sexta-feira, 20 de julho de 2012

No tempo de Paula Ney



Praça do Ferreira ainda com o Cajueiro da Mentira - Arquivo Nirez

A Feira Nova, a futura Praça do Ferreira, a prin­cipal de Fortaleza, teve a sua história, história que merece ser relembrada. Em 1825, chegava de mudança ao Ceará, vindo do Estado do Rio, o boticário Antônio Rodrigues Ferreira.


Estabeleceu-se naquele local, concentrando, em pouco, em seu tôrno, as atenções dos fortalezenses, pois era homem de visão larga e notável simpatia. Sua botica ficou sendo o "rendez-vous” dos políticos da terra, da gente de prol. Dado o prestígio granjeado pelos seus dotes pessoais, era, em 1848, eleito vereador e, logo mais, vice-presidente, depois, presidente da Câmara Municipal da Capital, cargo que exerceu, ininterrupta­mente, pelo largo período de doze anos, trabalhando sem­pre em prol do desenvolvimento material da cidade, e cujo nome ficou perpetuado na Feira Nova, como home­nagem póstuma dos seus contemporâneos, após seu fale­cimento, em 29 de abril de 1859. 


Arquivo Nirez


Antônio Rodrigues Ferreira, o boticário Ferreira, foi o político do seu tempo que mais influência exerceu e que maiores benefícios prestou ao aformoseamento da cidadezinha que desabrochava promissora. Até o seu tempo, a Feira Nova, — nome que se lhe aplicou em virtude de ser ali que os comboieiros costumavam expor à venda as mercadorias trazidas do sertão, — morria no beco do Cotovêlo, formada de uma linha modesta de casas modestas, em cuja extremidade se trifurcava em ruelas pobres. Dessas, uma, a que ia parar na Lagoa do Garrote, em determinado ponto, um pouco além, possuía, situado no centro da rua, grandioso e ensombrado cajueiro. À sombra dele, ficava a casa do Fagundes, o único açou­gueiro da terra. Ali matava e ali esquartejava as reges. Relembremos, com emoção, o episódio que o celebrizou, e que já foi contado, com pena de mestre, por Gustavo Barroso. Ocupava, a êsse tempo, o cargo de governador da Provincia, Luís da Mota Féu e Tôrres, homem ríspido e muito jactancioso das funções que exercia. Costumava êle passear em belo cavalo, tôdas as manhãs, e aconteceu que, certa vez, ao passar sob a frondosa árvore, seu chapéu de três bicos agaloado e com tope fôsse arrancado por um galho. Apanhe meu chapéu, gritou o governador, para Fagundes que, em mangas de camisa, gozava a fresca, assentado num tamborete. Êste não deu ouvidos, imperturbável ficou, imperturbável continuou. Luís da Mota, mais áspero, deu nova ordem. Inútil o resultado. Fagundes permaneceu impassível. Irritado, esporeou o cavalo e avançou, resoluto, na direção do açougueiro, que não se intimidou. Era homem afoito e corajoso. Jamais o haviam humilhado. Se o governador lhe pedisse com boas maneiras, com jeito cortês, por favor, ergueria, sem constrangimento. Mas, daquela forma, com grosseria e com imposições, jamais se submeteria. E foi o que aconteceu. O tom ameaçador de Mota Féu não o demoveu: Não me apanhas o chapéu, vilão duma figa, pois eu, que ia sõmente mandar cortar o galho baixo do cajueiro, agora vou pé-lo no chão e adeus açougue!
Dali seguiu, exacerbadíssimo, o Governador rumo ao Palácio, que ficava naquela casa envelhecida e escura de sujo, que se erguia, acaçapada, dentro de verdadeira muralha, na rua de Baixo, nas imediações do Mercado de Cereais.


Praça do Ferreira no início do século XX - Arquivo Nirez


A notícia esparramou-se, veloz como um raio, pela cidade quieta, desacostumada a novas dêsse jaez. Tôda a gente bisbilhotou, assanhada. A novidade era de dei­xar o fortalezense de bôca aberta. — Mas o Fagundes enfrentara mesmo o Governador? — perguntava-se, incrédulo. Era, não há dúvida, homem peitudo de fato. Já o sabiam, mas não para tanto.
O certo é que, no dia seguinte, cedo, cedinho, mal o sol despertara, já os empregados do Governador, arma­dos de machado, ameaçavam derrubar o cajueiro do Fagundes. Êsse, munido de longa faca, juntamente com meia dúzia de magarefes, pôs em fuga os emissários de Mota Féu. A notícia esparramou-Se, veloz como um raio, pela cidade quieta, contaram ao Governador o que acontecera. o qual mais irritado ficou, determinando a ida ao local de uma leva de praças de polícia. Nesse ínterim, o afoito Fagundes, que tudo previra, provocou uma espécie de levante: trouxe para a rua os açougueiros do Gar­rote, os flandeiros da rua da Boa Vista, os merceeiros da rua Formosa, os carapinas da rua de Baixo, os fer­reiros da rua do Quartel, até os pescadores da Prainha, todos os que tinham uma profissão no lugar. Traziam pistolas e bacamartes. A tropa carregou-os. Então levantaram trincheiras na encruzilhada das três ruas e abriram fogo contra ela, que recuou. Daí o nome das três ruas, perpetuando o episódio: rua do Cajueiro, rua das Trincheiras e rua do Fogo”.


Arquivo Nirez


E, encerrando narrativa tão emocionante, Gustavo Barroso escreve: “O governador desistiu de pôr abaixo cajueiro,a cuja sombra o Fagundes continuou a vender carne à cidade. A vontade dum homem só, não conse­guiu vencer a duma população inteira, O capricho dum tirano não conseguiu impor-se a uma gente que ainda tinha vergonha e brio. Defendendo sua liberdade con­tra a tirania, os antigos habitantes da humilde vila do Forte, como era chamada a nossa Fortaleza, deixaram escrito nas tabuletas de suas ruas um belo exemplo às gerações vindouras.” Era assim o fortalezense intrépido e desenvolto. Pagava para não brigar, mas, quando na briga, pagava para não sair. Perto, pertinho, branca de cal, erguia-se a velhís­sima igreja do Rosário, e, logo adiante, quase nos fundos, na rua que lhe tomara o nome, hoje Cel. Bizerril, ficava outra árvore, também histórica para o filho da terra. Era o oitizeiro do Rosário, que a cidade inteira conhecia e amava. O oitizeiro-macróbio, como o haviam cogno­minado, muitos anos depois. Ali o vimos, nos tempos da nossa meninice e assis­timos, contristados, quando a picareta do progresso o prostrou, com o geral protesto de tôda uma população. Foi Gustavo Barroso, quem o cantou em página lapidar: “Velho oitizeiro, contemporâneo da fundação da minha cidade natal, ninguém te cantou a vida centená­ria nem a morte breve. Não houve um Afonso Arinos para louvar a tua solenidade verde e triste como a do Buriti Perdido, testemunha silenciosa das bandeiras! Quando nasceste brotando tímido do solo arenoso, a vila do Forte compunha-se duma única rua torcicolosa, emparelhada ao curso do Pajeú. Aqui e ali, dela saía um beco de mocambos e casebres de taipas. A capela do Rosário, caiada de novo, dava-te as costas com des­dém. Cresceste. A capela tornou-se igreja e a tua copa chegou ao beiral do seu telhado. Por cima dos cercados e das ateiras, vias para os lados do Garrote a histórica cúpula de verdura do Cajueiro do Fagundes, que o governador Luís da Mota Féu e Tôrres quis pôr abaixo, recuando diante do poviléu assanhado e feroz. E éreis as duas árvores tradicionais da cidade que se ia formando.
O cajueiro, que servia de açougue, morreu de velhice. Tu continuaste a crescer, a deitar raízes, a aumentar a fronde, no meio dos casebres barrigudos e escuros. Viste a displicência do viajante Koster, sen­tado ao luar numa “roda de calçada” da praça vizinha. Ouviste o taciturno murmurar do governador Sampaio. Avistaste o governador Rubim vendendo apressadamente as alfaias antes de regressar a Portugal. E estremecestes rudes vozes de comando de Conrado Jacó de Niemeyer, depois de vencida a revolução de 1824.
A cidade de Fortaleza foi crescendo contigo, len­tamente, sob o sorriso azul do céu, alegre nas invernias, melancólica nas sêcas assassinas. E eras como o pastor no meio do teu rebanho de casas humildes, a cabeleira verde agitada ao vento do Atlântico como uma ban­deira. Oitizeiro velho, conhecias tôda a gente e tôda a gente te conhecia. Devia ser no teu tronco rugoso que o famigerado Padre Verdeixa amarrava o cavalo, quando ia em voz alta insultar, debaixo das sacadas do Palácio, o Presidente padre José Martiniano de Alencar. E’ possível que certa noite se tivesse agitado a ramaria àtrepidação do estrondo do bacamarte que matou o major Facundo. Decerto tuas fôlhas mais altas presenciaram por cima dos telhados o enforcamento dos réus no largo à entrada do desaparecido beco do Cotovêlo.
Durante muitos anos, a melhor escola da cidade funcionou na tua vizinhança, em frente do antigo Quar­tel de Polícia. Escutavas, recolhido, a monótona can­tilena dos meninos decorando a cartilha e a tabuada. E, quando os bolos da palmatória estalavam e os lamentos cortavam o ar, não sabias se era o decurião que cas­tigava os alunos vadios, ou se era o delegado que man­dava corrigir os escravos fugidos, os bêbedos, os vaga­bundos, os ladrões ou as rameiras. A cidade que viste nascer fêz-se moça e tornou-se mulher. Em lugar das barrigudas casas de taipa, alevantaram-se sobrados. O arrôjo dos primeiros arra­nha-céus de cimento armado espantou a tua altura vigo­rosa. Os automóveis, fonfonantes, reclamavam tua queda, porque lhes estorvavas a velocidade, tu que conhecias uma por uma as velhas traquitanas de magras pielas, alugadas pelo Golignac, mais velho do que elas. Não houve voz, pedido ou protesto que te salvassem. Condenaram-te à morte. E tu, que perderas a grade protetora, posta pela bondosa Câmara Municipal de 1877, que fôras amputado várias vêzes por estorvares as pla­tibandas dos prédios próximos, desenraizado brutalmente, cortado e recortado em achas, acabaste como lenha ofere­cida pela nova edilidade às cozinhas da Santa Casa. Mais nobre e útil do que os que te derrubaram, morreste dando o teu corpo para ferver a sopa dos enfer­mos e dos pobres. No século XVIII, o povo revoltava-se para salvar um cajueiro. No século XX, os povos não se revoltam mais por causa duma árvore que viveu com êles. .. Os povos aos poucos perderam a alma.” 


Arquivo Nirez


Fortaleza de 1858! Como eras encantadora, na tua modéstia e na tua simplicidade deliciosamente colonial. Já tinhas comoventes histórias para contar-nos, nesse tempo. . . E com que esplêndidos episódios sa­bias tecer as tuas narrativas feitas com o heroismo e com a bravura do teu povo.., da heróica e da brava gente cearense. Mais tarde, o poeta Paula Nei, teu filho dileto, em sonêto magistral, havia de evocar-te, emocionado, os olhos marejados de lágrimas, debruçado na amurada de um navio, vendo-te, distante, ao embarcar para a Côrte:


Ao longe, em brancas praias, embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.


Raimundo de Menezes

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