Cemitério São João Batista em 1931
Em maio de 1934, o cronista João Nogueira estabelecia uma relação entre a velocidade que caracterizava os novos tempos e a mudança de atitudes frente ao traspasse. No tocante aos cortejos fúnebres, ele apontou o transporte do féretro e os trajes dos acompanhantes como índices na percepção dessa mudança.
Cemitério São João Batista em 1931
Os enterros atuais puxados a máquina, passando velozes, os convidados vestidos de todas as cores, não infundem aquele respeito, que impunham antigamente. Tal é a força dos costumes que hoje não causa o mínimo reparo um homem acompanhar um enterro ou assistir a uma missa de sétimo dia, vestido de qualquer cor, mas ai daquele que não se apresentar de branco de rigor ou de smoking em um sarau dos nossos clubes elegantes. Tratamos a Morte com pouca cerimônia e a Dança com o maior respeito...
Cemitério São João Batista em 1931
A cidade não mudava apenas em suas pedras e topônimos: à transformação material e onomástica somava-se o desaparecimento de costumes antigos, no desencadear de lembranças nos memorialistas em apreço. As descrições pormenorizadas de João Nogueira acerca da grande movimentação que envolvia os enterros de outrora confirmam que eles eram grandes eventos públicos a concentrar a atenção da população e mobilizar considerável soma de recursos simbólicos. É com embevecimento que o engenheiro recorda os funerais de há meio século.
Antiga Igreja da Sé com seu cruzeiro
Há cinquenta anos passados os enterros entre nós eram verdadeiras procissões, que se estendiam, algumas vezes, por mais de um dos nossos quarteirões. Abria o préstito uma cruz negra de cuja peanha pendia uma saia, que era um pano de veludo preto com franjas douradas, afetando a forma desta peça de vestuário. As irmandades marchavam em longas filas, solene e silenciosamente. Precedido pelo cura da Sé, vinha o féretro, levado por quatro empregados da Misericórdia, vestidos de preto, com cartolas de oleado reluzente, casacas e calças debruadas de amarelo.
A Santa Casa ainda com um só pavimento. Foto de 1911
Os empregados da Santa Casa encarregados de conduzir o ataúde eram popularmente conhecidos como “gatos pingados”. Em razão de seu trajar chamativo, sempre foram citados por quantos memorialistas recordassem os enterros da Fortaleza antiga. Nas Memórias, Gustavo Barroso entreviu a mudança nos sentimentos com respeito aos mortos que foi suscitada pelo automóvel. Conforme já foi assinalado, sua introdução no ambiente urbano inaugurou novos ritmos e expectativas, afetando várias dimensões da vida cotidiana. Os ritos fúnebres estavam inclusos nessa transformação, conforme é possível inferir da passagem em que a velocidade dos cortejos motorizados é contraposta à solenidade dos enterros a pé, com o caixão conduzido pelos referidos empregados, em um “andar ritmado e lento”.
Cândido Portinari
Como que ainda estou vendo os enterros. Todos a pé. Muito solenes. Na minha meninice, os mortos não usavam automóvel para a derradeira viagem. Nem se sabia o que era automóvel. Os vivos parece que não tinham pressa em se verem livres dos mortos, nem
estes pressa em se verem livres dos vivos. À frente dos enterros, uma cruz alçada, de saiote preto, o padre paramentado e dois coroinhas. O caixão levado a mão pelos parentes e amigos ou por quatro gatos pingados de andar ritmado e lento, de sobrecasacas negras e cartolas de oleado. No acompanhamento, somente homens, todos de luto, silenciosos e compungidos.¹
Não há mudança cultural que não se faça perceber no surgimento de novos objetos – e no desaparecimento de outros. As procissões noturnas, iluminadas com tochas e fachos, talvez não fizessem mais sentido em uma cidade iluminada pela energia elétrica e abastecida de veículos. Sua estranheza foi evocada por Gustavo Barroso, em outra passagem do texto.
Lembro-me vagamente de ter visto, quando muito pequenino, um dos últimos enterros à noite, à luz de tochas e archotes, costume antigo e lúgubre. Se não vi, ouvi descrevê-los tantas vezes em casa que a descrição se mistura lá nos recessos do meu cérebro às cousas reais e acaba feita realidade pelo contato.
Cemitério São João Batista em 1931
Esse é um termo essencial da memória: muitas vezes não é possível distinguir entre nossas próprias lembranças e o que nos foi contado por outrem. Tais operações geralmente são inconscientes, mas no caso de Gustavo Barroso, artesão da memória, a possibilidade é vislumbrada. Ao lado de outros relatos, a imagem confirmava: os mortos já não se enterravam como antes.
Cemitério São João Batista em 1931
A necessidade de relatar como eram os enterros de antigamente revelava um presente marcado pela supressão de referências à morte: do mesmo modo que o passado, os mortos eram banidos do cotidiano da cidade. O primeiro desaparecia nas contínuas reformas que depuravam o espaço urbano de seus traços indesejáveis; os últimos eram abolidos das vistas
públicas através dos automóveis, que, velozes, os despachavam mais rapidamente para o outro mundo.
Antiga rua das Flores (Castro e Silva) por onde seguiam os cortejos fúnebres até o Cemitério São João Batista. Arquivo Nirez
Talvez muitos saudassem o progresso no que poupava aos fortalezenses. Pois as procissões se estendiam por 1300 metros, ao longo da rua das Flores, que conduzia da igreja da Sé ao Cemitério São João Batista (daí talvez a origem do nome). Tão grande percurso, realizado sob as intempéries da natureza e sobre um calçamento pouco convidativo às longas caminhadas, assumia contornos de sacrifício – quase uma via-crúcis: “Era, em verdade, um sacrifício ir um homem, da Matriz ao Cemitério, vestido de preto, sol das quatro horas pela frente, sobre um péssimo calçamento”.
Fachada antiga do Cemitério São João Batista sendo demolida. Arquivo Nirez
Mas ritos fúnebres cumprem a função social de mostrar às pessoas que elas são importantes para os outros. Não circunscrever a morte com eles pode transformar o ato de morrer em uma “situação amorfa, uma área vazia no mapa social”.
O ritual que cobria esse momento crítico talvez se destinasse a marcá-lo, realçá-lo em meio ao cotidiano de fatos muitas vezes indistintos,demonstrando, assim, o quanto significava a perda de um membro para a coletividade. Era um ritual para os vivos, antes de ser para os mortos; estes se iam, mas aqueles ficavam, e eram reconfortados por saber que, quando sua
hora chegasse, sua partida também seria sentida pelos outros.
Cemitério São João Batista em 1931
Na percepção do engenheiro, ninguém se queixava da caminhada torturante em virtude dos “sentimentos que a todos animavam”. Trata-se, evidentemente, de uma visão carregada de subjetividade, mas que bem expressava o quanto poderia ser angustiante para alguns o vazio que a ausência do ritual criava.
Esse vácuo também era formado na destruição de fragmentos do passado que compunham a paisagem da cidade.
Esta era expulsa da cidade tanto nas transformações do espaço quanto no desaparecimento de antigos ritos fúnebres. Mas os memorialistas a introduziam no discurso, e lembravam que o dever com os mortos ia muito além do cerimonial adequado, mas implicava reconhecê-los: nas esquinas, praças, árvores, topônimos... Vestígios do passado transmutados em lápides.
João Nogueira recordou, com enlevo, os “enterros de anjinhos”.
Enterro de anjinhos - Imagem meramente ilustrativa - Acervo José Elson
Eram festivos e risonhos os enterros de anjinhos ao tempo em que a Fortaleza não tinha pretensões a Metrópole... Os sinos da Sé (os menores) repicavam alegremente e a família do anjinho convidava quantos meninos pudesse para acompanhar o saimento. Não se encomendavam os anjinhos. Porque encomendá-los Àquele que dissera: Deixai vir a mim os pequeninos? A inocência daquelas aves abria-lhes as portas do reino dos céus. Enquanto os pequenos convidados esperavam pela hora da saída, recebiam, de agrado, toda sorte de guloseimas. Depois, lá se ia o alegre bando acompanhado, não raro, por músicos que tocavam, durante o trajeto, polcas, quadrilhas e outras peças alegres. E era assim que as mães piedosas deixavam que voassem as andorinhas, em busca de
paragens luminosas. Felizes tempos aqueles!
Enterro de anjinhos - Imagem meramente ilustrativa - Acervo José Elson
Eram tempos mais felizes aqueles? Quem sabe? De qualquer forma, o engenheiro encontrava regozijo na lembrança. Mas o encontraria do mesmo modo se a tradição continuasse? Talvez sim, mas de uma forma distinta, porque presença. A ausência faz o memorialista, a mudança reelabora seus sentimentos com respeito à cidade em que vivera por longo tempo, produz memórias que não são a Fortaleza de antigamente, mas fragmentos recolhidos e dispostos segundo critérios de afetividade.
No entanto, é provável que João Nogueira e Gustavo Barroso tenham sido levados, pelas circunstâncias que deparavam no presente, a idealizar as atitudes dos antigos com relação aos mortos. O testemunho de João Nogueira sobre a demolição do antigo Cemitério de São Casimiro, em 1877, e a sombra do desprezo que pairava sobre os que ali repousavam, parece apontar nesse sentido.
Início do século XX
Local onde antes esteve o Cemitério de São Casimiro - Álbum Fortaleza 1931
Muita gente passa hoje em frente às oficinas da Baturité sem suspeitar ao menos que todo aquele movimento se opera sobre um chão de repouso e de morte. Parte das oficinas, o Chaler, a Carpintaria, os Depósitos e desvios estão assentes sobre o local do antigo Cemitério de São Casimiro [...]. Aí se fizeram enterramentos até abril de 1865, época em que foi fechado sob pretexto de se achar quase dentro da cidade, estar sendo invadido pelas areias do morro, estarem sepultados nele inúmeros coléricos. Daí por diante jazeu em completo abandono, até que em 1877 se resolveu a sua demolição. [...]
Compreendem-se perfeitamente as razões porque se fechou o Cemitério Velho; o que porém nunca pudemos compreender foi o abandono, de que fomos tantas vezes testemunhas, daquele humilde Campo Santo. Em 1878 já estava quase tudo em ruínas: túmulos desmoronados, catacumbas abertas, deixando ver o seu horripilante conteúdo, ossos dispersos pelo chão, onde os animais pastavam tranquilamente. Dir-se-ia que na cidade não restava mais nenhum parente, nenhum amigo de nenhum daqueles que repousavam ali.
Traslado dos restos mortais do General Sampaio na Avenida Bezerra de Menezes, com a presença do então Governador Virgílio Távora (1966).
À vista dessas poucas (e chocantes) linhas, impõe-se repensar as assertivas que atribuíam aos antigos maior respeito e consideração aos mortos. Afora a ordem de “autoridade competente” para exumação dos restos de mortos ilustres antes da profanação (como o do Boticário Ferreira, a quem se atribui, juntamente com Silva Paulet e Adolfo Herbster, o traçado ortogonal das ruas de Fortaleza), o único que parecia se importar com o desrespeito era uma velha casuarina.
A velha casuarina em destaque
Do nosso antigo cemitério resta apenas um único monumento: uma casuarina, que o acaso conservou. Último morins, único amigo sobrevivente de quantos viu sepultar. Dizem que quando se revolvem as cinzas dos seus mortos ouve-se pela calada da noite um vozear
baixinho por entre a vetusta ramaria.²
Por entre a folhagem da árvore, diziam escutar-se um último alento aos mortos, cujos despojos não voltariam nunca “ao pó sagrado de que nos fala a Escritura, mas à areia negra do esquecimento e do desprezo”.³
Foto de 1922, época da reforma da Praça Castro Carreira (Estação)
¹BARROSO, Gustavo. Memórias. Coração de menino. Op. Cit., p. 62-3. O jornalista Carvalho Lima, sob o pseudônimo de “Ancião”, faz reparos à crônica “Os primitivos enterros”, de Raimundo de Menezes, onde os encarregados do transporte do ataúde eram lembrados. Estes não seriam empregados da Santa Casa, mas trabalhadores de rua contratados para cada enterramento, e subdividiam-se em três categorias, segundo as posses do morto: 12$000, 20$000 e 30$000. Cada qual trajava uma indumentária diferente (os descritos pelos memorialistas pertenciam à última categoria). (O Estado, 13/02/1938. Apud MENEZES, Raimundo de. Coisas que o tempo levou: crônicas históricas da Fortaleza antiga. 3. ed. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000, p. 77)
²No texto que dedica ao oitizeiro do Rosário, João Nogueira menciona outras árvores conhecidas de Fortaleza. Além do cajueiro do Fagundes, cuja história já é conhecida, havia a “árvore da liberdade”, coqueiro plantado em 1831, no antigo Pátio do Palácio (atual praça General Tibúrcio), por ocasião da abdicação de D. Pedro I; o “cajueiro botador”, “velho” que “não se impunha ao respeito”, por prestar-se ao chiste popular: sob sua fronde ocorria a eleição dos maiores mentirosos da cidade, que sempre terminava em cervejadas, nos botequins da praça do Ferreira, onde estava localizado; por último, um coqueiro da praça da Estação, que não tinha história conhecida: “É um velho que tem atravessado a vida sem viver. Sabe-se apenas que nas noites de luar conversava com o oitizeiro. O que diziam, ninguém entendia... Agora emudeceu para sempre, porque morreu o único amigo que lhe restava e o entendia”. NOGUEIRA, João. Op. Cit., p. 161.
³O historiador Simon Schama faz uma instigante reflexão acerca das ligações das árvores
com o sagrado, na simbologia de pinturas e xilogravuras da Idade Média. Esses entes da
natureza foram apropriados por catequistas cristãos que deram combate a cultos fetichistas, e se empenharam em converter seus praticantes através de sua associação ao Crucificado. (SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 221-232)
Crédito: Tempo, progresso, memória: um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta - Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira, Álbum Fortaleza 1931 e Arquivo Nirez
Muito interessante. A Rua. Dr.João Moreira(da Santa Casa)parece está na pavimentação que ainda encontrei quando cheguei lá em 1978. Muito bom trabalho. PARABÉNS. J. Alves.
ResponderExcluirO Cemitério São João Batista é a história viva da cidade edificada através de suas construções. Estou trabalhando com ele e a cada leitura que faço e a cada mausoléu ou sepultura que eu vejo é uma parte importante para a história da cidade, pena que alguns desses monumentos estejam se desgastando. Pena que não tenha nenhuma foto ou pintura do São Casimiro, pois havia uma divisão entre católicos e protestantes,bem interessante para se entender a espacialização, fenômeno que ainda persiste no São João Batista....Parabéns pelo resgate
ResponderExcluirBoa tarde desde Portugal! Tinha familiares que viviam em Fortaleza Centro e uma vez fui ao Cemitério de S.João Baptista procurá-los mas não consegui encontrar. Há alguma forma de o fazer? Lá não me souberam dizer. Trata-se da minha Bisavó e meu Tio Avô! Obrigado!
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