domingo, 9 de setembro de 2012

Olhares sobre a praia através da literatura


"Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro, com oscilações 
de um pêndulo invertido."

Adolfo Caminha

Alvarenga e catraia (embarcação menor). Arquivo H. Espínola

Durante o século XVII, a praia era frequentada pelos grupos da elite econômica que desejavam fugir da melancolia e da solidão. Então, a praia passou a ser o local de conversas ou de retiros e meditações e da manutenção ou da busca pela saúde. Nesse sentido, o mar ganha feições terapêuticas e o banho de mar passou a exercer importante papel nos tratamento de enfermidades.

A praia é o lugar que ganha sentido de espaço a partir dos seus frequentadores como: banhistas, turistas, curistas e trabalhadores. Dessa maneira, para compreendermos a praia como um espaço de sociabilidade, podemos nos remeter também aos passeios de Maria das Dores na direção da Praia do Mucuripe, uma das personagens principais do livro 'A afilhada'. Assim, Manoel de Oliveira Paiva aponta suas impressões sobre a praia e seus moradores:  

"...Subiam à Maria das Dores desejos de largar-se por ali afora, curiosamente, como se por trás de cada morro se preparassem novas paisagens, como se novas praias beirassem outros mares e regiões de outra natureza. Arrancharia nas povoações plantadas do coqueiro, nos arraiais de pescadores, nas palhoças metidas na areia como no gelo a cova dos esquimós; espraiaria-se-ia como aquelas ondas de mar, de vento, de céu, de poeira nevada.
A terra parecia findar-se na duna enorme de ponta Mucuripe, de onde descia uma alvura vagamente corada pelos tons das nuvens.
Sob o fundo dos coqueiros da povoação, viam-se branquejarem as velas das jangadas empoleiradas no seco e saídas da pesca: um acampamento de alvas barracas pontudas no poeiramento de crepúsculo. A praia vinha acompanhada, longe de uma linha escura de matos e de sítios, aqui fugindo para trás de um morro de pó, ali aparecendo como os cabelos de uma calva incompleta. E uma duna, de cimácio quase reto, encostando no escuro anil do sul, era como o dorso de um oceano de leite. Da areia porejava uma 
frescura conformativa. Porém, as educandas chegaram até a povoação. A irmã disse que já estavam muito afastadas do Meireles, e que era preciso voltar.  Descansaram num dos botes, jangadinhas a remo para um só tripulante. Maria das Dores, com a irmã, sentaram-se no banco do remeiro. Veio-lhe de súbito um desejo de ir-se naquela jangadinha pelo mar adentro, e puxou a sua ex-preceptora a conversar sobre viagens."

Vista de 1950 - Dunas do Mucuripe (hoje é o Serviluz) e a orla do Meireles sem prédios. IBGE

Para Maria das Dores o passeio pela praia proporcionou-lhe momentos de contemplação e prazer, chegando a enxergá-lo como espaço de liberdade, pois poderia conhecer outros lugares através da viagem pelo mar. O espaço da praia para Das Dores era marcado pela beleza da paisagem natural e as intervenções humanas. Essa era uma visão do século XIX que compreendia a praia como espaço que favorecia o bem-estar das pessoas. Após o passeio, Maria Das Dores passou a observar a praia e o mar com olhos mais sensíveis: “Gostava de avistar os caminhantes, lá por longe, pela beira da praia, meio ocultos pela ribanceira do areal, e fitava agudamente o ponto branco das jangadas na risca do mar”.

A praia, com o decorrer dos séculos, passou a ser utilizada para a manutenção da saúde, fundamentada pelo discurso médico vigente, o que provocou um afluxo de enfermos que buscavam a cura de doenças, em sua grande maioria de membros das classes dominantes, tomados pela tristeza, melancolia e, passaram a ter nos contatos com as ondas, uma maneira de tratamento médico.

No  livro Mississipi, Gustavo Barroso descreve que “os bandos que buscavam as praias movimentavam-se a ida, mal caía à noite, e regressavam para a ceia o mais tardar às oito horas”. Enquanto alguns iam à praia ficavam as senhoras a preparar o jantar, pois diziam que o banho de mar abria o apetite, e também ajudava na cura de doenças como o beribéri, pois tinham a idéia da função terapêutica do mar.
Os médicos e higienistas do século XVI já pensavam na importância do contato com a água do mar e a contribuição à saúde das pessoas através de diferentes ambientes, não somente nas praias, mas também nas montanhas, para fugir das transformações da “vida moderna” que se avizinhava. Para os higienistas, a praia representava limpeza e a diminuição da proliferação das epidemias.
Além da utilização para fins terapêuticos, o mar era um espaço de sociabilidade. Afinal, as pessoas passaram a ter o hábito de se reunirem nas “noites de lua” para ir à praia, pois esse horário era recomendado pelos médicos, principalmente aos indivíduos escravos do conforto, que não sabiam andar senão sobre tapetes; em outras palavras, as pessoas “presas ao luxo”:

Arquivo H. Espínola. Antigo trapiche Ellery.

"As meninas, moças e senhoras, acompanhadas de mucamas e moleques, guardadas pelos homens da casa, de cabelos caídos aos ombros, saia e blusas, arrastando chinelas, desciam pelas ladeiras do Gasômetro, da rua de Baixo, do Boris e da Conceição para as praias da alfândega e do Pocinho. 
Na primeira sobre o costão arenoso, alinhava-se uma dezena de barraquinhas de madeira, construídas por gente de recursos, nas quais se operava a mudança de roupas. Quem não possuía um desses refúgios, despia-se e vestia-se na própria praia, por trás duma empanada de lençóis estendida pelas criadas. A ocasião era propicia para certos namoros breves recados dos coiós, mas com os maiores cuidados, porque pais e irmãos vigiavam ciosamente o mulherio. Os costumes da época obrigavam os homens a se banharem separados das mulheres, que usavam sungas de baeta grossa geralmente vermelha, as mangas chegando aos punhos, as calças descendo até os tornozelos e a gola afogando o pescoço. Não se via, afora a cabeça, as mãos e os pés, um tico de carne."

Segundo Gustavo Barroso, os banhistas precisavam pegar o último bonde de nove horas, descrevendo a maneira que as mulheres saíam do banho e eram acompanhadas por meninotes que carregavam as roupas molhadas que pingavam pelos passeios. Enquanto ocorriam essas movimentações na praia “a lua boiava alta, muito redonda, no céu limpíssimo”.

João Mississipi, personagem principal do romance, guardava na sua memória as paisagens de Fortaleza, proporcionando-nos um passeio pela cidade e ressalta a pobreza marcante da sua cidade natal. Assim Barroso descreveu suas lembranças:

"...dava-lhe o pensamento ganas de voltar rapidamente ao Ceará e rever aquilo. 
Mas logo encolhia os ombros magros ao sentir que dessa paisagem, tão viva na memória, as figuras humanas - mãe e os irmãos - tinham desaparecido para sempre e os aspectos materiais já não eram os mesmos."

Para João Mississipi, as paisagens apesar de terem sido modificadas, permaneceram imutáveis e vivas na sua memória. Mesmo depois de cego, afirmava conhecer toda a cidade de Fortaleza e guardava-a na memória, ressaltando que “agora” precisava conhecê-la através do olfato, devido à cegueira.
Na descrição de Barroso, a partir do Porto ou da “terra firme”, essa era a visão que se tinha do mar:

"Além da alfândega nova, montado sobre estacas, ficava o trapiche da Guardamoria. Nas grandes marés de agosto, as ondas venciam o costão arenoso e se espraiavam debaixo daquela comprida construção de madeira pintada de azul. Corria paralela, vencendo um maceió do poço da Draga, ultima vestígio do projetado porto, uma grande ponte de ferro que unia a Alfândega ao quebra-mar atolado no areal."

A partir desta descrição da região portuária, podemos perceber a visão que os trabalhadores catraieiros tinham do mar através das suas ações cotidianas do trabalho. 

No romance 'A Normalista',  percebe-se a presença marcante do mar na dinâmica da cidade, quando Adolfo Caminha descreve o vai-e-vem de pessoas no Porto e na praia:

"O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto."  

Foto do Poço da Draga em 1932

Visualizamos a praia como sendo um espaço marcado pelo movimento dos trabalhadores, passageiros e transeuntes, que admiravam o movimento das águas. Para esses trabalhadores o mar podia ser visto como local fundamental para a retirada do sustento da sua família e local de dura rotina de trabalho. Ou seja, ao mesmo tempo em que era fonte de vida, era também de cansaço. Daí a pertinência de afirmarmos que “nada pior que o mar para cansar um homem, por mais forte que seja”.
E o catraieiro, ao transportar carga e pessoas sobre a água, tinha que possuir além da força física, habilidade para esse trabalho, além de depender das condições da embarcação que manobrava para realizar de maneira satisfatória sua função. 
Porém, os fatores abordados anteriormente estavam à mercê do “humor” da natureza, como no caso do barco “São Raphael” que precisou de um “comcerto urgente, ou seja rebaixar as bordas, pois altas como são, não se presta para o serviço de transporte de sal, porque no balanço, bate contra  navios e arrebetam-se como de facto se acham...” (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Esses trabalhadores estão diante de mais uma relação de tensão, posto que o mar se apresentava de maneira dual através dos aspectos favoráveis e desfavoráveis na lida diária. O mar, local de onde retiravam o sustento da família, era também marcado pelas batalhas cotidianas para dominar a embarcação e realizar o transporte das mercadorias sem provocar prejuízos ou até mesmo acidentes no trabalho. 
Com as lutas, diante do movimento das marés, o catraieiro, na sua atividade diária, precisava saber lidar com as adversidades causadas pela força dos ventos, elemento fundamental para o funcionamento da pequena embarcação, muito susceptível às ventanias. Como podemos perceber na descrição do serviço de carregamento do escaler “São Raphael” para bordo do Vapor Grão-Pará que foi prejudicado devido às dificuldades impostas pela força dos ventos.

"Na primeira viagem que dei, foi-me precizo fundar a noite para entrar no outro dia, devido ao mar e forte ventania sucedendo porem partirem-se as 2 amarras, e correndo porem grande risco de naufrágio fora da barra, consegui salvar o “S. Raphael”. (MOREIRA, Trajano. Telegrama Aracaty - Fortaleza, 17 de novembro de 1903. Documentação da Casa Comercial Boris Frères.)

Serviço de carga e descarga dos navios, através de alvarengas, 
escaleres e catraia na década de 1930. Arquivo H Espínola.


Apesar das nossas limitações para identificar a visão dos trabalhadores catraieiros sobre o mar de Fortaleza, partimos da idéia de existirem adversidades impostas pela natureza e que estas fizeram parte das experiências vivenciadas pelos catraieiros no Porto, de modo que foram fundamentais para a elaboração de uma percepção sobre a importância do mar nas suas vidas.



“Todo cais é uma saudade de pedra”: Repressão e morte dos trabalhadores catraieiros
(1903-1904) - Nágila Maia de Morais

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