sexta-feira, 24 de junho de 2011

Das antigas - Um envelope de AAS



 Quando batia a fome e o mês estava depois do dia 15, tempo de não se ter mais nada na despensa, escondido da mãe o menino corria à farmacinha no banheiro para surrupiar os envelopes de AAS infantil. Uma “piulazinha” rósea, docinha! E mastigar três ou quatro resolvia o buraco no estômago.


O Ácido Acetilsalicílico enganava a roedeira e dava uma leseira madorna. Isso sem a mãe saber. Mas quando flagrava, a gritaria tomava conta. Dedo na boca do envenenado, ordem pra cuspir e uns sacolejados. “Quer ficar torto, morta fome? Já não basta comer pasta de dente. AAS num é Azedin, abestado”.


Mas é que havia dias miados, de não se ter uma catita. E ser invadido da fome é uma das coisas mais indizíveis de se desenhar. Só Descartes Gadelha. É tão escanchada a gastura que vai se perdendo o viço, o ânimo de bodejar! O andar cimenta e depois que passa o choro, você é quase fim.

Há um morrer mesmo vivo, consciência do ir se desmilinguindo. E talvez, por causa, quem vai padecendo é furtado da dignidade de ser gente. O corpo se curva, o olhar se submete e em qualquer canto o faminentu se encosta humilhado.

Havia na rua dos poucos Galaxies criaturas mais precisadas do que a casa dos seis irmãos. Uma embiricica também de muitas bocas que se distinguia pelo bucho quebrado, a pele amortalhada e as costelas de se contar. E um dos mirrados comia as paredes da própria casucha.

Raspava com a colher e ia enchendo a barriga de reboco. Diziam ter dentro do estômago uma lombriga que desordenava sua vontade na hora que a fome o estraçalhava. Um bregueço diferente dos caboclinhos descalços do calçamento da Tavares Iracema. Tinha o cabelo de fogo porque eram ruivos alguns de seus passados.

E fia uma cantilena, repetida por avô, que só quem não ia passar fome quando crescesse seria o menino ou a menina que estudasse pra ser gente. Era ruim ir pra escola vendo alma, meio tonto, com um chá de capim santo, mas a única chance de comer carne todos os dias quando chegasse depois do longe ano 2000.

Contar isto em texto, ou aos filhos corados, há um pouco de exagero no fabular. Talvez. Em dias de fartura, logo após o pagamento da aposentadoria dos velhos, se devorava tudo que chegava à despensa com uma voracidade de mundo se acabando.



Muitas vezes até atropelava sentir o gosto, tomar a língua. Mais olho que barriga. Quem comesse desembestado poderia ter a chance de uma segunda rodada. Era o desespero de sozinho tomar posse das duas coxas da galinha, ter o bife maior... Beber um refrigerante inteiro sem dividir com irmãos, avô, avó, bisavó, mãe e pai.


Há uma menina, senhora hoje, que quando ganhou uma Coca-Cola só pra ela estatelou-se desfalecida. Via na televisão toda hora, após os desenhos, no intervalo comercial das novelas... Nos pesadelos... Salivava com o caminhão que abastecia dia sim, dia não, a bodega do Seu Geraldo... Vivia cheirando as tampinhas reboladas nas coxias...


Coca-cola! Casco de vidro transparente com letras encarnadas... Alguém bonito bebendo sob o sol sem fome... Papai Noel... Tampinhas premiadas dos bonequinhos da Disney... Musiquinha impregnante... Desmaiou de tanto farnesim e a garrafa se quebrou.





Demitri Túlio
demitri@opovo.com.br

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