sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Vilas em Fortaleza



A Vila Diogo - Arquivo Zé Tarcísio

As vilas ainda fazem parte da paisagem urbana da cidade. Localizadas em zonas próximas ao Centro ou na periferia, os seus moradores ainda conservam hábitos que trouxeram da vida rural, como por exemplo: a solidariedade. Outra demonstração da vida pacata de outrora nestes locais, é o hábito dos vizinhos se sentarem nas calçadas, todos os finais de tarde.

A urbanização acelerada transformou não apenas a paisagem das cidades, mas também as relações interpessoais. Nas vilas, independente de onde estejam localizadas, as pessoas se sentem mais próximas umas das outras. E essa proximidade diminui a sensação de insegurança. “Atualmente, a gente só fica na calçada até às 8h (20h)”, afirma Raimunda Silva de Holanda, 80, moradora da Vila Azul, localizada na esquina da Rua Padre Mororó. E justifica: “Hoje, não se pode mais confiar em ninguém”.

Casinha na Vila Diogo - Arquivo Zé Tarcísio

O medo da violência, como relata uma das moradoras mais antigas da Vila Diogo, localizada entre a Avenida do Imperador e a Rua Princesa Izabel, vem interferindo na estética dessas construções. “Antes, a gente só fechava a metade da porta, atualmente, só vai com o cadeado”, admite Sônia Alves, 62, natural de Camocim, há 39 anos moradora da Vila Diogo.

Apesar da modernidade, as vilas ainda guardam um pouco do bucolismo de outros tempos, quando as casas não precisavam de grades e nem de cadeados. O crescimento das famílias fez com que algumas ganhassem um segundo pavimento, como é possível observar na Vila Diogo.

 A Vila Diogo e suas duas saídas, uma para a rua Pedro I e a outra para a Duque de Caxias onde morou o artista José Tarcísio Ramos.

Estes espaços conservam características especiais como o contato com a vizinhança. “Se há uma necessidade a gente sabe que pode contar com o vizinho, garante Sônia Alves, que lamenta ter trocado a meia porta pela grade e o cadeado. No entanto, a falta de segurança não é suficiente para acabar com o hábito que sua mãe conserva até hoje, aos 90 anos: sentar na calçada, todos os dias, no fim da tarde. A gente faz isso diariamente, a partir das 4 horas (16h).

A moradora da Vila Diogo confessa ter saudade do que ela chama de “outras épocas”. Conta que era uma tranquilidade a morada no local, reclamando que os costumes estão sendo alterados. “Antes, todo mundo ficava na calçada até tarde, o que não é mais possível”. A vida era menos corrida, daí as pessoas terem mais tempo para uma conversa mais demorada no início da noite.

Vila Diogo

Durante a semana, assegura que a vila tem mais vida porque há movimentação de carros e pessoas. Agora, aos domingos, a situação muda. “É muito esquisito”, diz Sônia Alves. No geral, avalia a convivência como calma. “De vez em quando aparece um gaiato para mexer no cadeado”, ressalta. Para completar a segurança, a moradora cria uma cadela. “Ela é pequena, mas é esperta”, brinca.

Para alguns moradores, a convivência com a vizinhança é indiferente. São pessoas que chegaram recentemente, portanto desconhecem os antigos laços de amizade que une os antigos moradores da Vila Diogo. “Moro aqui desde 2000 e para mim não há tanta liberdade assim”, admite João Ramalde, 67 anos, aposentado. “A porta tem que está sempre fechada, não pode relaxar”.

Vila Diogo

Algumas vilas sofreram bastante alterações como é o caso da Vila Romero. Ela fica localizada no final da Rua Governador Sampaio, próxima ao riacho Pajeú. A maioria das casas foi remodelada e pouco resta da antiga vila. 

Industrialização provocou mudanças

A urbanização, fenômeno que ganhou impulso no Brasil, sobretudo no século XX, a partir da industrialização, contribuiu para profundas transformações na vida socioeconômica e cultural da população. A mudança da população do campo para a cidade foi uma delas, favorecendo o surgimento de pequenas vilas operárias nas proximidades das fábricas instaladas.

Na Vila Azul, os moradores mantêm o costume de se sentar na calçada, todas as tardes e noite. Foto Diário do Nordeste

Em Fortaleza, a exemplo do resto do País, não aconteceu diferente. A Avenida Francisco Sá é um exemplo e ainda hoje conserva várias dessas construções do início do século passado.

Formadas por pequenas casas, algumas são famosas como as vilas Diogo, Azul e Romero, localizadas no Centro da Capital cearense. Este é o caso da Vila Azul, que fica na esquina da Rua Padre Mororó com a Rua Pedro I. O local é enaltecido por seus antigos moradores por ficar próximo “de tudo”.

O “tudo” inclui o comércio central e o Mercado São Sebastião. “A vila fica no Centro. Mas não precisamos ir ao comércio de lá”, explica Maria Helena de Almeida, 50, há 60 anos mora no local. “A gente compra tudo no São Sebastião”.

A Vila Azul

A Vila Azul é formada por sete casas, esteticamente diferentes, uma vez que as construções sofreram interferência dos moradores. Algumas das construções foram revestidas, outras, conservam a pintura.

Francisco César Simão, 70, natural de Quixadá, cidade do Sertão Central, há 50 anos mora na primeira casa da vila, herança de família. Conta que a vila era totalmente desprovida de infra-estrutura.

“Agora, só falta o asfalto”, enumerando o que já foi conseguido. “Temos água e esgoto”, diz, afirmando que quando chegou só tinha energia.

Vila Azul - Infelizmente esse caminhão atrapalhou tudo!

O aposentado conta que a vida na vila é tranquila, por isso não tem medo de se sentar na calçada. “A gente só não se arrisca ficar até tarde”.

Sentimento semelhante tem a aposentada Márcia Benevides Soares, 78, há quase 40 anos residente na vila. Ela lembra que chegou ao local acompanhada pelo marido, já falecido e por cinco filhos.

“Eu sou feliz por morar num lugar tão tranquilo e seguro, afirma a aposentada.

Iracema Sales

Crédito: Diário do Nordeste

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Casarões no entorno do Dragão do Mar


No início do século XX, esses casarões que hoje emolduram o Dragão do Mar, funcionavam como empresas de importação e exportação. O bairro chamava-se Outeiro da Prainha. Até os anos 50, essa área também acolheu casas de tolerância.

O espaço hoje ocupado pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O bairro era chamado de Outeiro da Prainha. Foto da déc. de 20/30. Nirez

Nos anos 80, artistas começaram a se instalar por ali. O artista plástico José Tarcísio (Foto ao lado) foi o primeiro deles. No final dos anos 90, uma parceria entre a Fundação Roberto Marinho e Tintas Ipiranga viabilizou o projeto Cores da Cidade, procedendo a restauração e pintura das fachadas de 58 prédios da área. Eu achei que ficaram lindos e vocês? 

A maioria desses casarões se localizam na rua Dragão do Mar, que foi incorporada ao Centro Cultural e pedestrianizada entre a Rua Boris e o prolongamento da Almirante Jaceguai, às margens do equipamento.

Prédio que já serviu de repartição pública, foi demolido para dar lugar a rampa do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Arquivo Nirez

O Restaurante Buoni Amici’s por exemplo, ocupa dois charmosos casarões com cerca de 100 anos. Em um, fica o Buoni Amici’s Pizza e no outro, o Buoni Amici’s Sport Bar, onde são realizados shows e eventos culturais.



Os casarões são em estilo neoclássicos e foram transformados em bares, restaurantes e casas noturnas.

Prédio do SOEC*, onde hoje é o Centro Dragão do Mar na Rua Dragão do Mar nº 81. Acervo de Manoel Enéas Alves Mota

No final da década de 1980, enquanto a Praia de Iracema fervilhava com os encontros multiculturais em pontos como o Cais Bar, Estoril e Pirata, um pouco mais à frente, nas proximidades da antiga alfândega, apenas casas de prostituição, galpões e velhos casarões abandonados compunham a cena do local. Prédios residenciais e restaurantes finos nem sonhavam em investir por ali, mas foi no meio dessa zona que, em 1983, o artista plástico Zé Tarcísio** decidiu se instalar, ocupando o casarão deixado pelo também artista plástico Hélio Rôla. Um casarão antigo, com pé direito alto, espaçoso e aluguel baratíssimo era o ponto ideal para montar um ateliê de arte.


O Dragão do Mar durante sua inauguração em 1999 e durante sua construção. À frente, à direita, a torre da Casa Boris. Ao fundo, o Seminário da Prainha e a Biblioteca Menezes Pimentel - Fotos de Gentil Barreira 

Foto Fortaleza2007

Depois dele - entre tantos outros -, vieram Tota, Sérgio Pinheiro, Kazane, Caetano, Mestre Pedrinho, Júlio Silveira... No início dos anos 90, o bairro virara um polo de ateliês e galerias de artistas cearenses. Muitos se chegaram atraídos pelos mesmos benefícios de Zé Tarcísio, outros, no entanto, foram na esperança de ver sua arte deslanchar com a abertura do esperado Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em 1999***.


Panorama do ateliê do artista plástico e colecionador cearense Zé Tarcísio - Acervo Overmundo

Antônio Severino Batista, mais conhecido como Tota, foi um deles. Ele se instalou por ali em 1997. “Nós fomos com a esperança de vencer, de melhorar. O referencial da cultura do Ceará era lá”, lembra Tota.


Onze anos depois da inauguração do Centro Dragão do Mar, o equipamento que deveria ter atraído ainda mais artistas e equipamentos culturais para o seu entorno assiste a um dos últimos espaços de arte das redondezas dar adeus ao local. A Galeria do Tota fechou suas portas para reabri-la na rua Pereira Filgueiras. “Quando o Dragão foi inaugurado, eu lembro muito bem que eu fui contar as galerias de arte: tinham 28. Onze anos depois, só tinha eu e o Zé Tarcísio”, recorda o artista. “Eu não tenho nada contra o Dragão do Mar, mas não dá mais. Hoje é o ‘dragão dos bares’ ”, desabafa.


Foto Fortaleza2007

Daqueles tempos de abandono, Zé Tarcísio foi o único que resistiu às mudanças (e problemas) atraídas pelo Dragão do Mar para a área. Ele viu o local ganhar nova vida, se encher de gente e, paralelamente, viu a especulação imobiliária fazer seus companheiros deixarem o local para dar lugar aos bares e boates. “Antes era barato, não era uma zona privilegiada. Com a criação do Dragão, a especulação imobiliária começou a querer mais dos artistas e aí foi saindo um, saindo outro...”, pontua. “O Dragão não tem culpa, ele é uma peça necessária”, ressalva.



Sérgio Pinheiro, que manteve seu ateliê por ali entre 1991 e 2007, foi um dos que precisou sair porque não tinha mais condições de pagar o aluguel. “Quando o Dragão surgiu, todo mundo quis, mas como artista não tem dinheiro, os bares ganharam”, diz. Ele conta que, na época, muitos se apegaram à ideia do então secretário de cultura do Governo do Estado e um dos idealizadores do centro cultural, Paulo Linhares, de desapropriar dois quarteirões do entorno do centro cultural para instalar o “Quarteirão dos artistas”, no qual os casarões seriam ocupados de acordo com a concessão do governo. O projeto não saiu do papel.


“O Banco Mundial se interessou, mas o Tasso Jereissati, então governador, achou que não era prioritário na época”, explica Linhares. Para ele, o projeto ainda se faz necessário e tem urgência. “Esse projeto tem que ser feito urgentemente, senão vai degradar. O Dragão era para liderar as mudanças do entorno. A compreensão de que o Dragão precisa dessa sinergia com o entorno é necessária”, conclui.


A atual gestora do CDMAC, concorda que há urgência para resolver essas questões. “Nós temos essa preocupação, mas falta decisão política para fazermos essa articulação”, diz. É necessário uma articulação dos poderes municipal e estadual em busca de soluções para o entorno do Dragão do Mar.

Foto Fortaleza2007

Saiba Mais


No final da década de 1990, os casarões das ruas Dragão do Mar, José Avelino, Boris, e outros ficaram tomados por ateliês e galerias de artes. Inaugurado em 1999, o Centro Dragão do Mar atraiu ainda mais artistas para o seu entorno. Hoje, no entanto, apenas o artista Zé Tarcísio resiste à especulação imobiliária e às mudanças trazidas pelo equipamento. Para o lamento de quem viveu e vive por ali, ao invés de outros equipamentos culturais, o que se vê na redondeza são bares, boates e outros equipamentos ligados ao entretenimento.



*Em 20 de julho de 1971, surge, através da Lei nº 9.498, a Superintendência de Obras do Estado do Ceará - Soec, hoje extinta.


**Quando o artista chegou, o lugar era conhecido como zona do meretrício da cidade, havia ainda alguns escritórios de importação e exportação, lugar de passado glorioso. Zé Tarcísio trabalha e mora no atelier da rua Dragão do Mar até hoje.


Rua Dragão do Mar quase esquina com Almirante
Jaceguai. Foto de 1935 de Robert S. Platt
***O Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foi inaugurado oficialmente no dia 28 de Abril de 1999, data em que o Governo do Estado “entregou” o equipamento para o povo cearense. No entanto, o Dragão começou a funcionar experimentalmente desde 28 de Agosto de 1998.
O projeto Dragão do Mar é largamente criticado por arquitetos e planejadores urbanos por diversos aspectos, como sua escala monumental, que briga com a das edificações do entorno, o desrespeito aos casarões e galpões antigos, a demolição de alguns sobrados e a falta de referências locais, contrariando o discurso dos arquitetos autores do projeto.

Rua Dragão do Mar quase esquina com Almirante
Jaceguai.
Após um período experimental de oito meses, em 
28 de abril de 1999 

inaugura-se e entra em pleno funcionamento, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, 30 mil m² divididos em salas de exposições, cinemas, teatro, anfiteatro, auditório, planetário, café, ateliê de arte, salas de aulas e espaços para "shows".

Dentro do Centro, são também inaugurados o Planetário Rubens de Azevedo, pelo próprio, e o Anfiteatro Ministro Sérgio Mota.

Os arquitetos foram Antônio Fausto Nilo Costa Júnior e Delberg Ponce de Leon.
Localiza-se na Rua Dragão do Mar nº 81, na Praia de Iracema.



Créditos: Bodega Cearense, Viação Dragão do Mar, O Coração e o Dragão - Perspectivas de vida urbana em uma cidade fragmentada (Vol. 1), Nirez e pesquisas pela internet

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O cordão das "Coca-colas"



O cordão das "coca-colas" foi criado logo após a guerra por um grupo de sargentos da Aeronáutica, como uma brincadeira em cima das moças que namoravam os soldados americanos. Fez sucesso pelos anos a seguir e chegou a ser um dos pontos de maior atração no Carnaval de rua de Fortaleza.

Nos idos de 45, terminada a Segunda Guerra Mundial, os soldados americanos retornavam ao seu país de origem e as "coca-colas" ficaram desativadas. Mas não estavam mortas, tanto assim  que continuavam a desfilar seu charme e sua elegância pelas streets da urbe, motivando as mais variadas reações: as velhas e respeitáveis matronas, guardiãs da sagrada moral cristã, resmungavam, olhavam de esguelha, condenavam as meninas ao fogo eterno do inferno e até benziam-se. "T'esconjuro, filhas do mal!" As muito feias (que me perdoem) e desprovidas dos bafejos da deusa da beleza davam muxoxos e olhares de desdém. Despeitadas! As crianças ficavam boquiabertas ante aqueles mulheraços, verdadeiras afrodites, desafiando os costumes e a chamada Moral vitoriana
_"Mãe, que moça linda!" e a mãe puxando o rebento pela orelha: _"Não olha! É uma 'coca-cola!'..." Quanto aos homens, bem, os homens olhavam em torno, conferindo a possibilidade de uma possível reprimenda e, quando a situação se mostrava favorável, tascavam o infalível fiu-fiu e mais alguns galanteios nem sempre aprendidos nas cartilhas das boas maneira. Alguns até apelavam para a grossura. Vôte!

Mas elas passavam incólumes, sem olhar para os lados, que mulher de classe só olha para frente. E do altos das suas elevadíssimas sandálias Gilda. Pois, como já dizia o poeta Zé de Sales, "os cães ladram, mas a caravana passa". E as "coca-colas" passavam...
E passavam. Pois hoje, elas, que representaram (ou foram) o fenômeno de uma época, são, agora, apenas vagas lembranças de pessoas mais velhas. Nada foi escrito, nenhum registro foi feito. Os preconceitos não o permitiram. Acredito que tenha passado pela cabeça de algum jornalista da época documentar o fato numa grande matéria. Mas os pudores falavam mais alto. Está claro que toda sociedade se levantaria contra a "imoralidade."


Década de 40 - As Coca-Colas com os militares

As "coca-colas" surgiram, simultaneamente, com a chegada dos soldados americanos que aqui instalaram uma base aérea, no alvorecer dos anos 40. Melhor dizendo, elas foram consequência da permanência daqueles militares ianques em nossa capital. O epíteto coca-cola surgiu do fato de elas terem o privilégio de tomar o famoso refrigerante americano que, àquela época, a gente só conseguia "saborear" através dos filmes made in Hollywood. Também, por ser a Coca-Cola um dos mais conhecidos símbolos americanos. Em suma, foi alguma mulher feia e despeitada ou algum machão desiludido quem apelidou as atrevidas moças de "coca-colas."


O cordão das "coca-colas" - Arquivo Nirez

Da mesma forma como faltou, até agora, quem resgatasse a memória das "coca-colas", não surgiu, ainda, um sociólogo ou mesmo um psicanalista para elaborar um profundo estudo sobre o fenômeno. Doce e nostálgico fenômeno do qual pouquíssima pessoas se apercebem. Pois elas representam, há mais de quarenta anos, os anseios das mulheres de hoje: o profundo desejo de liberdade, a emancipação, o assumir as suas próprias vidas.

O que mais causa estranheza e que torna o capítulo "coca-colas" um fenômeno sem explicações é o fato de que, sendo Fortaleza, naqueles idos, uma ingênua província de cerca de duzentos mil habitantes, apenas 10% da população atual, tenha surgido um punhado de moças para enfrentar todos os preconceitos da moral cristã da época, afrontar as próprias famílias e, o que é pior, as maledicências dos vizinhos, numa atitude que, até nos dias atuais, ainda chocaria muita gente.


Soldados americanos dançando no Estoril com as Coca-Colas, durante a Segunda Guerra. Acervo Will Nogueira

Sabe-se que as guerras geram tragédias de todas as espécies, sendo uma delas a prostituição de jovens como única maneira de mitigar a fome e obterem recursos para ajudar familiares. Mas não era esse o caso de Fortaleza, distante dos campos de batalha e sem outras consequências mais danosas, exceto a paralisação das importações, quando o Brasil dependia, em grande parte, dos produtos oriundos da Europa. Por outro lado, essas moças, regra geral, eram bem nascidas, provinham de famílias até tradicionais de nossa terra, viviam bem, moravam bem, não havendo, portanto, o fator carência financeira. Elas namoravam os soldados americanos, assim como um outro grupo namorava os cadetes, da mesma forma como, após elas, outras moças se interessavam pelos sargentos da nossa base aérea. "Ai, da base!..."


Em plena Praça do Ferreira, O Jangadeiro era outro front na batalha das "coca-colas" contra os preconceitos. Ali, elas tinham encontros vespertinos com os soldados do Tio Sam.

Estudando-se mais a fundo a questão, chega-se à conclusão de que se tratava de um punhado de mulheres de mentalidade evoluída, sendo obrigadas a viver numa pequena cidade sem maiores opções, além das monótonas sessões de cinema, do lanche no O Jangadeiro, o passeio de bonde, olhar as vitrinas das lojas mais aristocráticas, fazer o footing nas praças. Os soldados ianques trouxeram outras opções, ajudaram a tirar da rotina, a vida desmotivada da cidade modorrenta. E elas queriam ser diferentes, queriam sair da rotina, ver caras novas, não serem obrigadas a namorar os rapazes locais, conhecidos e manjados.

E como eram as "coca-colas", indagam as pessoas mais jovens, quando escutam falar no assunto. Era mulheres maravilhosas, lindas, elegantes, vistosas, educadas, imponentes. Eram estrelas cintilantes que brilhavam com luz própria, a luz da personalidade e do desafio. Estrelas de um firmamento sem estúdio nem palcos iluminados. Eram mulheres inteligentes, luminosas e iluminadas que souberam viver uma época, tirar proveito de um instante, de uma fase, de um flash da vida para fazer uma eternidade. Pois elas nunca serão esquecidas. Viverão sempre, no coração daqueles que as viram e admiraram, embora (e infelizmente), sem coragem de dizer. Pois, as "coca-colas" eram tabu. E hoje, quando quase todos os preconceitos já ruíram por terra, muita coisa já se apagou da memória.


Mas há de aparecer alguém que faça justiça a essas mulheres tão maravilhosas e incompreendidas na época. Alguém que as efetive na história de Fortaleza. Não como algo burlesco ou ridículo, ao contrário, como uma passagem bela e, por que não dizer, como um original capítulo da nossa cultura.


A Vila Morena, na Praia de Iracema, transformada em clube dos oficiais norte-americanos durante a Segunda Guerra, era reduto das atrevidas "coca-colas", as moças da sociedade local que tinham coragem de enfrentar as críticas e condenações e assumiam a soldadesca invasora.

Que apareça alguém para documentar aquele instante tão alegre da nossa província e as divinas personagens  que se escreva um livro  ou se monte um musical. Que seja um balé ou uma opereta. Uma novela para tevê, até um filme. Para tudo se presta a história das "coca-colas". O cenário seria o velho Estoril, de tantos fatos, de tantas histórias. Pois, foi ali, na bela Vila Morena, que os soldados americanos transformaram em base, que o cordão das nossas alegres "coca-colas" fazia a festa. Uma festa que parecia não ter fim, quando, nas madrugadas, de longe se viam as luzes e se escutavam os cantos e os risos de alegria esfuziantes de uma juventude que queria, antes de tudo, viver.



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Livro Royal Briar de Marciano Lopes

sábado, 24 de novembro de 2012

Bairro Couto Fernandes - Muitas histórias na linha do trem


Viaduto na Avenida José Bastos. "Esse viaduto não existe mais... Tem um novo no lugar ainda sem uso... É quase a divisa entra Rua Carapinima e Av. José Bastos. Sobre esse viaduto passava o trem. Mais a frente hoje tem o shopping Benfica e ao lado direito, temos o Hospital Myra e Lopez. A foto data de 1977, ano da inauguração do viaduto, mas deve ter sido alguns meses depois, pois já está poluído visualmente." Nirez 


Em 1º de agosto de 1940, inaugura-se a Estação Ferroviária do Km 8, a 7.166 metros da Estação Central.
Posteriormente denominou-se Estação Ferroviária Couto Fernandes, homenagem ao engenheiro Henrique Eduardo Couto Fernandes.

Antes, o trem. Hoje, o Metrô de Fortaleza. Aqueles que moram no bairro Couto Fernandes, nas proximidades da Rua Ceará com a Tamoios, nem tentam esconder a íntima relação com o transporte ferroviário. Afinal, durante anos, desde 1940, quando foi inaugurada, a 2009, ao ser demolida para o metrô passar, a Estação Couto Fernandes esteve presente no dia-a-dia dos cearenses, que acompanharam inclusive mudanças na sua estrutura original, em 1980.


Usina de tratamento de dormentes, hoje desativada, da RFFSA em funcionamento nos anos 1970 junto à estação de Couto Fernandes (Acervo Estações Ferroviárias).

A relação com os trilhos é tamanha que o bairro, como lembram os moradores, era conhecido por "Quilômetro 8", por conta de ser essa a distância da Couto Fernandes à Estação João Felipe, no Centro. Isso, diga-se de passagem, sendo o nome oficial dele uma referência ao engenheiro maranhense Henrique Eduardo Couto Fernandes, que foi inspetor de estradas de ferro e administrador da Rede de Viação Cearense (RVC), entre os anos de 1915 e 1922.

Fotógrafo Francisco Edson Gurgel de Aguiar na entrada, assim q se atravessa a Avenida José Bastos, vindo do Pan Americano. Ao longe vemos o ônibus Couto Fernandes. Década de 50/60

Em 03 de agosto de 1955, a estação ferroviária do Quilômetro Oito passa a denominar-se Couto Fernandes, em homenagem ao engenheiro Henrique Eduardo Couto Fernandes.

Mesmo após tantos anos, as lembranças de "um tempo bom" de surf no trem, idas e vindas ao Interior, festas próximas à estação e até namoros estão na memória de moradores como o carpinteiro Josimar Alexandre, o "Paraibano", de 66 anos. Segundo ele, que há 34 anos veio da Paraíba para o bairro, a rotina de tempos atrás era de vendas de churrasquinho e laranjas no Clube dos Ferroviários e de dança no clubes Romeu Martim e Cotó Edifício. "Ia para os clubes ganhar dinheiro. Fazia um sucesso enorme o churrasco com a laranja descascada", recorda.

Antigo trem suburbano da RFFSA passa com os "surfistas ferroviários" próximo à estação de Couto Fernandes, por volta de 1984 (Acervo MIS - Museu da Imagem e do Som do Ceará). 

Por sinal, ressalta, o seu casamento, que perdura há 42 anos, foi possível graças à estação. Sua esposa, na época, era agente de transporte da Couto Fernandes. "Conheci a mulher nas idas ao local. Gostava da estação, mas gostava mesmo era dela", lembra. Assim como ele, a comerciante Maria do Carmo Barros da Silva, 61 anos, refere-se a andar de trem como um tempo "divertido". Moradora do bairro desde os 17 anos, Maria não esquece das possibilidades de deslocamento.

Como explica, bastava chegar à estação para que idas a outros bairros e a cidades do Interior fossem possíveis de forma agradável e rápida. "Gostava demais de andar de trem. Hoje, quase não saio daqui porque não consigo andar de ônibus. Tomo remédio para nervos e pressão e não consigo ficar em ônibus porque são muito lotados. Espero que, com o metrô, volte a andar nos trilhos", compartilha.

Demolida em 2009, para a construção do metrô de Fortaleza, a estação com o nome do bairro deixou lembranças.  Foto de José Leomar

É o que também espera o autônomo Antônio Jerônimo Soares, 65 anos, que há 34 mora na casa 5.280, nas margens do que era o trilho. Na sua opinião, a convivência com o trem foi boa. Porém, nada de ter saudades. Agora, defende, a ideia é aproveitar o que o presente oferece. "O trem esteve aí para quem quis. Facilitava o transporte. Faz falta enquanto o metrô não começa a funcionar. No entanto, não tenho saudade, porque agora é a vez do metrô".

Hoje, o espaço por onde passavam os trilhos abriga a sustentação do metrô de Fortaleza. Para os moradores, o tempo de viagens e festas deixou saudades em um dos menores bairros da Capital. Foto de José Leomar

Por possuir apenas 35,60 hectares, o bairro é considerado pequeno diante de tantos outros de Fortaleza. Por isso mesmo, muitos vizinhos e moradores se conhecem há anos. O que torna, para muitos, um lugar tranquilo para se viver e formar famílias. Como boa parte dos moradores é bastante antigo no bairro, a amizade entre os vizinhos é uma característica forte, assim como a lembrança dos bons tempos.

Foto de José Leomar

Apesar de ser considerado um bairro calmo, o lugar oferece vários problemas de infraestrutura. Não há espaço apropriado para o lazer, seja de crianças ou adultos. Além disso, é possível sentir o mau cheiro, ao andar pelas ruas, pois, em vários trechos, há esgoto no meio das vias. Por outro lado, no trecho onde ficavam os trilhos, não há asfalto ou calçamento, gerando poeira nas casas e alergias.

Na Praça dos Idosos, já na Av. José Bastos, o acúmulo de lixo toma conta do espaço público, que ainda tem bancos quebrados. Como não há área de lazer apropriada, as crianças brincam em meio à poeira, lixo e carros, no local por onde passavam os trens. Foto de José Leomar

Infraestrutura - População reclama de serviços

Embora muitos ressaltem as boas lembranças do bairro, há deficiências visíveis na infraestrutura do Couto Fernandes que desagradam boa parte dos moradores. Até porque, basta dar uma volta para sentir o mau cheiro de esgoto em algumas ruas; perceber o acúmulo de lixo em vias e praças; a ausência de área de lazer apropriada para crianças e adultos; e a poeira que toma conta das casas em frente ao local onde existiam os trilhos, por não haver o espaço asfaltado ou de calçamento.

Rua Ceará no Couto Fernandes

"Não gosto da estrutura daqui. É um mau cheiro muito grande, muito lixo jogado no chão, as pessoas não valorizam o bairro. Não tem área de lazer. As praças estão quebradas, ninguém frequenta. Gosto das pessoas que moram aqui há bastante tempo, mas falta muita coisa importante", reclama a costureira Maria da Paixão Silva, 37 anos. Além disso, para o autônomo Everaldo Pereira da Silva, 40 anos, era necessário que houvesse mais ação do poder público e educação da população.

Além das praças estarem sujas, para ele, incomoda o fato de ter lixo espalhado, deixado pela própria população local. "Não acho bom para se morar porque não tem nada direito", critica.

Rua Ceará no Couto Fernandes

Em resposta à reclamação de falta de saneamento, a Companhia de água e Esgoto do Ceará (Cagece) informou, por meio da assessoria de imprensa, que "a maior parte do bairro é atendida por rede de esgoto. Obras da Cagece também estão sendo executadas para beneficiar locais ainda não atendidos". No que se refere aos demais problemas, a assessoria de imprensa da Secretaria Executiva Regional IV adiantou que há três praças: das Costureiras, dos Idosos e a matriz Couto Fernandes.

A estação original, nos anos 1970 (Acervo Estações Ferroviárias).

Saiba Mais

A estação de Couto Fernandes foi inaugurada em 1940 pela Rede de Viação Cearense. Leva o nome de um engenheiro maranhense, Henrique Eduardo Couto Fernandes, inspetor de estradas de ferro e administrador da RVC entre 1915 e 1922. O prédio original da estação foi demolido em 1980, e a atual estação do trem suburbano está 300 m adiante dessa primitiva estação em alvenaria, sentido Estação Central João Felipe. A estação "nova" foi, no entanto, desativada em 11 de maio de 2009 para que começassem as obras do metrô de Fortaleza naquele trecho, e começou a ser desmontada no final de semana seguinte.

A Estação Couto Fernandes (Acervo Estações Ferroviárias).

Trem da Metrofor em 2009 chegando à estação. Foto Robinson Rios Frota (Acervo Estações Ferroviárias).

O trem da Metrofor passa por uma plataforma que jamais foi utilizada (ao fundo) e vai passar pelo local da antiga estação de alvenaria, em 2009. Foto Robinson Rios Frota (Acervo Estações Ferroviárias).

A estação de Couto Fernandes em 2009. Foto Robinson Rios Frota (Acervo Estações Ferroviárias).

No dia 23 de julho de 1956, o Diário Oficial do Município - Diom nº 969 publica entre outras a Lei municipal nº 1.066 do dia 19 que denomina de Couto Fernandes o bairro conhecido por Quilômetro Oito em virtude a Estação Ferroviária que fica no local, há 8km da Estação Central.



Créditos: Diário do Nordeste, http://estacoesferroviarias.com.br e Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo