Manoel Preto, Jacaré, Tatá e Jerônimo - Foto de 1942
Ela mora no meio da rua dos Tabajaras, herdada do jangadeiro Tatá, seu primeiro marido. Aos 83 anos, muito bem conservados, Celsa é uma sábia contadora de histórias.
Quando Jacaré, Manuel Preto, Tatá e Mestre Jerônimo se aventuraram, em 1941, da praia do Peixe ao Rio de Janeiro, a bordo da jangada São Pedro, sem bússola, para reivindicar a situação dos pescadores junto a Getúlio Vargas, ela tinha apenas 16 anos. Somente 10 anos depois, viria conhecer e casar-se com Raimundo Correia Lima, o conhecido Tatá. Ela é Celsa Gomes Soares. "Eu era Lima, do Tatá, mas agora é só Gomes Soares". Aos 83 anos, mora na Praia de Iracema, na mesma casa herdada do finado Tatá, falecido em 1971, atropelado. "Quando a gente se casou, eu tinha 26 anos e ele 64. Ele tinha idade de ser meu avô. Ele me pediu para depois que morresse eu não vender a casa." E assim ela fez. No meio da rua dos Tabajaras, a casa se destaca entre lojas de artesanato, restaurantes e algumas poucas residências que ainda restam. Cheia de plantas, decorada com quadros antigos e fotografias na parede, a casa é um grande corredor. Hoje, a história se inverteu, vive com o segundo esposo bem mais jovem que ela, José Brasiliano Soares, desde 1975.
Celsa fala com a boca, as mãos e os olhos. Sorri e se emociona. Sua história de vida desenha um retrato vivo da Praia de Iracema, embora tenha nascido no sertão, em Salva Vidas. "Fica a três léguas de Quixeramobim", mapeia. Veio para Fortaleza em 1946, durante a seca, trabalhar na casa da família Gentil. Foi ser cozinheira. A mansão estava localizada à beira da praia. Hoje, a casa é o sindicato dos engenheiros particulares e fica logo no final do beco, em frente onde Celsa mora atualmente. No dedo anelar da mão esquerda, a aliança de ouro ainda marca as lembranças vividas naquele bairro. As histórias na memória relembram o primeiro encontro com o jangadeiro. "Toda noitinha, ele passava para a praia aqui pelo beco. Tinha muita gente que trabalhava lá comigo. Ele passou uma vez e puxou assunto. Perguntou se a gente gostava de ir à praia. Logo se engraçou comigo. Eu já era noiva quando conheci o Tatá. Me apaixonei, desfiz o noivado e casei. Ele era mais velho e tinha mais juízo.(risos). Eu fui a 4º esposa dele".
Orson Welles e os pescadores
O batom vermelho nos lábios se destacava sobre a pele negra e combinava com o vestido longo que usava. "Paulinha que mandou pra mim da França. Ela manda é muito, tenho um vestido de seda chinesa. Às vezes, manda as fazendas bonitas também. Esse aqui tem mais de 10 anos."
Paulinha e Sadi foram os filhos que ainda teve com Tatá, já passando das seis décadas de vida. O caçula, que tem o nome do pai, Raimundo Correia Lima Júnior, na boca da mãe, ganha o apelido de Sadi. Com menos de um ano de diferença, Paula Maria Lima Martin é, carinhosamente, Paulinha. "Minha filha conheceu o francês tomando banho de mar. Aqui, na Praia do Lido (atualmente praia em frente ao restaurante Tia Nair). Eu não queria que ela se casasse. Ela tinha 18 anos e ele era 20 anos mais velho. Casaram. Foi lindo o casório, lá na Catedral. Mora lá, com ele, até hoje. Paul Pierre." E a história se repetiu.
Sadi também foi embora, com 21 anos. Encontrou uma australiana, lá em Belém do Pará. "Tão linda ela. Os olhos verdes da cor do mar. Lá na Austrália já teve cinco filhos. Cada um com uma mulher diferente". Atualmente, vive com a chilena Cinthya. "E tá esperando mais uma menina, agora pra dezembro". Sadi é músico e não seguiu o desejo da mãe de ser marinheiro, mas atendeu aos anseios do pai, ficando longe do mar. Ele não queria que o filho seguisse a sina de pescador.
Já foi à França três vezes visitar a filha, mas a última foi em 1983. "Hoje em dia eu não vou mais, não. Esses aviões tudo doido, caindo". Prefere ficar por ali, nas imediações da sua Praia de Iracema. Antigamente, adorava caminhar no calçadão da Beira Mar. Ia até o Ideal, cedinho. Agora, se aproxima do mar somente quando José a leva. "A gente senta, come uma pipoca, toma uma água de coco. Antigamente, tinham as piscininhas aqui na frente. A gente tomava banho. Era bom. Agora tá tudo poluído, tudo sujo." Passear na Beira Mar, tem que ir de carro. O joelho não permite mais a caminhada e o esforço físico.
A Rua dos Tabajaras - Foto de Mario
Aos olhos de Celsa, o tempo andou mexendo na arquitetura do bairro e na sua rua. "Com o tempo, está tudo diferente. Nem dá mais pra ver o mar daqui. Os engenheiros fizeram uma puxada ali em cima. Tampou a minha visão", reclama. A reforma do calçadão da Praia de Iracema tem causado alguns incômodos. Antes, os atletas usavam o espaço para o esporte, "agora, eles vêm fazer cooper aqui, no calçamento. Passam em frente de casa, em vez de ser lá pela praia, pelo calçadão", conta incomodada Celsa.
Ainda com um pé no sertão, passa as manhãs escutando o Reouvindo o Nordeste, programa da Rádio Universitária. Luiz Gonzaga é a trilha sonora predileta para cozinhar seu peixe frito com leite de coco. "Na casa onde eu trabalhava a gente só comia comida boa. Aí eu me acostumei... (risos). Garoupa, Pargo. Adoro!"
Ela reclama do barulho noturno da Praia de Iracema, da sua vista do mar que se foi, mas também sonha em reformar a casa. Na televisão, assiste de tudo. "Só não gosto muito de novela imoral. Eu tenho vontade de escrever uma carta para o (Luciano) Huck. Ele ajeita casa, né!?" Extremamente ativa no lar, agua as plantas, varre a casa, e lava o terraço. Disposição não falta para as atividades domésticas. "Só não lavo roupa".
Na rua, todo mundo conhece Celsa. Na comemoração dos 80 anos, ganhou uma grande festa. A casa de forró mais conhecida da cidade fica na mesma rua de sua residência. "Paulinha tava aqui para organizar a festa. Eu lembro que fiquei cansada de tanto ir buscar gente no aeroporto. Teve a ajuda da cônsul francesa. A Fernanda, amiga da minha filha. Elas se juntaram e fizeram as batucadas lá no Pirata. A gente é muito amiga do Júlio. Paulinha, quando vem da França com as amigas, ninguém paga nada", conta orgulhosa.
Sobre o bairro, fala afetuosa. Nem ela, nem José querem deixar a Praia de Iracema. Ir para a França? Nem pensar. Aqui ela tem José, "lá, tenho medo de me botarem na casa dos velhos". O companheiro é técnico fiscal de obra da prefeitura, passa o dia trabalhando fora. Celsa diz ter medo de morrer sozinha em casa. "Uma vez eu caí e não conseguia me levantar. Eu tava sozinha. Tentei me levantar na cadeira e ela virava pra cima de mim. Até que eu tive a idéia de ir até a cama e consegui me levantar. Eu peço é muito pra nossa senhora não deixar eu morrer só aqui em casa".
Os planos para o futuro dependem da vontade de Deus. Somente por um motivo, sairia do bairro. Nem só o dedo do homem é capaz de provocar mudanças na Praia de Iracema. "Eu peço a Deus que essa onda não venha. Vai acabar com tudo, com as casas da gente. E se não sair, morre todo mundo também". Conta Celsa que a onda terá mais de 50 metros e que ela virá até 2013. "Os pastores é tudo rezando na beira da praia. O governo tem que saber e avisar a gente. Eu sei que já tá despregando uns gelos por acolá. Eu até já sonhei, todo mundo correndo. Vai ficar só as cabeças dos morros".
Continua...
Fonte: Jornal O Povo