"...Eu contei um fato que me causou grande impacto na
infância: a chegada à Porto Alegre de uma jangada tripulada por cinco
jangadeiros, vindos do distante Ceará, lugar que eu mal podia imaginar como
seria.
Aos olhos dos gaúchos, os veteranos e bronzeados navegantes
nordestinos chefiados pelo lendário Mestre Jerônimo, surgiram (com justiça)
como verdadeiros heróis, como se tivessem descido do espaço, vindos de outro
planeta. E durante alguns dias, só se falou deles, com justa admiração.
Mas quando, 60 anos depois, resolvi escrever sobre este
fato, fiquei surpreso com a quase total falta de informações sobre o assunto,
como se aquilo nunca tivesse acontecido!"
Passados dez anos da viagem dos jangadeiros cearenses ao Rio de
janeiro, sede do governo Federal, eis que novamente dos “verdes mares bravios”,
parte uma nova jangada, dessa vez batizada de Nossa Senhora de Assunção.
O Presidente da Republica era, mais uma vez, repetindo 1941,
Getúlio Vargas, que agora estava no poder em um regime democrático e eleito
pelo voto dos brasileiros, com expressiva votação entre os operários.
A bordo da Nossa Senhora de Assunção, o mesmo mestre Jerônimo (com
52 anos), o sexagenário Raimundo Correia Lima, o Tatá (com 62 anos), e Manuel
Pereira da Silva, o Manuel Preto (com 49 anos), antigos companheiros de Jacaré¹, que fizeram com
ele a viagem até a capital da República, a bordo da jangada São Pedro, em 1941.
Mais dois vieram juntar-se aos veteranos: eram os pescadores Manuel
Lopes Martins (59 anos) e o sobrinho de Mestre Jerônimo e mais novo do grupo,
Manuel Batista Pereira (com 30 anos), a quem o jornalista do Unitário
(14/10/1951) descreve como “moço e forte como um touro”.
Na viagem de 1941, se
Jerônimo exercia a função de mestre, isso parecia se limitar ao saber técnico
indispensável para guiar com segurança a jangada, já que os jangadeiros na
época não utilizavam qualquer aparato técnico para orientação, a exemplo da
bússola, astrolábio ou carta de navegação. Uma jangada, sendo uma embarcação a
vela, movimenta-se, principalmente, pela ação do vento, mudando a posição da
vela de acordo com o sentido dos ventos. Aliás, esse saber e o desprezo por aqueles
instrumentos eram motivos de assombro por todos que toparam com os jangadeiros
da São Pedro, ao longo da costa brasileira.
À admiração de seus contemporâneos, os pescadores respondiam com
larga risada, dizendo que os pescadores se guiavam mesmo pelas estrelas.
Em outubro de 1951, os cinco tripulantes da jangada Nossa Senhora de
Assunção, partem rumo a Porto Alegre, levando na bagagem, além dos apetrechos necessários
a tão longa e arriscada travessia, memoriais contendo a reivindicações da classe.
Mas, como disse Mestre Jerônimo a um jornalista, não iam pedir nada de novo, apenar
cobrar o cumprimento das promessas feitas.
O “CHEFE DOS PESCADORES” FICA OMBRO A OMBRO COM O “CHEFE DO ESTADO: O PACTO TRABALHISTA, GANHOS SIMBÓLICOS E AS PROMESSAS DE GANHOS MATERIAIS
A VIAGEM DE JACARÉ E DE SEUS COMPANHEIROS EM 1941.
Jacaré, desde quando assume a direção da Colônia de Pesca Z-1, da Praiade Iracema, em 1939, procura a professora da instituição revelando seu sonho de
ir até a Capital Federal falar com o presidente. O jangadeiro precisava da professora
para aprender a ler e escrever, condição, para ele, necessária para aquela
ação. Junta-se ao companheiro Tatá, mais
antigo naquela comunidade pesqueira, agrega outros companheiros, mobiliza os
“amigos graúdos”, acionando a rede paternalista que o envolvia, recorre aos
jornalistas e autoridades civis e religiosas e parte para “pedir direitos”.
Leia: A Saga de 1941.
Os pescadores da jangada São Pedro, ouviram de Getúlio Vargas
“promessa” de ganhos materiais, vislumbrados com a assinatura do decreto
incorporando-os no importante Instituto de Aposentadoria e Pensão dos
Marítimos. Jacaré, matreiro e esperto como era, declarou ao jornalista cearense
Paulo Cabral, em seu retorno a Fortaleza: “aquele decreto, se for cumprido, pra
nós é um colosso”.
O decreto assinado por Vargas, como resposta às reivindicações dos
jangadeiros, se mostrou ineficaz para resultar em benefícios concretos para a
categoria. Sendo a pesca artesanal uma atividade semiautônoma, que gera uma
baixa acumulação de capital financeiro aos pescadores, e ainda em decorrência
da parcial subordinação desses trabalhadores aos proprietários dos meios de
produção, em especial a jangada, não era possível contribuir com o sistema
previdenciário e dele obter benefícios sociais.
Como parece ter vislumbrado Jacaré, aquelas promessas sinalizadas
com o decreto não foram cumpridas.
PROMESSAS E O ACERTO DE CONTAS
Em 1951, passados dez anos da viagem da São Pedro, novamente os
jangadeiros do Ceará visitam recorrentemente a redação dos jornais locais, em
especial o jornal dos Diários Associados, o Unitário, a fim de sensibilizar as
autoridades e a opinião pública para a miséria em que continuavam vivendo. Os
Diários Associados, de Assis Chateaubriand, fizeram o patrocínio jornalístico
em 1941, tanto os jornalistas e os jornais do Ceará, como aqueles de outros
estados por onde passou a São Pedro, cobrindo com farto material aquela viagem.
Mesmo antes dela, os jangadeiros já se utilizavam da imprensa como um canal de
divulgação de seus protestos e demandas, a exemplo do protesto realizado em
1939, ano em que Jacaré assume a presidência da Colônia Z-1, quando cerca de
100 jangadeiros vão aos jornais reclamar da lei municipal que fixava certos
pontos para a venda do pescado.
Em julho de 1951, Jerônimo,
a quem o jornalista se refere como alguém “sensível à miséria dos pescadores”,
procura a redação do Unitário e revela que havia ido até o Presidente Vargas
reivindicar, dentre outras coisas, a retirada do atual titular da Delegacia de
Caça e Pesca no estado, e autorização para que os pescadores pudessem, eles
próprios, fiscalizar a movimentação financeira das colônias.
Essa viagem, feita na terceira classe de um navio do Loyde, resultou
em uma “acerto”, segundo expressão do jornalista, entre o pescador e o
presidente, tendo esse último se comprometido a atender as reivindicações. Aos
pescadores, segundo o “acerto”, cabia a escolha de alguém representativo da
categoria. Em reunião, os pescadores escolheram o pescador José Pinto Pereira
para representá-los.
A demora no cumprimento dessa promessa parece ter estimulado o
veterano Jerônimo a novamente arrumar uma jangada e partir – dessa vez não
falam em “pedir direitos”, o tom é de cobrança. Mais uma vez, é acionada a
estratégia política de provocação da opinião pública e das autoridades, com uma
viagem de jangada. Veja o tom da decisão de Jerônimo:
O que queremos é que melhores condições de vida, tantas vez prometidas,
nos sejam dadas. (...) Somos obrigados a ser heróis (...) desde uma vez que nossa
vida nos obriga continuamente a ser heroicos. Nosso raid ao Rio Grande do Sul
será apenas para cobrar as promessas feitas, e essa cobrança só poderá ser
feita de corpo presente, como vamos fazer.
Mas, de “corpo presente”, a demanda já tinha sido feita em julho
desse mesmo ano. Na verdade, o que a viagem de 1941 ensinou a esses jangadeiros
era a imensa capacidade de sensibilização, pela visibilidade que confere, de
uma viagem de jangada.
Apesar de serem “outras águas” a serem singradas, me refiro tanto
os mares no trajeto ao Rio de Janeiro ou Porto Alegre, como ao ambiente
político. A embarcação era a mesma velha e rústica jangada de seis paus de
piúba e no poder um velho conhecido dos pescadores, o Presidente Getúlio
Vargas.
Diferente, também, era o tom das matérias jornalísticas que
trataram da viagem e das demandas dos jangadeiros. A euforia dos tempos do
Estado Novo foi substituída por ironias e cobranças ao presidente e à sua
política. No caso dos jangadeiros, os jornalistas enfatizavam a questão das
promessas não cumpridas. Mas, contrariando as expectativas dos jornalistas, e
mesmo demonstrando um certo cansaço, Mestre Jerônimo continua a insistir na via
do Estado para a solução dos problemas dos jangadeiros. Falando a um jornalista,
criticou o Ministro da Agricultura, mas continuou a dar mostras que a confiança
em relação ao Presidente não foi abalada:
Nada temos. O pescador do NE vive como Deus é servido, sem
amparo, sem assistência de qualquer de qualquer espécie. A jangada é sua única riqueza.
(...) O Ministro da Agricultura mandou ao NE um técnico desses ensacados, que
nada entendem do assunto, e vivem a atrapalhar os jangadeiros. O jangadeiro, no
entanto, não perdeu esperança no presidente da República.
¹Manuel Olímpio Meira, conhecido como Jacaré, morreu nas águas da Guanabara, em 19 de maio de 1942, quando filmava para o diretor americano Orson Welles as cenas da chegada da Jangada São Pedro ao Rio de Janeiro.