terça-feira, 19 de junho de 2012

Chatô, a Televisão e Rayito Del Sol em Fortaleza



De como, no mundo dos fatos, pessoas e acontecimentos interagem produzindo história e estória.

Aos caros ledores, de início, as apresentações dos personagens e suas façanhas, para o vivificar dos antigos e a perplexidade dos moços.

Um platicéfalo umbuzeirense, saído dos cafundós da Paraíba, deu-se, de corpo e alma, a uma peleja que ninguém se atreveu, nem aqui, nem na América Latina. Entrou nas casas e instalou-se desde 1950. Espantou a uns e alegrou a outros. Mudou e criou modos e costumes dantes desconhecidos. Mostrou-se um cruzado dos tempos modernos.

Um aparelho eletroeletrônico, com a voz do rádio e as imagens do cinema, em dimensões menores, trouxe às residências divertimento, informação e cultura dos vários recantos do País e da Terra. Até hoje, indispensável ao público. 



Novas formas e padrões artísticos, apresentados ao vivo e exigindo excepcionais técnicas cênicas e interpretativas de atores, atrizes, apresentadores, noticiaristas e uma gama de pessoal de apoio.

Em meio a isso, o surgimento, quase inusitado, de linda cantante e dançadeira caribenha. Causa de furor nas mentes e corações masculinos. Encantamento pela maviosidade da voz, dos saracoteados sensuais de rumbeira, a exuberância perfeita de dotes físicos e as audaciosas mostras do que um milimétrico biquíni era incapaz de esconder. 

Imagem meramente ilustrativa

Carolas maledicentes e ocupadas com a vida alheia, em magote, buscantes de pecados nos variados lugares alcançados por suas vistas. Tormentosas no infernizar a vida do prelado local e no atanazar um Chatô fleumático.

Um bispo, o empresário maior da comunicação no Brasil, maridos e filhos amantes do belo na tentativa de safarem-se do ódio das megeras.
 

Parte do imbróglio deste causo chega a nossa Capital, fervilha por ambientes vicejantes noturnos, sem deixar de futricar nas fantasias juvenis, algumas ainda pueris.

E, de tudo, um final capaz de agradar a gregos, troianos, hebraicos e medo-persas, no dizer do causoeiro nonagenário da Serra do Estevão, meu xará Geraldo Bezerra dos Santos.

DE CHATEUABRIAND A CHATÔ

Caatinga nordestina. Alto sertão paraibano. Tropeiros, nas horas causticantes do dia, descansavam, juntamente com suas tropas, à sombra de um frondoso Umbuzeiro. Aos poucos, a localidade formou-se vila, povoado e, em 1890, constitui-se município, desmembrado de Ingá.
 
Dois anos após, em 5 para uns e 4 de outubro para outros, esta última data consagrada a São Francisco de Assis, nasceu naquele rincão uma criança que recebeu o nome do santo. Francisco de Assis. Seu pai, admirador do poeta e pensador francês François-René de Chateaubriand, acrescentou Chateaubriand ao nome do recém-nascido, complementando-o com Bandeira de Melo, sobrenome familiar. Assim, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo constou do registro de nascimento do menino. Tempos depois, para íntimos, Chatô simbolizou tratamento carinhoso.



Da Paraíba partiu para Pernambuco, graduando-se Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Recife e, em seguida, viajou para o Rio de Janeiro, onde se radicou.

Advogado, professor, jornalista, proprietário de jornais, rádios e revistas, fundador e dirigente do mais forte grupo de mídia da América Latina - os Diários Associados -, senador da República e embaixador no Reino Unido influenciou, significativamente, decisões republicanas da História do País.

Empreendedor eficiente construiu o mais expressivo conglomerado de informativos sul-americanos, contando número superior a cem jornais, estações de rádio e de televisão, publicações e agência telegráfica.

Fundou o Museu de Arte de São Paulo e, como literato, ocupou a Cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras.

PIONEIRA TELEVISÃO LATINO-AMERICANA

18 de setembro de 1950. Chateaubriand, entre eufórico e ansioso, aguardava o momento para tornar-se o pioneiro da implantação da televisão na América Latina. Sonho de uma década, finalmente desperto para a realidade, tendo vencido as incontáveis adversidades. 



Enfrentou enormes obstáculos administrativos, aduaneiros e técnicos para a consecução do ideal obstinadamente perseguido.

Nada abatia seu intenso labor. Certa feita, sobre a dificuldade de profissionais para o trabalho, firmou: “O que acontece é que Deus anda cansado de carregar tantos malandros de tão pouca vergonha. Por isso, decidiu agora ajudar os chineses porque esses hereges sabem fazer uma coisa de que já nos esquecemos: trabalhar.”.

Fizeram-se completadas as aquisições da aparelhagem televisiva de captação, editoração e transmissão de imagens e sons. Igualmente, concluídas as edificações, instaladas as aparelhagens e equipamentos, como geradores, transmissores, retransmissores, antenas e estúdios.

O velho projeto concretizara-se no rápido prazo do biênio final daquele decênio de lutas.

Superados estavam os difíceis problemas comerciais e organizacionais surgidos e enfrentados, incansavelmente, no decorrer da execução do empreendimento. 




Chegara, enfim, a majestosa noite. Momento da inauguração da PRF3 TV Tupi de São Paulo. Primeira transmissão a partir do parque de produção localizado no Alto do Sumaré.

AO VIVO OU EM FILME 16 mm

Sem o recurso do videoteipe, somente chegado em 1960, quase toda a programação, obrigatoriamente, dava-se ao vivo.

A produção de clipes, em películas cinematográficas de 16 mm, além de exigir montagens complexas, era elaborada de maneira trabalhosa e demorada. 



 
Equipamento Telecine 16mm - Lealevalerosa

Até a exibição de filmes destinados às salas dos cinemas, para transmissão na TV, impunha difíceis adaptações e arranjos. Nem sempre, exitosos.

Impossível, devido à inexistência de aparelhagem da época, a realização de transmissões externas, impedindo levar ao ar ocorrências relevantes locais e nacionais.


GAFES, IMPROVISAÇÕES E HUMOR

As gafes, improvisações e paralisações, no ar, de propagandas comerciais e noticiários faziam-se constantes. Os telespectadores aceitavam, compreensivelmente, tais dificuldades, ante a novidade.

O aparecer, no cinescópio, de imagens em preto e branco, sem brilho, com o efeito “chuvisco” e as costumeiras interrupções de sinal faziam-se suportadas pelo telespectador e “televizinho”. Afinal, não se conheciam melhores condições tecnológicas.

Quem deveras sofria eram os protagonistas. De quando em quando, esqueciam, parcial ou totalmente, o texto decorado. Pronunciavam, erroneamente, palavras e chegavam a risos incontidos. Por seus equívocos ou os dos colegas copartícipes.

Alguns intérpretes chegavam ao total mutismo durante uma apresentação.

INAUGURAÇÃO: TV TUPI E SEU FUNCIONAMENTO

Finalizada a benção das instalações, proferidas as falas das autoridades presentes à solenidade, foram exibidas as cenas das filmagens realizadas, em um programa especial dedicado aos atos inaugurais. 



Hgproduções

Focalizou logradouros, pontos turísticos e históricos da capital paulista, representando um passeio que se completou com visita ao complexo de emissoras de Chateaubriand em sua Cidade do Rádio.

A conclusão enfocou, em amostragem objetiva e compreensível, o funcionamento total do sistema de televisão, iniciando na portaria do prédio e percorrendo todos os setores.



SHOW INAUGURAL DA TV TUPI

A segunda etapa da festividade inaugural constou de um musical participado por conhecidos intérpretes do cancioneiro nacional, apresentado pela atriz Yara Lins e encerrado com o famoso balé de Lia Marques.
 
Como apoteose, duas famosas atrações internacionais especialmente trazidas ao País.

Recital do ator contratado pela Century FOX, destaque em dez filmes e inúmeros discos fonográficos, o frei-cantor mexicano de tangos e boleros Jose Mojica, de grandiosa querência pública. Mojica fascinou a plateia ao entoar “A Canção da TV”, magistralmente composta para a ocasião. Para encerrar o espetáculo, aguardado com ansiosa expectativa, as duas únicas câmeras revezavam-se no focar da esfuziante e linda cantora-rumbeira Rayito Del Sol, ao som do instrumento de seu irrequieto bongozeiro Dom Pedrito e do afinado conjunto musical acompanhante da estrela. Empolgação desmedida e surpreendente.

ESCÂNDALO RAYITO DEL SOL

A cantora caribenha cativou grandemente a maioria dos telespectadores da pauliceia. Em contraste, viu-se apupada por uma minoria de longevas senhoras. Carolas integrantes de uma confraria religiosa, segundo os jovens defendentes do modernismo

Para eles, tornou-se sucesso absoluto o cântico, a dança, os requebros, a sensual beleza, a microrroupagem e outros quês e porquês da análise de cada fã. Era a própria estrela em grandeza e não um simples pequeno raio, indicativo de seu nome artístico.

Para elas, escândalo horripilante provocado pela desinibição no trajar e no rebolear. “Horripilante pecaminosidade desvairada e chocante. O desvario obsceno. Reprodução orgíaca de Sodoma e Gomorra.” – asseveravam as matronas.

O show tornou a rumba e sua representante paixões populares, a partir daquele momento, graças às divulgações de jornais e rádios. Deu-lhe inesperada e extraordinária fama na TV Tupi e nas casas de diversões noturnas.

A também cognominada La Venus de Cuba, na estréia, afora seu mavioso vocalismo, vestiu um quase imperceptível maiô de duas peças, exibiu passes extasiantes, tidos acintosos pelas senhoras ditas tradicionais quatrocentonas.

Representante da conhecida família Whitaker formalizou manifestação de repúdio. O alvoroço ativou-se em reunião da Confederação das Famílias Cristãs e, em protesto, foi levado a Assis Chateaubriand, com o fito impedir que “a pecadora continuasse a invadir e desrespeitar a moralidade dos lares.”. 

O bispo de então, Dom Paulo Rolim, por igual, viu-se instado a reprovar as exibições e, se o caso, até excomungar a, para elas, terrível pecaminosa.

Em resposta, alegou “não ser este assunto da Igreja e que a emissora devia arcar sozinha pelas consequências.”. Daí em diante, fugiu da temática como satanás o faz da cruz.

CHATÔ, O BISPO E RAYITO

A encantadora vedete e dançante conquistou São Paulo, tornou-se a principal artista requisitada da noite paulista, com invulgar popularidade.

Chatô, a exemplo do bispo e inteligentemente, esquivou-se de comentar os fatos, deixando o assunto para exame da direção artística da TV.

Maridos e filhos das damas, atendendo aconselhamentos e aos próprios olhos, recomendaram as santas prudência e tolerância. Ah! e como adoraram sugerir as práticas naquelas circunstâncias... inclusive, enaltecendo o perdão.

Enquanto isso, a Tupi criava o semanal programa Maracás e Bongôs, exclusivamente para a saracoteadora rumbeira. Durante meses, sucesso primeiro e atração recorde de audiência.

E o ritmo cubano, irreverente e ousado, balançou os volumosos e trepidantes quadris pátrios.

EM SÃO PAULO, OUTRAS CAPITAIS E FORTALEZA

Tanto lá, quanto cá, a dançarina recebia homenagens mil.

Empreendeu turnê pelas capitais, realizando temporadas com exibições teatrais, shows especiais e participações em festas de clubes sociais.

O historiador paraense Carlos Rocque, irmão de Felix Rocque – proprietário dos Teatro Poeira e Teatro de Variedades – dedicou citações a Rayito e a “sambista Hebe Camargo” por suas participações na Festa de Nazaré. Belém homenageou, em grandioso estilo, as duas personalidades, de acordo com artigos da imprensa.

 

Patrocinada por empresas e programa radiofônico de auditório, Rayito atendeu a convites e cumpriu estada em Fortaleza.

Causou tumultos devido às multidões que atraia, quase provocando quebra-quebra na portaria do Theatro José de Alencar, em face das superlotações e consequentes esgotamentos na venda de ingressos. 


Teatro José de Alencar - Acervo Pedro Leite


Igual situação ocorreu na entrada do Edifício Pajeú, onde funcionava a PRE9 – Ceará Rádio Clube, quando a cubana chegou para abrilhantar o Programa Noturno Pajeú, comandado pelo comunicador, apresentador e radioator João Ramos.
Também em clube social a estrela de Rayito foi verdadeiramente Del Sol. Não se mostrou um "raiozinho" como sugeria no nome. Duvidasse, por ela o astro maior seria novamente vaiado na Praça do Ferreira


Estúdio da Ceará Rádio Clube 


Seus deslocamentos movimentava forte aparado policial, pois os admiradores não se continham nos desejos e tentativas de alcançar a ninfa.

Durante sua permanência entre nós, hospedada no Excelsior Hotel, diuturnamente, uma legião de admiradores postava-se na rua Guilherme Rocha na esperança de vê-la e conseguir autógrafo.

AS FOTOS E O JEJUM ESTUDANTIL

Curiosos e risíveis episódios marcaram a estada da rebolativa beldade na terra alencarina.

Os jornais Correio do Ceará, O Povo, Unitário e Gazeta de Notícias estampavam fotografias artísticas, com aberturas diafragmáticas precisas. Sobressaiam os sumários biquínis, pouco escondendo os predicados anatômicos da rebolante. Hoje, aquelas peças, segundo os estilistas já ultrapassadas e com volumoso desperdício de tecido, ofereceriam matéria prima para confecção de vários maiôs do tipo fio dental.

O impressionante residia na procura, pela estudantada, de exemplares daqueles noticiosos matutinos e vespertinos. Deles, as fotografias eram recortadas, colocadas entre as páginas dos livros escolares que, em classe e em plenas aulas, circulavam, passando de mão em mão.

Disputadas nas bancas de jornal foram, também, as edições da Revista do Rádio, onde se encontravam fotos, notícias e entrevistas com a intérprete do rebolativo estilo de música do Caribe

Acervo Amara Rocha 

Alunos do Colégio Lourenço Filho deixavam de merendar e o dinheiro da mesada destinava-se as aquisições de fotografias.

Até a Revista Saúde e Beleza, divulgadora de espécimes modelares humanas, foi esquecida.

 SONHAR COM RAYITO E ACORDAR COM APOLINÁRIO 

 À época, o desembargador Faustino de Albuquerque e Sousa governava o Estado, enquanto o inspetor João Apolinário da Silva, da Guarda Civil de Fortaleza, integrava o corpo de seguranças governamental. 
Afrodescendente, o vigilante, ao que divulgavam, possuía mais de 1,90 m de altura para um físico superior a 110 quilogramas.  
Certa feita, segundo consta, murro desferido pelo guarda na cabeça de um touro, teria derrubado o animal.

Fiel servidor do então governador e temido por sua conhecida valentia, não admitia a mínima crítica ao ocupante do Palácio da Abolição.

Opositores políticos e galhofeiros aproveitaram-se da imagem da bela para cutucar a fera.

Indagavam “Qual a diferença entre o céu e o inferno?”



Aos que não sabiam a resposta ou davam outra, retrucavam: “Sonhar com Rayito Del Sol e acordar com o Apolinário ao pé da rede.”

RAYITO CHEGOU E APOLINÁRIO PARTIU

27 de setembro de 1950. 22 horas. Igual horário ao da inauguração da TV Tupi, dias antes, em São Paulo.

Em bar das proximidades da Praça Presidente Roosevelt*, bairro Jardim América, registrou-se desentendimento entre frequentadores do estabelecimento. Travou-se renhida luta corporal, seguida de tiroteio.

Ao fim da contenda, sem vida, o corpo do inspetor Apolinário restou estendido na calçada.

A data marcou a chegada de Rayito e a partida de Apolinário


Geraldo Duarte




*Atual Praça Frei Galvão, como passou a ser chamado oficialmente o lugar.



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Agradeço ao querido amigo Geraldo Duarte 
(Advogado, administrador e dicionarista) pelo belíssimo artigo!

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