Sim. É verdade e deve ter acolhida o que se diz: quem é saudosista já goza entre os mortais mais direito de sentir saudade; essa dor pungente que vem de dentro do peito apertando nosso doído e combalido coração com o passar do tempo fraqueja, perde as forças quando sente se esvair numa espiral de fumaça que se desfaz no ar, deixando imorredouras lembranças que torturam a memória. São recordações que vêm da infância, da juventude a se apegar na velhice tudo tão repentino deixando tristeza dentro de nós. Haja coração para suportar as ilusões que se afastam e quando voltam para festejar o que ficou para trás, trazem o amargo do sabor dos desenganos marcados pelo tempo que não se compadece nem se comove.
Pois é assim, nós os saudosos do passado, que nos sentimos quando vemos passar o tempo recobramos das nossas mentes os episódios vividos, que modulam e embalam os nossos sonhos e naqueles momentos se colorem com tintas vivas o cenário que ficou para sempre gravado na nossa existência.
Ah, tempo ingrato! Inexorável aos mais sutis rogos, implacável no percurso a que se propõe a fazer não se compadece, não se condói nem dos passageiros dos bondes de nossa cidade - Fortaleza dos anos 20, 30, 40 em que todos se conheciam e tinham suas histórias para contar... até no bonde.
A beleza estava também na paisagem descortinada nas ruas por onde o bonde passava. As pessoas ficavam animadas à espera dos passageiros que desciam e subiam no bonde feericamente iluminado, alegravam nosso coração. As jovens casadoras cujas mãos frias, mas acelerado coração, esperavam que a noite descesse e temerosas suspiravam ansiadas aguardando a chegada do bem amado que, invariavelmente, bem vestido, de preferência paletó acetinado de linho branco bem engomado por antigas passadeiras, cujo brilho cintilante prendia a atenção dos observadores. Desciam do bonde exalando o perfume da época - Royal Briar ou Promessa, Je Revien ou o afamado Chanel n. 5! Dependia da condição econômica de cada qual. Os ricos, endinheirados (arranjados) comerciantes, os plebeus e os estudantes coitados (principiantes ainda não tinham posição definida). Mas todos se utilizavam dos nossos bondes porque a burguesia era composta por minoria que podia possuir condução própria (automóvel) e se contava nos dedos...
O que importava era o passear de bonde nas diversas linhas a se deleitar pelo encantamento que o momento ensejava, deixando as palavras fluir ao ouvido, sob forma de galanteios, cheios de suspiros que eternizavam a alma da amada que se enflorava de desejos.
Assim era a linha de bonde José Bonifácio, a menor em extensão, mas tão importante e opulenta como as demais linhas de bonde que se iniciaram no engrandecimento de nossa cidade. Como a maioria dos bondes, o José Bonifácio saía da Praça do Ferreira - lado oeste da praça - pela Rua Major Facundo (antiga rua da Palma) e numa reta ultrapassava a Av. Duque de Caxias - Praça do Carmo, ao lado da Igreja do Livramento (depois do Carmo) - Associação dos Merceeiros até a rua Domingos Olímpio. No retorno, trocava a posição da lança, virava para frente os bancos e o condutor passava a ocupar a outra parte do bonde (frente), regressava pela mesma rua até alcançar a Clarindo de Queiroz, entrando à esquerda na rua Floriano Peixoto até chegar na Praça do Ferreira - lado leste, contornando a praça pela rua Guilherme Rocha e dobrando à esquerda na rua Major Facundo, reiniciando pelo ponto de partida em frente à Farmácia Pasteur para novo trajeto, como as demais linhas.
A nossa ilustre passageira do bonde José Bonifácio é a muito querida Sra Maristela Benevides de Alencar, viúva do ilustre cientista, doutor, professor Joaquim Eduardo de Alencar, nascida no dia 08 de julho de 1917, filha de Arthur Feijó de Sá e Benevides e Maria do Carmo Eduardo Benevides, irmã do Príncipe dos Poetas - Arthur Eduardo Benevides. São seus filhos: Vera de Alencar Moreira Pinto, casada com Dr. Djacir Moreira Pinto, médico; Eduardo Sérgio de Alencar, formado em Geografia pela Universidade Autônoma do México, casado com Ana Maria Xenofonte Barreto de Alencar; Sílvio César de Alencar, formado em Economia pela Universidade Federal do Ceará, casado com Norma Targino de Alencar.
Por ocasião dos 80 anos do tão querido e amado irmão Eduardo - Príncipe dos Poetas, sua irmã Maristela escreveu esta mensagem:
“A estação de Pacatuba outrora era grande... mas, hoje, tudo mudou; a nossa infância se tornou adulta, cresceu, o trem com seu apito varando o céu e abrindo estradas perdeu-se no tempo. E a nossa estação tão pequenina permanece grande dentro da nossa saudade. Se eu fosse poeta lhe ofereceria hoje o mais belo poema feito de amor, de saudade e recordações da nossa infância e da nossa querida e inesquecível Pacatuba, onde vivemos todos os dias sem previsões para o amanhã e embalados pelos nossos sonhos jovens. Ah! O espinho que mais fere é o espinho da saudade. E parafraseando a nossa prima Cecília Meireles, cantemos a passagem dos tempos!” (Maristela - julho de 2003).
E no dia do seu aniversário - dia 08 de julho de 2000 - escreveu este monólogo:
“Já vivi o que tinha de viver, Provei na vida glórias e tristezas, Andei pelas estradas fazendo minhas trovas E continuo cantando as minhas alegrias e o meu sofrer. Mágoas nunca guardei, Só de Deus encho meu coração. Passando agora a minha vida a limpo Vejo que nada fiz de extraordinário A não ser cultivar o amor e a esperança” (Maristela)
Agora o nosso último percurso de linha de bonde que encerra uma série de doze - a de José Bonifácio, que desde 1912 até os dias idos de 1947, juntamente com as outras linhas circularam na nossa cidade durante 35 (trinta e cinco) anos. Já faz muito tempo (56 anos de sua retirada) e as saudades continuam vivas e persistem gravadas no besunto de todas as ruas, quarteirão por quarteirão (quadras), casas, locais panorâmicos que embeveciam nossas mentes, colocando cada coisa no seu devido lugar, como se estivesse a rever o mostruário de um bazar que se armazenou na nossa lembrança, que se desenrola para avivar as saudades do tempo que se foi e não volta mais. Até as tristezas tomaram nova roupagem - para se manifestar na saudade, amenizando a dor da partida; porque o tempo também não pára e na sua corrida tudo desfaz.
Assim, em breve relato, lembremos aquele transporte movido a eletricidade pelos diversos bairros Jacarecanga, Soares Moreno, Via Férrea, Benfica, Praia de Iracema, Prainha, Aldeota, Alagadiço, Farias Brito, São Gerardo, Joaquim Távora - Visconde do Rio Branco e José Bonifácio e dizer éramos felizes e não sabíamos.
Não poderia deixar agora de exaltar o único excelente trabalho até agora conhecido sobre A História da Energia no Ceará, que nos legou o ilústre professor universitário, jornalista e pós-graduado pela École Nationale d’Administration de Paris, e South Dakota University, onde obteve o título de Master in Government - Ary Bezerra Leite - in “História da Energia no Ceará”, In verbis:
“Existem 39,7 kms de cabo-trolley montados em 308 postes roliços e 341 postes de grade de ferro. Linhas aéreas de luz e força: linha de alta tensão, 6.600 volts, 3 fases, 36.156 metros, construídas sobre 788 postes de madeira de 6'' por 10 metros, 19 postes de aço roliço e 3 postes de grade de ferro; linhas subterrâneas de alta tensão: 2.460 metros; linhas de baixa tensão de corrente alternada: 2 fios, 1 fase - 28.292 metros; 3 fios, duas fases - 2.425 metros; 4 fios, 3 fases - 88.376 metros; linhas de baixa tensão e corrente contínua: 3 fios, 500 volts - 28.985 metros; 2 fios, 500 volts - 2.200 metros. Estas linhas foram construídas sobre 838 postes de madeira, 84 postes de aço roliço, 417 postes de trilho, 22 postes de grade de ferro. Linhas subterrâneas de baixa tensão, 440 volts - 990 metros”. Pág. 69.
“A paralisação dos bondes elétricos ocorreu a 19 de maio de 1947, em caráter ‘provisório’ e, definitivamente, a 17 de agosto do mesmo ano, por decisão do interventor federal na empresa capitão Josias Ferreira Gomes, após 33 anos de serviços que marcaram o cenário da cidade e, de forma indelével, a lembrança dos que foram seus usuários. Diversos fatores contribuíram para esse final, ocorrido quando, no período de transformações do após-guerra, o Brasil vivia uma fase de redemocratização, conhecendo novas lideranças políticas e novos valores culturais. No parecer apresentado pelo interventor, foram oferecidas as seguintes razões para a desativação definitiva dos bondes:
- Redução da capacidade de usina em caldeiras, ocasionada pela retirada de serviço para conserto, de conformidade com o parecer de técnicos do Estado, de duas caldeiras, o que provocou imediatamente a paralisação de duas máquinas de C.C. destinadas à tração elétrica;
- o estado precaríssimo em que se achavam o material rodante e trilhos que não mais correspondiam às exigências de tráfego e nem a necessária segurança dos passageiros;
- impossibilidade de manutenção do serviço por falta de estoque de trilhos e peças sobressalentes;
- deficiência econômica e financeira da companhia em organizar o serviço com seus próprios recursos ou adquirir sobressalentes para manutençào do atual serviço;
- efeitos perturbadores e malévolos do serviço de bondes sobre o serviço de fornecimento de energia, por ser aquele um serviço pesadamente deficitário, obrigando o funcionamento de máquinas antiquadas e antieconômicas e, principalmente, por anular a possibilidade de reduzir o preço do kilowatt, bem como desviar saldos obtidos no serviço de fornecimento de energia elétrica de sua melhoria de instalação para a manutenção do serviço de bondes;
- inexequibilidade de reorganização do serviço em face das insuperáveis dificuldades em levantar o capital necessário ao empreendimento (Cr$ 60.000.000,00), quer no ambiente nacional, quer no estrangeiro; tendo ainda evidenciado a mesma autoridade que o capital acima era superior várias vezes ao que já foi remetido, sob qualquer título que não fosse para aquisição de material à sede da companhia em Londres e que, com a paralisação do serviço de bondes, poderia ser imposta uma multa à companhia para quando houvesse interrupção de fornecimento de energia à cidade por culpa da mesma.” (Pág. 73-74)
Zenilo Almada Advogado
Condutor - Trata-se, na verdade, do motorneiro, que dirigia o bonde; condutor é o nome dado ao cobrador de passagens. Para maiores detalhes a respeito do procedimento de inversão de sentido do veículo, bem como dos componentes envolvidos, ver as notas ao fim do artigo “O bonde (V) - Benfica - Igreja dos Remédios”.
Porque o tempo também não pára e na sua corrida tudo desfaz - De fato, conforme nos relata o Dr. Almada, tudo que é suprimido de modo abrupto e total gera nostalgia e sensação de perda, e é natural sentir essa tristeza ante a substituição devastadora, isto é, o conceito de modernização ou progresso que não inclui a adaptação e o aproveitamento de coisas existentes e/ou antigas ainda úteis e não obsoletas. A supressão total dos sistemas de bondes, que ocorreu nas cidades brasileiras - e de alguns outros países - deve-se a uma visão administrativa de pouca abrangência. Em muitas outras nações, no entanto, os bondes - ou trans, ou “light rail vehicles”, ou, em Português, “veículos leves sobre trilhos”, VLT - nunca foram legados ao rol das “coisas passadas”, evoluindo da mesma forma que evoluíram os ônibus e demais meios de transporte, e, em alguns casos, veículos tradicionais receberam adaptações modernas; há também circuitos que mantém e preservam seus bondes antigos praticamente tal e qual sempre foram, como ocorre no sistema de Santa Teresa (Rio de Janeiro). Realmente, o tempo passa, ou nós passamos por ele, no entanto depende de nós a escolha entre o desfazer tudo ou combinar seletivamente o que seja bom, útil e agradável do antigo e do novo. O Tempo, por si mesmo, é neutro.
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