terça-feira, 5 de julho de 2011

“Um grande crime!”


Foto de 1926

No ano de 1929, um oitizeiro existente nas imediações da igreja do Rosário, cruzamento das atuais ruas General Bezerril e Guilherme Rocha, foi derrubado. Seria apenas mais uma árvore abatida não fosse a polêmica que o incidente gerou.

Muitos se manifestaram contrariamente à ação da municipalidade – a ordem partira do prefeito Álvaro Weyne. Em artigo de 23 de maio, publicado no Correio do Ceará, João Nogueira denunciou um “grande crime”.
O nosso estimado Prefeito acaba de praticar um grande crime! Talvez, mesmo, tenha feito coisa pior: cometido um pecado mortal, mandando matar o mais antigo dos seus munícipes, este inocente e querido oitizeiro da capela do Rosário.

O episódio merecera registro do jornal A Razão. No dia posterior ao “crime”, o vespertino veiculou uma breve nota aludindo aos acontecimentos: contemplava-se a ação do “machado do progresso” e os protestos em contrário.

O tradicional oitizeiro que se erguia majestoso em frente ao edificio onde funcciona actualmente a Secretaria do Interior e Justiça, teve hontem o seu ultimo dia de vida. O machado do progresso iniciou, pela manhã de hontem, a sua acção e, dentro de poucas horas, viase, com tristeza, manter-se de pé tão somente o tronco da velha arvore. Muitos foram os protestos que se levantaram contra o gesto do sr. prefeito municipal, havendo mesmo quem o classificasse de barbaro. Hoje, restará do grande oitizeiro apenas a lembrança. Já é, porém um mal sem geito. Conformemo-nos.

O desrespeito à tradição, inscrito na ação do poder público, foi censurado por Alcides Mendes, cronista do mesmo periódico. Seu texto, publicado em 23 de maio, também assumiu ares de denúncia ao narrar a destruição de uma “relíquia” do passado.

Eu fui espiar, de pérto, o annunciado assassinato do oitizeiro de N. S. do Rozario, na rua Coronel Beserril. [...] Quando aportei ao local do crime já o cadaver do meu venerando oitizeiro ia se deitando resignadamente no chão, para o seu derradeiro somno. [...] o róble
mastodontico do oitizeiro morto era uma pura reliquia da gloriosa vida de outróra, do nosso querido Ceará. [...] Não sabemos respeitar a tradicção, nem venerar os fios de barba dos antepassados.


O jornal O Povo publicou, a 16 de julho, artigo assinado por Gustavo Barroso, o qual também condenava a medida. Pareceu-lhe que a sorte da árvore fora decidida em função do crescente tráfego de veículos: “[...] o impiedoso machado municipal para sempre te abateu em beneficio do deus moderno das cidades trepidantes: o trafego”.

Em Fortaleza descalça, livro de memórias publicado em 1975, o poeta Otacílio de Azevedo relatou experiências e impressões de sua vivência na cidade, desde sua chegada, em 1910, vindo do interior. Entre paisagens conhecidas e figuras do meio intelectual e artístico com as quais travara relações, ele recordou o oitizeiro do Rosário. No capítulo que lhe foi dedicado, narrou, condoído, seu triste fim.

Assisti, em 1929, revoltado, à derrubada do célebre Oitizeiro situado atrás da igreja do Rosário [...]. Grande número de pessoas idosas achava-se ali, aturdido. [...] Nada podia demover os operários, que apenas cumpriam um dever. Alguns deles estavam armados,
prevendo uma reação mais violenta do povo. Velhos de cabelo branco que haviam brincado, quando meninos, à sombra acolhedora do Oitizeiro do Rosário deixavam escapar dos lábios murchos verdadeira saraivada de impropérios e inúteis protestos. Aos poucos, porém, a onda de rebelados, sem forças, foi-se desfazendo, frágil demais para tentar qualquer reação. A grande copa, afinal, rolou por terra com fragor, num dilúvio de folhas. Uma brisa correu – talvez o último alento da árvore. Depois, foi o tronco, cortado cerce, com o auxílio de machados. Por fim, só restaram as raízes retorcidas...
Mandara abater a nobre árvore o prefeito Álvaro Weyne, depois de – magro consolo! – mandar tirar-lhe uma fotografia. Acreditamos que o ilustre edil sofreu também ao tomar essa decisão. O verdadeiro algoz do Oitizeiro foi o progresso, em nome do qual se cometem tantos
crimes...


A sensação de que se praticava um crime imperdoável organizou a escrita de quem referiu ao acontecimento, em periódicos, e de uma testemunha que o vivenciou e sentiu a necessidade de contá-lo, muito tempo depois. A esse respeito, o relato de João Nogueira é esclarecedor.

Cortada a fronde e já reduzido ao tronco e a dois galhos principais, nos pareceu um supliciado a quem houvesse dilacerado o corpo e cortado as mãos e que, em último arranco, levantasse os braços para o céu clamando vingança (talvez perdão) para seus matadores.

Gustavo Barroso também manifestou tal percepção. Após tornar à terra natal (em 1910 ele havia se transferido para o Rio de Janeiro), a fim de representar a Academia Brasileira de Letras nas comemorações do centenário de nascimento do escritor José de Alencar, realizadas no primeiro de maio, ele presenciara, desconsolado, o sacrifício da árvore.

Não houve voz, não houve pedido, não houve protesto que te salvasse. O progresso mandou que te puzessem abaixo. E tu, que perderas a grade protectora posta pela bondosa Camara Municipal de 1877, que fôras amputado varias vezes–porque já estragavas as fachadas lateraes, cortado, recortado em achas, queimaste a fogo lento nas cozinhas da Santa Casa de Misericordia.

O que dizer de Otacílio de Azevedo, que relatou ter visto ramos descreverem “círculos de angústia” no ar, e contorcerem-se pelo chão como que a sentirem dor, após caírem desfalecidos?

Um caboclo forte, no alto da fronde do oitizeiro, cortava, com afiada foice, que brilhava ao sol, os galhos mais altos. Os nodosos ramos descreviam círculos de angústia e vinham, depois, cair, exânimes, no velho e desconjuntado calçamento, num remoinho de folhas verdes e doirados frutos... A cada foiçada, soltavam-se lascas que se vinham juntar à ramagem, no chão. Aqueles ramos retorcidos pareciam sentir, convulsos, a dor que lhes causava a afiada ségure...

São textos que impressionam. Talvez porque respondiam a uma necessidade premente nas circunstâncias em que vieram a lume: mas qual?
Por que a derrubada de uma árvore, acontecimento corriqueiro no cotidiano de uma cidade, provocou tal comoção na Fortaleza de fins da década de 1920?
Por que a percepção de um crime? E por que a ação foi levada a cabo, embora encontrasse oposição?

A justificativa presumida para o abatimento do Oitizeiro do Rosário repousava na intensificação do tráfego urbano, o que era confirmado pelo crescente número de automóveis que transitava pelas ruas da cidade. A árvore erguia-se em uma via central – a um passo da Praça do Ferreira, ponto irradiante de veículos, onde automóveis de aluguel estacionavam e passavam linhas de bondes. Devia ser sacrificada em nome do progresso, pois, como bem percebeu Otacílio de Azevedo, O velho Oitizeiro já não era mais que um intruso, um trambolho que impedia o embelezamento da cidade que crescia. Começavam a aparecer os automóveis que deveriam transitar por todas as artérias da cidade. A queda do Oitizeiro do Rosário marcou o desmoronamento de mais uma tradição, para dar lugar às correrias
desenfreadas dos novos habitantes da pacata urbe – os bêbados da gasolina!

Desde a primeira experiência com um automóvel nas ruas de Fortaleza, em 1909, 
seu número crescera consideravelmente.



 

O primeiro automóvel chegou por aqui em 28 de março de 1909, vindo dos Estados Unidos pelo vapor inglês “Cearense”.
Era um automóvel da marca “Rambler” usado, comprado pela Empresa Auto Transporte, de propriedade do Dr. Meton de Alencar e de Julio Pinto, adquirido por 8:000$000.
Após o desembarque na alfândega, como ninguém soubesse dirigir, o veículo foi puxado por um jumento no trajeto entre o prédio da alfândega até o edifício do Cinema Júlio Pinto, localizado na Rua Major Facundo n° 64, acompanhado por uma verdadeira multidão de curiosos, que se formou ao redor do veiculo e do jumento.
Depois de muito pesquisar o motor, dois intrépidos cidadãos aprenderam a dirigir e quando saíam para a via pública, eram sempre alvos de curiosidade por parte da população.
Nessas viagens quase sempre o carro enguiçava, sendo preciso desmontá-lo em plena rua para consertá-lo. Como o motor estava localizado sob o veiculo, era necessário arrancar a carroceria todas as vezes que isso acontecia.
Certa vez perdeu-se a tampa do radiador na estrada de Messejana, e o proprietário anunciou no jornal que gratificaria a quem a encontrasse e devolvesse. Movimentou-se então uma multidão de populares em busca da peça, mas como ninguém sabia o que seria uma tampa de radiador, foram levados ao proprietário, todos os tipos de objetos de ferro que puderam ser encontrados naquela estrada, inclusive, até camburões de ferro.
Depois de um tempo, de tanto rodar, os pneus ficaram gastos e precisaram ser substituídos, mas onde encontrá-los? Improvisaram então umas rodas de madeira com aros de ferro, que faziam uma barulheira infernal nas pedras de calçamento.
Apesar dos percalços, esse carro conseguiu fazer diversas viagens a Messejana, e de certa feita, foi até Canindé, durante as festas religiosas. Seguiu de Fortaleza até Itaúna dentro de um vagão da E.F. de Baturité, e daí em diante rodando por uma estrada improvisada, levou um dia inteiro até chegar a Canindé.
Em certa ocasião ao trafegar na Avenida do Imperador, ao desviar-se de um pedestre, o carro foi de encontro a um muro, derrubando-o. Esse foi o primeiro acidente de trânsito da história da cidade.
Extraído do livro “Coisas que o Tempo Levou” de Raimundo de Menezes

Automóvel do Dr Meton de Alencar e Júlio Pinto - Foto do arquivo Nirez

Porém, o calçamento das ruas não acompanhara igual progresso – a cidade era ainda

descalça”, no dizer do poeta. O empedramento constituía-se de “seixos toscos de antiguidade quasi secular e inteiramente desnivelado”, segundo comentarista do jornal A Razão. Contudo, sua insatisfação advinha menos dos transtornos ao trânsito que o calçamento pudesse causar, que do aspecto desolador que conferia à cidade, infundindo-lhe, ao lado de outros elementos, certo ar nostálgico, impressionando negativamente o visitante que por ali se demorasse: 

“Ruas largas, ladeadas de casas baixas, de fachadas archaicas, sem qualquer arborização, tornam Fortaleza uma cidade nostalgica”.

Ruas largas, calçamento de pedra irregular e arborização ausente. A cidade 
havia parado no tempo? Rua Barão do Rio Branco, em 1922 (fonte: LOPES, 1998).

O aspecto da cidade ddenunciava: ela envelhecera. Não possuía um calçamento apropriado às novas exigências do tráfego, mas uma feição desagradável que lhe emprestava qualquer coisa de antigo, de imemorial.

Nessa perspectiva, uma árvore centenária não era mais que um entrave ao progresso, no que tolhia o trânsito de automóveis, e naquilo que confessava, em sua mudez ancestral. A cidade devia seguir o rumo do progresso, e tudo o que se interpusesse no caminho era forçoso descartar.


Fonte: Tempo, progresso, memória: um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta 
Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira

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