quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Quem passou no carnaval que passou



Passou o carnaval que passou e passou o Bloco das Baianas, rapazes de pernas cabeludas, saias de chitão, batas e turbantes de panos brancos, argolas nas orelhas, colares de contas multicores e maquilagens ridículas.


O cordão das "coca-colas" - Arquivo Nirez

Passou o Carnaval que passou e passou o Cordão das Coca-colas, de rapazes tão animados, risos rasgados nos lábios de batom Naná e semblantes de festa, com bigode e tudo. Eles parodiavam um recente fenômeno local, originado pela Segunda Guerra Mundial.

Estandarte do Maracatu Estrela Brilhante em 1953 - Acervo do blog Ong-Solar

Maracatu Estrela Brilhante em 1953 - Foto Nação Fortaleza


Passou o Carnaval que passou e eu vi passar, com os olhos da saudade, o Maracatu Estrela Brilhante e o Maracatu Rancho de Iracema e o Maracatu Az de Espadas e o Maracatu Az de Ouro e o Maracatu Rei de Paus. E fiquei eletrizado por aquele ritmo soturno e cadenciado marcado pelos ferros dos triângulos e as batidas surdas dos bumbos e tambores. E segui sua rainha, imponente e garbosa, altiva, magnífica e com ela fui, pela Senador Pompeu, pela Duque de Caxias, pela Floriano Peixoto, até a Praça do Ferreira onde, ao pé da Coluna da Hora, o meu sonho acabou: o maracatu esvaiu-se, com seus membros retornando à insignificância de suas próprias e pobres vidas. Sumira o alvo sorriso no rosto negro da rainha,  o ritmo emudeceu, os penachos foram atirados ao chão de mosaicos frios. Era como se uma rara peça de biscuit caísse e se fragmentasse em mil padacinhos.


Impossível acreditar que essa era a rua Senador Pompeu de antigamente. Fartamente arborizada com fícus-benjamins podados em forma de meia esferas, era tranquila e bucólica, com suas moradias conjugadas. Na pavimentação de concreto passava o Carnaval. Quando Fortaleza tinha carnaval.

Como sofri com aquela perda...

Passou o Carnaval que passou e senti o cheiro do "cloretil" que ardeu nos meus olhos de menino curioso, que não quis usar os coloridos "óculos" de cartolina e celofane que os garotos da rua faziam para vender...

Raridade, frasco de lança-perfume Rodouro (Rhodia), provavelmente anos 60.

O lança-perfume era comum nessa época. Podemos visualizar alguns foliões segurando o frasquinho nesse Baile de Carnaval do Ideal Clube. Foto da década de 30/40. Acervo de Marcelo Bonavides de Castro
Passou o Carnaval que passou e o concreto da rua Senador Pompeu ficou coloridinho de confete e as serpentinas tremelicavam sobre o verde dos fícus-benjamins. E passou o Zé Pereira que a ninguém faz mal. E passou um castelo medieval feito de "pedras" de papelão e areia prateada, com suas ameias e torreões e o mulherio da Fascinação, de guarda...

Passou o Carnaval que passou e quem passou foi o Mazine e sua famosa "vedete" de lantejoulas douradas sobre o maiô preto, meias de rendão negro, tentando esconder os músculos das pernas peludas e o grotesco dos óculos "fundo de garrafa", disfarçados pela máscara do Zorro com "chorão" e tudo.
E os sapatões à Carmen Miranda...


Passou o Carnaval que passou e passou Airtinho, na exuberância da sua juventude, "puxando" as Meninas do Barulho, que já passaram...

Prédio do Clube Iracema - Arquivo Assis de Lima
E passaram damas chiques e cavalheiros elegantes para o baile do Clube Iracema, que já passou e gente circunspecta, para o Clube dos Diários, no Palacete Guarany...

Clube dos Diários funcionando no Palácio Guarany
Passou o Carnaval que passou e passou gente do povo, para as batalhas de confete. E passou gente animada no corso de automóveis, na Duque de Caxias...

Vi o Carnaval da Vitória. E vi semblantes iluminados, na euforia do fim da guerra que já passara. E todos sorriam. E todos cantavam. E as serpentinas eram mais coloridas e os confetes eram mais fartos. E moças lindas e rapazes atléticos e garbosos, sentados sobre suas amplas capas, nos capôs dos Packards, Buicks, Fords, Oldsmobiles, Hudsons, Jeeps. E vi sorrisos nos rostos descontraídos e mãos para o alto, ostentando os Rodouro que perfumavam a folia...

Imagem meramente ilustrativa
E passaram pierrôs e passaram colombinas. E, espreitando na esquina da Broadway, arlequins choravam. Oh, jardineira, por que estás tão triste? Por que o sol estava quente e queimou a nossa cara?...


E passou um homem bigodudo, vestido de mulher, com os peitos de quengas. E passou um grupo de papangus. E passou Zé Tatá (foto ao lado), com sua baiana paquidérmica. E passou Beatriz, com sua gigantesca princesa do maracatu. E passou o Rei Momo, primeiro e único, com sua Rainha do Carnaval, que era moça de família, coisa que também já passou. E a sala do trono era um jipe Land Rover, que não passa mais...

Passou o Carnaval que passou e passou a mais exótica escola de samba do mundo, a Luiz Assunção, que estava mais para banda marcial do que para G.R.E.S. Mas, ninguém reclamava, pois o padrão Globo de qualidade ainda não existia, nem o gênio Joãozinho Trinta havia conseguido decifrar as "mensagens fenianas" da Pedra da Gávea. Por isso, no palanque da PRE-9, João Ramos (que também já passou) pedia aplausos calorosos para a Escola de Samba Luiz Assunção, com seu impecável "pelotão" de músicos ( a escola compreendia apenas os músicos) vestidos à militar, com dólmãs e quepes. Imponentes e garbosos, pareciam os autênticos generais da banda, os instrumentos de sopro refletindo o sol daquelas tardes de fevereiro: "Adeus Praia de Iracema/Praia dos Amores que o mar carregou..."

Arte sobre foto do sambista Luiz Assunção, pertencente ao arquivo Nirez 
Arte: Felipe Goes
Passou o Carnaval que passou e passou a Turma do Camarão e passou a Turma Bamba e passaram os Garotos do Frevo. Quem passou, também, foi o Prova de Fogo, que ainda teima em passar, imutável, com suas fantasias de cetim barato salpicadas de lantejoulas, e os chapéus que parecem penicos de alumínio Ironte. E a marcação mais cafuçu do mundo...


A turma do Camarão - Arquivo Nirez

Prova de Fogo - Arquivo Nirez
Passou o Carnaval que passou e passou a raia miúda e passou o canelau e passou o arrabalde, com seus estandartes de pobreza, saudando a "imprensa falada e escrita" e pedindo passagem. Pois eram eles quem melhor sabia passar no Carnaval...

Passou o Carnaval que passou e passou Benoit, a Rainha das Rainhas , disputado por todos os maracatus, mas, com passe exclusivo do Az de Espadas, que já passaram...

Passou o Carnaval que passou e passou a descontração dos rapazes do Cordão das Cola-Colas e as animadas baianas e passaram as "elegantes" Marietas, que não mais passarão. E passou o Zé Tatá e passou Beatriz que não tornarão a passar...

Passou o Carnaval que passou e passou Airtinho, tão jovial, tão belo, com seu sorriso de criança. Que nunca mais voltará a passar...

Porque os clarins da folia tocaram silêncio...   


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Livro Royal Briar - Marciano Lopes
Foto do Zé Tatá - Arquivo Totonho Laprovitera

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