23 de agosto de 1869. Avós paternos: Dr. Maximiliano Dias da Rocha, que dirigiu durante alguns anos o antigo Colégio da Formiga, na cidade do Porto, e foi professor de Latim na mesma cidade, cadeira que obteve por concurso após a revolução de 1820, e D. Maria José Pinheiro Chagas, prima legítima do escritor Pinheiro Chagas. Avós maternos: Professor Francisco de Paula Cavalcanti e D. Cosma Rufina de Pontes. Começou seus estudos em 1880 nos Colégios S. José e Atheneu Cearense, mas teve de os suspender em 1886 para dar um passeio a Europa d’onde voltou no ano seguinte. Tinha o propósito de completar os preparatórios para seguir a carreira de Medicina, o que aliás não realizou a conselho do pai, que via nele o continuador de sua casa comercial. Constrangido, abraçou essa carreira, mas ao mesmo tempo dedicava as horas que lhe sobravam às leituras das Ciências Naturais e à aquisição de espécimes da fauna e flora cearense. Em 1898, deixando o comércio, entregou-se completamente aos estudos das ciências, suas prediletas, e tomaram tal incremento suas coleções que organizou um valioso museu a que deu o nome de “Museu Rocha”, o qual se compõe de seções: Botânica, Arqueologia, Minerologia e Zoologia, e um jardim com coleções de Fougeras, Cactáceas e Aráceas cearenses e de muitas outras plantas. Para maior divulgação das raridades que possui, e como instrumento de estudo, deu início à publicação do Boletim do Museu Rocha. O primeiro número dessa interessante publicação, correspondente a janeiro, foi impresso nas oficinas do Cruzeiro do Norte, editora e Livraria Araújo e distribuído a 6 de junho de 1908. - “Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense pelo Dr. Guilherme Studart - Barão de Studart - Volume Primeiro - 1910. Pág. 292”. O Prof. Dias da Rocha, juntamente com outros estudiosos fundaram em 1916 a Faculdade de Farmácia, da qual foi ao mesmo tempo aluno e professor de Botânica Aplicada à Farmácia e História Natural. Em 1918, mais uma vez, congrega-se com novo grupo para fundar a Escola de Agronomia do Ceará, onde foi seu segundo diretor e professor de Fitopatologia e Botânica, recebendo mais tarde em sua homenagem, o Centro Acadêmico Dias da Rocha, o seu nome e, em seguida, por iniciativa de seus ex-alunos, a herma no pátio da Escola de Agronomia em homenagem aos seus 90 anos - “Zenilo Almada - Revista do Instituto Ceará - vol. 107 - 1993. pág.302”. Ainda em homenagem ao professor Dias da Rocha, foi-lhe concedida a denominação do seu nome numa das ruas do bairro Aldeota, por iniciativa do grande e inesquecível amigo Dr. Raimundo Girão quando secretário de Cultura do Município.

Na foto, um bonde elétrico no centro da capital cearense, em meados do século XX. Na altura do depósito, o bonde dobrava à esquerda e, depois de cerca de 50 metros, na rua 24 de Maio, parava na esquina da rua Castro e Silva. Virava a lança, voltava e parava de novo ao lado da Estação Central, para dar embarque (serviço inverso de quando vinha trazendo passageiros para os trens urbanos) aos passageiros que haviam chegado ou outros usuários que demandavam o centro da cidade. Mais histórias: Um viajante inglês registrou a existência de bondes em Fortaleza na década de 1870, mas outras fontes afirmam que a primeira linha de bondes puxados por cavalos, entre a estação ferroviária e o centro de Fortaleza, foi inaugurada pela Companhia Ferro-Carril do Ceará (FCC) em 25/4/1880, usando bitola de 1.400 mm a mesma usada pela Trilhos Urbanos na linha de bondes a vapor em Recife. A Ferro Carril do Parangaba abriu uma linha para o lado Sul da cidade em 18/10/1894 e a Ferro Carril do Outeiro (FCO) iniciou sua linha no lado Leste de Fortaleza em 24/4/1896. A Ceará Tramway, Light & Power Co., Ltd., registrada em Londres em 11/12/1911, comprou os sistemas da FCC e da FCO e inaugurou a primeira linha de bondes elétricos da capital cearense em 9/10/1913, agora com bitola de 1.435 mm. A linha Parangaba foi fechada em 1918 e não chegou a ser eletrificada. Todos os veículos elétricos de Fortaleza tinham um padrão, com troles: a United Electric construiu 30 em 1912 e dez em 1924. A linha de bondes de Fortaleza foi fechada por problemas elétricos em 19/5/1947 - três semanas após o fechamento do sistema de bondes em Belém. Vinte anos depois, em 25/1/1967, a Companhia de Transportes Coletivos inaugurou duas linhas de trólebus entre o lado Oeste da cidade e o Largo do Carmo.

A linha do bonde Via Férrea, cujo nome deve ter sido atribuído em virtude do fato de estacionar na Praça da Estação Central - rede Ferroviária Cearence (RVC), seu percurso obedecia ao seguinte itinerário: partia da Praça do Ferreira - seguia pela rua Guilherme Rocha entrando à direita na rua Barão do Rio Branco até alcançar a esquina da Santa Casa de Misericórdia, quando entrava à esquerda na Rua Dr. João Moreira, passando em frente à Estação Central (trem) e dobrando à esquerda para estacionar no fim do quarteirão da quadra da antiga Praça Gal. Sampaio, hoje - Praça Castro Carreira, quando inicia a rua 24 de Maio, esquina com Senador Castro e Silva. O retorno obedecia o mesmo percurso. Como se pode fazer idéia, era a menor linha de bonde da Ceará Light existente à época, mas atendia a grande número de passageiros que iam em visita aos doentes da Santa Casa e aos detentos do Casarão da Rua Sen. Jaguaribe - Cadeia Pública, cujos fundos davam para a rua Dr. João Moreira, na quadra da rua Senador Pompeu - (lado nascente) e Gal. Sampaio - (lado poente), no início da descida do Curral - local onde se aglutinava maior número de prostitutas, reduto de boêmios, músicos e cantores, sobretudo, para os que apreciavam os banhos de mar na Praia Formosa. Daí surgiu um barracão de madeira - pintado de cor verde, que servia para guardar roupas e pertences dos banhistas e, com direito a banho com água doce, que mais tarde virou associação para dar início ao grande clube Náutico Atlético Cearense. O bonde Via Férrea atendia aos passageiros que se dirigiam à Santa Casa de Misericórdia e aos reclusos e detentos da Cadeia Pública, que cumpriam pena naquela casa de correção. A pé enxuto desciam os passageiros que iam apanhar ou deixar parentes e amigos na Estação Central, para viagens aos sertões cearenses. Atendia de certa forma a várias camadas sociais. No bonde viajavam as elegantes senhoras enchapeladas e portando guarda-sol, que se dirigiam à Praça do Ferreira para fazer compras, bem como as que para sessões à tarde se dirigiam aos cinemas Majestic, Moderno, Diogo ou, ainda, para tomar sorvete no Eldorado do inesquecível e querido amigo Antônio Figueiredo (“Figueiredão”) que, com D. Márcia Amora, formava uma grande família. A sorveteria “Eldorado” tinha fama por fabricar os melhores sorvetes da cidade, era por isso ponto de encontro dos jovens e de atração da sociedade da época, que para lá se deslocava para saborear os mais típicos sorvetes e lanches de excelente qualidade. O Bar Jangadeiro do Sr. Luís Frota Passos - depois local ocupado pela Farmácia Faladroga é, hoje no mesmo local, loja de tecidos da família Otoch - na rua Floriano Peixoto, na Praça do Ferreira. Era o mais requintado bar da época, por manter diariamente uma vesperal animada por conjunto de pau e corda, quase uma orquestra de câmera. A freguesia se compunha de pessoas gradas, pertencentes à camada social de alto coturno, porque dela fazia parte a aristocracia da cidade que, depois, com a chegada dos americanos a esta capital nos anos 40 (tempo de guerra), tomou ares cosmopolitas e se misturou com lindas jovens casadoiras, dando origem às famosas e discriminadas coca-colas (moças faladas da época). Esse envolvimento das moças com os soldados americanos que aqui chegaram e permaneceram por algum tempo despertou certa disputa com alunos do Colégio Militar, que vinham do Sul e eram colocados em segundo plano pelas jovens que se permitiam a namorar soldados americanos. Aqui ainda não se conhecia a bebida Coca-Cola, que foi trazida por eles, e por isso apelidaram de “coca-cola” as jovens que namoravam americanos formando uma extensa lista... Mas deixemos as coca-colas sossegadas e falemos do quarteirão da rua Floriano Peixoto, situado na quadra da Praça do Ferreira, do delicioso caldo de cana do “Merendinha”, da família Quezado, na década de 50, perto da Rotisserie, onde se bebia o melhor caldo de cana, com o infalível pastel - de carne ou queijo - onde quase toda turma do Liceu, que estudava à noite, descia do ônibus Jacareacanga, na alameda situada bem no centro da Praça do Ferreira e corriam rápido para comprar o caldo de cana, esfriando o pastel nos grandes ventiladores, para matar a fome da rapaziada que não tinha tempo de jantar antes das aulas noturnas. Existia também já àquela época um pequeno armazém misto de mercearia e lanchonete - que tanto vendia caldo de cana, pastéis, bolos e outras guloseimas, bem como enlatados finos, ameixas, vinhos, passas e frutas secas vindos da Europa. Era a Leão do Sul - do Sr. Dimas. Mais adiante, em maior proporção, estoque e variedade, a Casa Miscelânea - do Sr. Frota, na qual gerenciava o ilustre advogado Airton Angelim. Mas, do Bar Jangadeiro ficou apenas uma paisagem viva, vista de dentro do bonde pelos passageiros, a contemplar com os olhos aquele belo espetáculo que descortinava a exuberância do requintado ambiente, deixando invejosos os passageiros do bonde que não podiam daquele agradável momento participar. Mas! Não fique triste porque tudo já passou e novos ambientes mais sofisticados e, inusitados, surgiram nessa nossa querida Fortaleza que hoje nem vale a pena lembrar porque “Nada disso nos faz companhia e ainda nos rouba a solidão” como se apregoa!!!

Zenilo Almada Advogado


"vibrava no deslizar dos trilhos" - É mesmo um efeito muito peculiar, obtido principalmente ao viajar-se em carro aberto - como eram os bondes de Fortaleza -, sentindo-se, além dos efeitos vibratórios comentados pelo articulista, a aragem do vento e um “astral” de liberdade muito característico.
"listras negras" - Os trilhos eram, na verdade, da mesma cor dos trilhos de trem, ou seja, da cor do aço polido, ou prateados, mas, devido ao fato de os trilhos de bonde terem fendas, formava-se, às vezes o efeito fotocromático a que alude o articulista.




Veja também:


O bonde - Parte IV (Bonde Soares Moreno)
O bonde - Parte V (Bonde Benfica)
O bonde - Parte VI (Bonde Praia de Iracema)
O bonde - Parte VII (Bonde Prainha) 
O bonde - Parte VIII (Bonde Outeiro)
O bonde - Parte IX (Bonde Alagadiço)
O bonde - Parte X (Bonde Joaquim Távora)
O bonde - Parte XI (Bonde Prado)
O bonde - Parte XII (Bonde José Bonifácio)


Fonte: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 17 de novembro de 2002 e fotos Fortal


2 comentários:

  1. Hoje, aos 67 anos de idade, sempre que vou ao centro dE Fortaleza, dou uma parada na Leão do Sul. Frequento-a desde pequenina, quando lá ia com mamãe e minhas 3 irmãs: pastel e caldo de cana sempre!!! Conheci seu Dimas, era amigo da nossa família.Quando mamãe não nos levava, pedíamos: "mamãe traz pasteis da Leão do Sul!"
    Ai que delícia, quando ela chegava!!!
    Lúcia B. de Paiva

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  2. Eu tenho 32 anos e também sempre que ia ao Centro com a minha tia, era sagrado essa paradinha para comer pastel com caldo de cana na Leão do Sul rsrsrs essa pastelaria vai passando de geração para geração, é incrível!

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