sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Dragão do Mar - Um verdadeiro herói



Num país com muitos heróis de araque, o cearense Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, é exemplo de homem simples que fez sua vida valer a pena, deixando um legado de força e coragem que merece ser lembrado e seguido.


Todo mundo já ouviu falar na “seca do 15”. Há até quem use a expressão para caracterizar o estado físico de uma pessoa esguia, mirrada, seca mesmo. A falta de chuva que castigou o Ceará nesse ano (1915) foi de fato muito “braba”, como se diz por aqui. Tanto que serviu de pano de fundo para o romance mais conhecido da escritora cearense Raquel de Queiroz: O Quinze. No entanto, o torrão cearense se deve a outros períodos de escassez tão drásticos como o de “15”.

Refiro-me à seca de 1877 a 1879. Na época, mais de um em cada quatro cearenses morreram vitimados pela sede, fome, varíola e cólera. Não havia casa sem luto. Alguns registros dão conta de que no ano de 1878 foram sepultadas nos cemitérios
São João Batista e Lagoa Funda mais de 56.000 pessoas, isso numa população de 124.000 habitantes. Um verdadeiro holocausto.

Alguns poucos e sérios livros de História contam que durante a tragédia cearense foi organizada uma campanha de socorro às vítimas, destacando-se nomes importantes, entre eles
João Cordeiro, então comissário-geral dos Socorros Públicos. Mas naqueles tempos sobressaiu-se um outro personagem. E é sobre ele que este texto vai se reportar: um filho da cidade de Aracati nascido em 1839 na localidade de Canoa Quebrada e que respondia pela alcunha de Chico da Matilde. De batismo, era Francisco José do Nascimento, herdeiro do pescador Manoel do Nascimento, que resolveu tentar a vida na Amazônia e faleceu nos seringais, e da rendeira Matilde Maria da Conceição.

Com a morte do pai, aos oito anos, Chico da Matilde teve que assumir a casa, envolvendo-se no cotidiano do litoral. Como outros milhares de sua época, cresceu analfabeto, fenômeno que, infelizmente, ainda se repete até hoje, exatos 170 anos depois. Só aos 20 aprendeu a ler. Homem do mar por ofício, começou a vida como menino de recados à bordo do navio Tubarão, para depois tornar-se chefe dos catraieiros, os condutores de jangadas e botes do litoral da capital cearense. Em 1859, trabalhou nas obras do
porto de Fortaleza. Depois, empregou-se como marinheiro em um navio que fazia a linha Maranhão-Ceará e, em 1874, foi nomeado prático da Capitania dos Portos
.

Postal raríssimo de 1881 - Jangada de Dragão do Mar

Em Março de 1884, Chico da Matilde vira um herói nacional. Vai do Ceará à Corte, no Rio de Janeiro, levando na bagagem sua velha jangada de guerra. Torna-se um dos primeiros a desfilar pelas ruas, ouve o hino nacional em sua homenagem, recebe chuvas de flores da multidão e finalmente ganha o nome místico que o imortalizaria, também da lavra de Patrocínio: Dragão do Mar. Há relatos de que mais de 10.000 pessoas o saudaram, inclusive com direito a uma comissão de frente composta de 24 musculosos negros que conduziam nos ombros sua embarcação à vela onde estava escrito: Liberdade.

A única lembrança triste deste episódio é que o ícone da libertação dos escravos no
Brasil, a jangada de paus roliços e vela branca, doada ao Museu Nacional, desapareceu alguns anos depois. O jornalista catarinense Raimundo Caruso, no livro "Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste", descreve o que pode ter acontecido: “A jangada Liberdade, de Francisco José do Nascimento, era a clássica, de troncos. Símbolo de uma resistência popular vitoriosa no Ceará, foi levada à Capital do Império a bordo de um navio mercante e, mesmo viajando no porão, inaugura a rota das futuras aventuras dos jangadeiros nordestinos em direção ao Sul. A embarcação foi exibida nas ruas do Rio de Janeiro, sob os aplausos da multidão, e pouco depois é doada ao Museu Nacional, onde foi recebida como valiosa peça etnográfica (...). Em seguida a jangada foi transferida para o Museu da Marinha (...), de onde, queimada, feita em pedaços ou desmontada, desapareceu”.



De volta a
Fortaleza, em 1889, ele foi reconduzido, por ordem do Imperador D. Pedro II, ao cargo de prático da Capitania dos Portos. No ano seguinte, com o advento da República, João Cordeiro assume brevemente a presidência do estado e entrega a Dragão do Mar a patente de Major-Ajudante de Ordens do Secretário-Geral do Comando Superior da Guarda Nacional do Estado do Ceará, em reconhecimento à sua bravura.



No ano de 1902, casou-se, pela segunda vez, com Ernesta Brígida, sobrinha de João Brígido. Em 1904, aos 65 anos, o Dragão do Mar volta a participar de causas populares. Desta vez lidera a Revolta dos Catraieiros, movimento de pescadores e chefes de família em reação ao fato de haverem sido sorteados para o serviço militar, tendo que seguir para o sul do país a bordo do navio Maranhão. O Historiador Cale Alencar explica que a revolta se formou porque “o edital de convocação havia sido publicado com apenas 72 horas de antecedência do embarque, tomando a todos de surpresa, muitos deles com oito, dez filhos e alguns já avós. Por toda a Praia do Peixe, a antiga Praia de Iracema, ouviu-se a ordem do Dragão do Mar: ninguém embarca!”
Contudo, à força, o governo embarca os amotinados, não antes de deixar 90 homens feridos e um morto em confronto com os soldados da província. Nessa ocasião, Dragão do Mar lidera uma marcha até o
Palácio da Luz, sede do governo de Pedro Borges, cobrando justiça. O presidente, temendo o pior, recolhe suas tropas. Até seus últimos dia de vida, o herói cearense agiu em defesa das classes menos favorecidas, vindo a falecer no dia 6 de março de 1914, em razão de ataques dos jagunços do Padre Cícero, que lutavam para derrubar o presidente Franco Rabelo.

Em 1999, o símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão foi finalmente homenageado pelo
governo do Ceará dando seu nome ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Em comemoração aos dez anos de fundação, uma série de atividadesfoi promovida, entre exposições, concurso de redação, reedição do livro "Dragão do Mar – O Jangadeiro da Abolição", de Edmar Morel, de 1949, além da confecção da estátua de Chico da Matilde.


Apesar de esquecido pelos livros, Francisco José do Nascimento entrou para história como um verdadeiro herói. Em um país acostumado a venerar em carro público vencedores de reality-shows tão fajutos quantos seus destaques, Chico da Matilde é, e sempre será, exemplo para esta e futuras gerações. Que o Brasil tenha outros jangadeiros como Francisco, homens que fazem da sua vida e do seu trabalho um instrumento para transformar o mundo em um lugar mais justo e igual para todos.


GEVAN OLIVEIRA

Esse texto é simplesmente maravilhoso, me deleitei lendo e relendo várias vezes. Espero que vocês também estejam dispostos a mergulhar nessa fasciante história. Aproveitem!

6 comentários:

  1. Me parece que, depois da criação do Centro Dragão do Mar, o Chico da Matilde passou a ser mais conhecido. Passou a ser mais reconhecido, também. Esse texto está excelente.

    Seria tão bom que os jovens estudantes tivessem mais acesso à internet e hábito de "visitar" esses blog' que divulgam personagens e fatos tão importantes de nossa história, como este de hoje, sobre o grande herói que foi o "Dragão de Mar" !

    Parabéns, Leila, adorei!
    Maravilhoso final de semana!

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  2. Sem dúvida, depois do Centro, a curiosidade
    sobre de quem se tratava a homenagem, ficou
    aguçada.
    Esse texto é maravilhoso realmente!

    A busca por conhecimento deveria ser
    primordial.

    Obrigada amiga, mas os créditos são
    todos para o autor do texto. :)

    Que seu final de semana seja espetacular!

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  3. Sim amiga, Gevan Oliveira tem todos os créditos de seu EXCELENTE TEXTO, mas a Leila Nobre merece
    parabéns por nos fazer conhececedores desse texto aqui.....né, linda!!!!!!

    Beijos!

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  4. Opa! Assim, sim! hihi :P
    Me senti na obrigação de
    compartilhar esse maravilhoso
    texto com meus seguidores.
    Sempre que leio algo interessante
    assim, penso o quanto mais pessoas
    deveriam ter acesso e tenho que
    compartilhar, é mais forte que eu
    hihihi

    Beijosssssssssss

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  5. Leila, sua página é espetacular, eu acho que já devo ter lido todas as publicações daqui rsrsrsr, muito bem pesquisadas, conhecer "nossa casa", nossas origense história é muito importante. Vamos continuar valorizando nossos patrimônios e mostrando para a sociedade que Historia e cultura, não tem preço. Parabéns pelo excelente trabalho!!!

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  6. Texto ótimo, mas poderia ter deixado um link para outro herói que foi padre Cícero que defendeu Juazeiro do Norte das forças do governo ao formar um verdadeiro exército de homens simples mas bem organizados pelo baiano Floro Bartolomeu.
    Vejam "Sedição de Juazeiro".

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