domingo, 20 de junho de 2010

O bonde (VIII) - Linha Outeiro/ Aldeota - Santos Dumont


Fotografia antiga do bonde Outeiro

O jornalista de primeira água, poeta, escritor, romancista e sociólogo Jader de Carvalho, desassombradamente escreveu o romance - Aldeota, na década de 1960. Na sua obra magistral - (13o capítulo, pág. 286) com muita propriedade proclama: “Não dizem que o tempo tem asas? Pois tem mesmo. Na Aldeota levantaram-se riquíssimos bangalôs, agora chamadas ‘casas funcionais’. Quase todos brancos, bela estupidamente brancos numa terra de sol. Doem na vista? Mas ficam bem na paisagem entre o verde do mar e o azul do céu, num suave lombo de terra, que se abaixa cautelosamente em busca da praia.”

Mais adiante exclama: “Numa topografia diferente, microgeográfica, Aldeota se personaliza, assume limites certos, cria a sua própria alma, amadurece enfim ‘Aldeota’”.

As evidências provam que muitas das famílias antigas que moravam noutros bairros, ou mesmo no Centro da cidade, passaram a residir no aristocrático bairro da Aldeota, embora outros continuassem fiéis, e não se deixaram atrair pela zona Leste da cidade até por questão de bairrismo, ou saudosismo.

Mudavam de status, mas o bonde, impassível ao tempo, continuou a transportar seus passageiros indiferente a tudo. Percorria na sua trajetória conduzindo passageiros de todos os recantos da cidade e de todos os matizes, credo, profissão, cor, pobres e ricos enfim, indistintamente. Até porque havia entre todos humildade, condescendência e mútuo respeito acima de tudo. Quando por ventura algum passageiro se exagerava no beber, e, se ousasse tratar mal ao cobrador e mesmo passageiro, - o fiscal conduzia um apito, e logo - parava o bonde, pedia para o molestador descer e se não atendesse - apitava novamente e todos os passageiros - gritavam - “Chama o guarda” era na realidade “o passe mágico” para que o guarda da Polícia Estadual, encarregado na manutenção da ordem pública, colocado entre vários quarteirões da cidade, e, que se comunicavam e atendiam rapidamente com o chamado do guarda pelo apito para de repente restabelecer a paz, o silêncio e a proteção no coletivo.

Postal antigo da Rua Floriano Peixoto

Embora muito se tenha comentado, propalado, comensurando valor, divulgando a celeridade do crescimento populacional, em espiral no que se refere ao progresso dos valores imobiliários, comparado a outros bairros - e até com certa irinia, se dizia: “Que o bairro Aldeota, cheira a dólar”, em confronto com outros bairros que não tiveram ascensão rápida, mesmo porque àquela época a extensão territorial não ia além da Av. Desembargador Moreira à altura do Hospital Militar do Exército.
Na sua exuberância o bonde Outeiro - Aldeota, fazia aprazível percurso: saía da Travessa Morada Nova, por trás do prédio da antiga Assembléia, dobrava à direita na Rua Floriano Peixoto até chegar à Travessa Crato, quando entrava à direita, seguia até a Rua São José (antigo Beco das Almas) e entrava na Rua Visconde de Sabóia ao lado do Colégio da Imaculada Conceição, entrando à esquerda na Av. Santos Dumont, e, seguindo em linha reta até a Rua Silva Paulet.
O nosso ilustre passageiro escolhido da linha Aldeota - Outeiro, é o médico, ex-professor e foi diretor da Escola Normal Justiniano de Serpa - por mais de 50 anos, cujos dados biográficos abaixo, em notas de registro - Barão de Studart no volume primeiro do seu Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense (Ed. de 1910 - fl.491).

João Hippolyto de Azevedo e Sá - nasceu em Fortaleza a 13 de agosto de 1881,” - se vivo fosse iria completar 122 anos - “filho de Jeronymo Vieira de Azevedo e Sá, e neto paterno de João Batista de Azevedo e Sá e Anna Vieira de Azevedo e Sá e materno de Domingos Pereira Façanha e Ana Bayma Façanha".

Fez o curso de preparatórios no Ginásio Nacional, atual Colégio Pedro II, e matriculando-se a princípio na Faculdade da Bahia, em que fez o primeiro ano, e depois na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, defendeu tese em 22 de janeiro de 1904.

Sua tese foi aprovada com distinção, versou sobre segredo médico. A 1o de março de 1904, foi nomeado professor interino de Física e Química na Escola Normal do Estado e efetivo a 30 de fevereiro de 1908.

Bonde na Rua Floriano Peixoto

À 7 de dezembro de 1905, foi nomeado para a Secção de operações e partos no Hospital de Misericórdia de Fortaleza.
Permaneceu várias décadas como diretor da Escola Normal Justiniano de Serpa, cujo cargo se aposentou. Após sua aposentadoria, foi convidado a exercer em comissão o cargo de diretor do Instituto de Educação no qual ficou por alguns anos, era avô do meu amigo Márcio de Azevedo e Sá Livinio de Carvalho, já falecido.
Dr. Hipólito, como era conhecido, residiu por muitos anos na Av. Santos Dumont No 2110, esquina com a Rua Silva Paulet, ponto final do bonde Aldeota. Nesse local, se acha instalado o Banco Mercantil de São Paulo.”
A Avenida Santos Dumont, antes fora denominada - Av. Nogueira Acióli - 1933, de No 9 - 1890, “Do Colégio” 1888 - Registra João Nogueira - Fortaleza Velha, pág. 43.

No dia 14 de fevereiro de 1914, começou a funcionar a linha do Outeiro (Santos Dumont/Aldeota). “Nesse ano, chegavam ao nosso porto, dentre outros navios estrangeiros, 34 ingleses, comprovando a contínua hegemonia britânica em nosso porto, seguido em número por 14 vapores alemães, e que seriam os últimos, em razão do início da Primeira Guerra Mundial, a visitarem nosso porto até 1923 - Ary Bezerra Leite - História da Energia no Ceará, pág. 70.”


A linha do bonde Outeiro tinha início no Colégio da Imaculada Conceição e numa reta rumo ao Leste, passava em frente ao Colégio Militar, e para quem sobe a Avenida Santos Dumont vê-se à direita, dentre outros, o bangalô do Dr. Edmilson Barros de Oliveira, local hoje da clínica que leva o seu nome, dirigida por seus ilustres filhos - Francisco José Motta Barros de Oliveira e Edmilson Motta Barros de Oliveira, ao lado esquerdo bonito sobrado de Gutemberg Teles, proprietário das lojas de tecidos “Casas Novas”, instaladas também em boa parte no interior do Ceará; o casarão de Manuel Cavalcante, a casa da família do Gal. Eudoro Correia, Demóstenes Brígido, Abel Ribeiro, seu filho Humberto Ribeiro, Dr. Paulo Torcápio Ferreira, Mystil Meyer, o inolvidável e majestoso Palácio de Carvalho, cercado por inúmeros bangalôs, cada qual no seu estilo próprio, construídos por seu arquiteto Emílio Hinko, que após sua morte convolou núpcias com a viúva D. Pierina. Hoje no local ergue-se o Centro de Artesanato D. Luíza Távora, seguindo ainda as elegantes casas e sobrados dos milionários da época; das famílias Joaquim Eduardo de Alencar, Sr. Vicente de Castro Filho - Sr. Bené; Inácio Capelo, da Sapataria Belém, casa que servia de residência do Gal. da 10a Região Militar, palacete do Dr. João Hippolyto de Azevedo e Sá, depois mais modernamente dos irmãos Salomão de São Domingos Pinheiro Maia e Vesúvio de São Domingos Pinheiro Maia, Sr. Célio Fontenele Filho, Thomas Pompeu de Souza Brasil, Paschoal de Castro Alves etc.

Rememorando o início dos bondes elétricos, que substituíram os bondes puxados a burro na nossa Cidade, tivemos como conseqüência no salto do progresso da nossa civização urbana. - Mozart Soriano Aderaldo - no seu livro História Abreviada de Fortaleza - às pág. 41 - assevera com percuciência:

“Em 1914, teve início a era dos bondes elétricos. Havia bondes de ‘tostão’ e de ‘dois tostões’ isto é, de cem e de duzentos réis, que eram identificados pela cor de suas testadas: - O de segunda classe era prateado e o de primeira classe era pintado de verde. Os cupões das passagens, destacados pelos cobradores (condutores, como eram chamados) à vista dos passageiros, eram a estes entregues porque valiam a centésima parte de seu preço, desde que resgatados em favor de associações de caridade, como a Santa Casa, o Asilo de Alienados, o Leprosário etc. Dessa forma, a empresa concorria para aquelas filantrópicas entidades e, ao tempo, controlava o movimento de passageiros, para efeito de tomada de contas”.

O grande historiador e engenheiro João Franklin de Alencar Nogueira - João Nogueira - no seu livro Fortaleza Velha - destaca capítulo sobre “O bonde Velho” - pág.165 e no “Carro de borracha” - Era o famoso bonde puxado a burro, que antecederam os bondes elétricos. Esse transporte eminentemente rudimentar, movido por asinino.

A inauguração do bonde velho marcou época na vida de Fortaleza

"Os que ainda restam daquele tempo se recordarão, talvez, da admiração e dos aplausos com que foi recebido, nesta cidade, tão grande progresso. No domingo, 25 de abril de 1880, a Companhia Ferro Carril do Ceará inaugurou as linhas de Estação e do Matadouro Público. Às 7 horas da manhã, quatro bondes embandeirados partiram da frente do Mercado Público, à Praça da Assembléia, e foram até Matadouro; e, de volta, chegaram à Estação do Depósito, na estrada de Messejana.

No primeiro iam o presidente da Província, Sr. José Júlio, e convidados; nos dois seguintes, acionistas da Ferro Carril; e no último a música da Polícia. Ao chegarem àquela estação, ali tocava a banda do 15o e subiram ao ar inúmeras girândolas.

Houve sessão solene da diretoria, da qual era presidente o engenheiro José Pompeu de Albuquerque Cavalcante, diretor secretário o Dr. Rufino Antunes de Alencar e tesoureiro, o negociante João Cordeiro”.

Lavraram uma ata especial consignando o memorável acontecimento, assinado, que foi, pelo presidente da Província, pelos diretores e acionistas da companhia e por quantas pessoas gradas ali se achavam.

O engenheiro José Pompeu declarou, então, abertas ao tráfego as duas linhas inauguradas e agradeceu, ao presidente José Júlio, os favores dispensados à empresa.

As linhas inauguradas eram, como ficou dito, as da Estação e do Matadouro.

A primeira, partindo da frente do Mercado, seguia pela Praça da Assembléia (lado L), passava em frente à Assembléia, ganhava a Rua da Boa Vista, dobrava na de S. Bernardo e, entrando por um beco, hoje fechado, cortava a Rua da Alegria; passava ao lado N. e em frente aos Artigos Bélicos e pela Rua do Conde d’Eu entrava ao Largo do Garrote, donde pela estrada da Messejana ia em linha reta à Estação, construída em 1879.

O ramal do Matadouro começava no cruzamento da Rua da Boa Vista com a de São Bernardo. Seguia por esta até a Rua Amélia, pela qual subia até a Praça de Pelotas.

Dobrando na esquina do Formiga, seguia pela Rua do Livramento, atravessava em diagonal a Praça S. Sebastião e entrando pela entrada do Soure chegava ao Matadouro.

O bonde de Pelotas seguia este mesmo itinerário, partindo, porém, do Mercado a fazer ponto naquela praça, junto à Rua General Sampaio. A extensão total dessas duas linhas era avaliada em 7.500 metros.

Um anúncio avisava o público de que os carros partiriam do Mercado, de meia em meia hora, e enquanto houvesse passageiros.

As passagens eram de cem réis, a bitola a mesma de hoje, 1,40m e tração animal. Os carros eram desiguais: havia os de 4, de 5 e de 7 assentos, com as lotações correspondentes de 16, 20 e 28 passageiros.

Os trilhos constavam de longarinas de madeira, pregadas nos dormentes, forradas por cima de cantoneiras de ferro sobre cuja face superior corriam as rodas. Foram depois substituídas por trilhos de ferro tipo Vignole.

A planta de Fortaleza de 1888 consigna as alterações feitas nas linhas inauguradas em 1880 e os ramais então existentes.”

Tivemos também as linhas do Outeiro e da Porangaba, das quais detalhes e datas se encontram no Almanaque do Ceará para o ano 1906.

Antes da inauguração do bonde, a carne verde vinha, pela tarde, do matadouro para a feira em costas de burros tangidas pelos carniceiros (magarefes) que vestiam longas blusas de baeta encarnada e traziam barretes da mesma fazenda e cor.

À boca da noite, voltando do Mercado, montados em disparada, que fazia tinirem os ganchos de ferro em que haviam trazido a carne, aqueles homens, vestidos de encarnado metiam medo aos meninos, que neles viam demônios, matadores ou lobisomens.

A Ferro Carril acabou com este transporte anti-higiênico da carne verde, construindo bondes fechados especiais, destinados ao mesmo fim.

Já muito depois de inaugurada a nossa viação urbana, apareceram os bondes chamados João-cotoco. Eram carros sem coberta, com uma lanterna multicor em cada frente, que só trafegavam à noite, especialmente nas de luar.

Era nesses bondes que os fiotas e notívagos do tempo andavam acima e abaixo contando anedotas e desfrutando a fresca da noite, até ficarem de nariz entupido, tal como acontecia aos prosistas, que demoravam, até tarde, nas nossas antigas rodas de calçadas.

Outeiro, mais precisamente Aldeota, é na realidade de hoje o bairro mais contemplado pelo progresso da nossa cidade, porque seu aspecto arquitetônico diferencia dos demais bairros da nossa Fortaleza; se sobressaindo com as modernas edificações tornando-o independente do resto da metrópole por ter vida própria.

Bonde elétrico 1930 - A imagem mostra o bonde elétrico, na Floriano Peixoto, aberto, prefixo 76, na linha do Outeiro, passando ao lado de uma bomba de gasolina. Reparem na arquitetura dos prédios... Banco do Brasil, na época... (por volta dos primeiros cinco anos da década de 1930)

A Avenida Santos Dumont vai do Centro da cidade à Praia do Futuro. Começando na altura da Rua Cel. Ferraz, terminando na Av. Dioguinho, se interligando desde o Centro, Aldeota, aos bairros Varjota, Papicu, Praia do Futuro. Outrora, somente uma ampla dimensão de terra virgem e inóspita formava a paisagem do Outeiro - hoje Aldeota - com alguns sítios, matagal espesso, cuja copagem, com predominância de arbustos, carrapicho-da-praia, servia de moradia das diversas espécies de pássaros - como os bem-te-vis-de-gamela, galos de campina, graúnas, sabiás, canários, da terra, dessa imensa fauna que os repetidos estribilhos despertavam novos moradores, tornando Aldeota essa “selva de pedra” que se ergue em desafio ao céu, mas, tudo isso tem clássico nome de modernidade.

Sabemos que muitas ruas e lugares mudaram a fisionomia da Aldeota. Mas se os tempos mudaram e tomaram rota diferente, sob certos aspectos, tornando desiguais as pessoas na concepção dos seus entendimentos, destinos e caminhos, somente Deus na Sua onipotência pode mudar o curso de todas as coisas ou perpetuar segundo Sua vontade, porque pode dispor e transpor -

Amém.

Zenilo Almada
Advogado






Crédito: Artigo publicado no Diário do Nordeste - Fortaleza.
Ceará - Domingo, 23 de fevereiro de 2003


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