A cidade de Fortaleza, dos anos de 1940 a 1990, foi infestada por tipos excêntricos
Perambulando nas ruas centrais, chamando atenção dos transeuntes de classe média - funcionários públicos (federal, estadual ou municipal), que se deslocavam para suas repartições, quando se ia ao comércio com fácil acesso. A maioria dessas pessoas não utilizava outros transportes, a não ser o "velho bonde", percorrendo todos os bairros. Ironicamente, como uma das personagens trágicas da Grécia Arcaica - à proporção que caminhava diminuía, sem sequer perceber, a rigor, o tempo de sua extinção.
No tempo do bonde
Ao sentir essa aproximação, quer dizer, quando o progresso com a sua força avassaladora apontava novas opções de deslocamentos por ruas e novas avenidas na cidade de Fortaleza, os usuários, ante a constatação de que as coisas caminham, inexoravelmente, para a corrosão, comprimiam, no peito, as imorredouras saudades do elétrico da Ceará Light, que, aos solavancos, alertava, com a sineta o término de um percurso, com aproximação do final da linha em nossa Cidade.
O bonde Soares Moreno
A cidade de Fortaleza era, em verdade, muito bem parecida com aquela "Cidadezinha Qualquer", que o poeta mineiro, de Itabira, desenhou para os brasileiros em seu livro de estreia, "Alguma Poesia" (1930), em versos simples, cheios de elipses mentais, destilando humor e ironia, um desconsolável desencanto, sintetizando a vida besta:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Êta vida besta, meu Deus.
No contexto desse passado - apenas nítido na memória de alguns ou estampados em documentos, sejam jornais ou quaisquer outros tipos de conservação das manifestações da passagem - sempre breve - do homem entre os seus e o seu tempo -, imprimem-se sempre as figuras das pessoas excêntricas, isto é, os antissociais, os que, em síntese, não foram convidados a participar do banquete industrial ou - o que mais verdadeiramente ocorre - sequer tomaram conhecimento de sua engrenagem. Inseridos na diferença, seus comportamentos tanto recebem a leitura da ciência - a sociologia, a psicologia, a psiquiatria - ou se incorporam nas explicação místicas: muitas vezes pagam dividas cometidas n'outras vidas, voltam para resgatá-las os pecados cometidos, contra a dignidade e pudor ou, com a própria vida que ficou como garantia de orgulho, tibieza, incompreensão, que reduz a força espiritual causando diferença entre fortes.
Ainda que as figuras dos excêntricos - estes aqui representando não só os cientificamente assim classificados, mas, também, todos os que, de uma maneira ou de outra, põem-se à deriva do que a sociedade entende como normalidade: padrão de comportamento, cumprimento de deveres, exigência de direitos etc. -, melhor direi, ainda que as figuras dos excêntricos já percorram as páginas dos romances e dos cantos épicos, foi, sem dúvida, a partir da estética realista-naturalista que ganhou mais força e, de modo mais frequente, percorreu tanto a poesia quanto a ficção.
Quem não se lembra dos alunos do Colégio O Ateneu, do romance homônimo de Raul Pompeia?; do Dr. Bacamarte, protagonista de "O Alienista", de Machado de Assis? E o major Quaresma, cuja vida foi, pouco a pouco, destruída por seus desmedido amor à pátria, de tal sorte que a mesma pátria a que ele tanto amou, ironicamente, condenou-o - e por esse mesmo amor - à morte? Sem falar no coronel Ponciano de Azeredo Furtado, de "O coronel e o lobisomem", de José Cândido de Carvalho ou mesmo do Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, do romance Fogo-Morto, de José Lins do Rego.
O bonde Jacarecanga
A Fortaleza real
Nesse apanhado das figuras que se tornaram populares no cotidiano de nossa cidade, destacaremos, dentre tantas, apenas algumas.
Para tanto, utilizaremos, na composição de seus retratos, a leitura dos valores que eram os daquela época. Desse modo, não imprimimos, nesse percurso, juízos de valores nossos, ainda mais se considerarmos que, agora, os tempos são outros, e outras são as compreensões das coisas do mundo. Nada mais mutável, adaptável aos tempos do que os princípios do que seja ou não normalidade. Nesse sentido, os comportamentos transgressores somente podem assim ser entendidos de acordo com os valores e os juízos que regem uma época. Vamos, pois, em busca de algumas personagens excêntricas de nosso passado.
Beatriz
Chamado de "Bia" por todos os que lhe eram íntimos, tratava-se de uma figura de avantajada estatura, espadaúdo, tez escura azeitonada, telúrio - preto acinzentado, gestos adamados, faltando-lhe apenas (e somente como um detalhe a mais) o balaio na cabeça, ou, cantar o "tabuleiro da baiana tem... vatapá, oi, caruru, mugunzá..." para encarnar um típico representante da Bahia do famoso acarajé.
Os alunos do Liceu do Ceará, quando o viam iniciavam com intrépida galhofada, insultos, carregados por estrondosa vaia que chamava a atenção dos moradores da Praça de uma das mais importantes instituições de ensino de toda uma época, cuja imagem - hoje - revela o avesso de uma glória. Hoje não se sabe mais qual o paradeiro do Beatriz. Se vivo for deve estar perto dos 90 (noventa) anos. Se morto, não deve ter saído do limbo, vagueando por esse mundo.
Bernardo
Homossexual, morava na Rua Senador Castro e Silva, entre a Avenida do Imperador bem próximo da Avenida Tristão Gonçalves, onde também negociava. Era exímio doceiro e boleiro, cozinhava com perfeição, fornecia algumas marmitas para almoço.
Era tipo pacato e mantinha-se reservado dos seus hábitos. Não bebia nem fumava. Sua voz de acentuado tatibitate nasalizada, denunciador de voz feminina. Não fazia cerimônia dos seus jeitos. Era acima de tudo grande respeitador do seu ambiente de trabalho e todos o tratavam com o mais alto respeito.
Se por ventura mantivesse algum caso amoroso era sigiloso e não dava a perceber a quem quer que fosse. No seu estabelecimento era tudo muito respeitoso e sem liberdade ou falta de respeito por parte dos fregueses e de Bernardo.
Acerca da força destruidora do tempo
O passado inexorável se encarrega de botar impiedosamente de lado esse feixe de tempo, (o dos bondes, dos passeios nas praças, das cadeiras nas calçadas, dos verdureiros e carniceiros nas calçadas) misturado de saudade, amarrado na lembrança, como se estivesse registrado na mente cinematográfica, até em preto e branco para dar maior clareza e nitidez de um passado que se destruiu com o passar dos anos, e, pouco a pouco vai se desfazendo na nossa mente, como neve que desloca no firmamento dando lugar ao sol e lua, sem voltar nunca mais ao ponto de partida, envolvida na tristeza pela ausência da alegria daquilo que não volta mais, deixando vazia a beleza da nuvem, cujos flocos agigantados se entrelaçam, assim, harmoniosamente no firmamento, brilhando com a luz das estrelas dão mais esplendor ao espetáculo celestial.
Zenilo Almada
Matéria publica no Jornal Diário do Nordeste
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