Jangadeiros usaram suas embarcações para lutar contra a escravidão no Ceará.
"Acompanhados de seus escravos, alguns negociantes
aguardavam na Praia do Peixe – atual Iracema – a chegada das jangadas que iriam
transportar quatorze cativos numa viagem até o Sul. Aparentemente, a cena era
corriqueira, mas, naquela manhã de 27 de janeiro de 1881, todos foram
surpreendidos pela atitude dos jangadeiros. Eles se recusaram a pôr os cativos
em suas embarcações, num episódio que marcou para sempre a luta contra a
escravidão no Ceará.
Desde o período colonial até os tempos do Império, o
comércio interno de escravos, ou tráfico interprovincial, era uma constante no
atual território brasileiro. Ele envolvia a transferência de cativos de uma
região para outra, fosse por compra, troca, venda ou doação. Desde o século
XVIII, o escravismo no Ceará foi, em grande parte, resultado desse tipo de
negócio. Os escravos, em sua maioria, eram oriundos de províncias vizinhas,
como Pernambuco, Maranhão e Bahia, e também vinham da África pelos portos de
São Luís e Recife. Mas foi a partir de 1850, com a proibição do tráfico de
cativos procedentes do continente africano, que o tráfico interprovincial
passou a se intensificar e a ganhar relevância em todo o território do Império
brasileiro.
Enquanto traficantes ganhavam cada vez mais dinheiro com
esse comércio, começou a ser organizado um movimento abolicionista local, que
teve mais força depois que três anos de seca (1877-1879) que se abateram sobre
Fortaleza. A estiagem prolongada vitimou principalmente os escravos, que
sofreram com a fome e com diversas doenças, e acabaram servindo de moeda
corrente em tempos de penúria, transformando-se na salvação de senhores
arruinados. Em 1879, um grupo de jovens que não suportava mais ver as
humilhações impostas aos cativos que chegavam com as caravanas vindas do
interior, resolveu fazer alguma coisa. Influenciados pelas ideias liberais que
estavam em voga, eles organizaram uma associação destinada à compra das
alforrias de escravas, já que os homens eram a principal mercadoria do comércio
interno. A entidade abolicionista criada por esses jovens ficou conhecida como
Sociedade Libertadora Perseverança e Porvir.
Segundo informações do livro de atas da associação, na
noite de 26 de janeiro de 1881, o abolicionista José do Amaral sugeriu que se
tomasse alguma medida para impedir, à força, que continuasse o tráfico de
escravos que saía de Fortaleza. O mais curioso nessa história é que estava
presente ao encontro um mulato chamado Francisco José do Nascimento, o Chico da
Matilde, prático-mor do porto, que posteriormente receberia a alcunha de Dragão
do Mar. Ele liderava o grupo dos jangadeiros ao lado do negro liberto Antônio
Napoleão, que chegara a juntar vintém por vintém para comprar sua alforria, a
da família e a dos amigos, gesto que foi determinante para torná-lo muito
respeitado entre a classe.
O fato é que ninguém podia imaginar que homens simples
afrodescendentes seriam capazes de desafiar uma organização extremamente
poderosa. Mas a proposta dos abolicionistas só poderia dar certo com a
participação dos jangadeiros. E foi o que ocorreu. Sem eles, que eram os
últimos a ter contato com os escravos embarcados, o movimento não teria
sucesso.
Napoleão, Nascimento e seus colegas tinham motivos de sobra
para aderir a essa causa. Muitos escravos devem ter pedido a eles que não
fossem embarcados e relatado terríveis histórias de sofrimento por terem sido
separados dos seus. Assistir a esse teatro de horrores provavelmente fez
crescer entre os jangadeiros a consciência de que aquela situação precisava
mudar. Mas para que pudessem se organizar a ponto de paralisar o tráfico, teve
que surgir entre eles um consenso sobre o que representava aquele ato.
Foi na Perseverança e Porvir que a classe encontrou o apoio
necessário para acabar com o transporte
de cativos. E reuniu forças para realizar um feito até então inusitado. Tanto
que, naquela manhã de 27 de janeiro, os encarregados do embarque de escravos
foram surpreendidos com a recusa dos jangadeiros em transportá-los. Diante da
situação, conforme foi noticiado no jornal O Libertador, “os negreiros
recorreram a todos os expedientes: oferecimento, promessas, suborno, ameaças;
tudo, tudo foi baldado”.
A notícia dessa ação dos jangadeiros se espalhou, e as
pessoas começaram a se dirigir à praia para ver de perto uma cena inédita.
Afinal, um grupo de pescadores pobres, liderados por negros, pardos e mulatos,
enfrentava os representantes de uma elite de poderosos comerciantes e
traficantes. Segundo O Libertador, “mais de 1,500 homens de todas as classes e
condicções” se encontravam ali, acompanhando a resistência dos jangadeiros. Em
solidariedade ao protesto, muitos gritavam: “Nos portos do Ceará não se embarca
mais escravos!”. O movimento, que se repetiu algumas vezes nos dias seguintes,
até 31 de janeiro, ganhava sua primeira batalha.
Meses depois, em 30 de agosto de 1881, haveria uma nova
tentativa de embarcar escravos, desta vez para o Norte. Apesar de o presidente
da província e o chefe de polícia recém-nomeados apoiarem francamente os
negreiros, os jangadeiros obtiveram outra vitória, e o porto de Fortaleza
acabou sendo fechado definitivamente para o comércio interno de escravos. Tudo
isso com o apoio do tenente-coronel Francisco de Lima e Silva, parente do duque
de Caxias, que estava à frente do 15º Batalhão de Infantaria.
Mesmo com todas as mudanças em curso na sociedade cearense,
os negreiros ainda eram capazes de dar algumas demonstrações de força. Os
abolicionistas podiam ter o suporte do comandante do 15º Batalhão de
Infantaria, mas os comerciantes de escravos ainda conseguiam se valer de todos
os meios para manter seus lucros. Segundo o Livro de Actas da Sociedade
Perseverança e Porvir, chegou a ser ordenado que uma flotilha da Marinha de
Guerra fosse enviada para proteger o tráfico e até bombardear a cidade dos
revoltosos. Mas, com o tempo, esse esforço acabaria provando ter sido em vão.
Os abolicionistas teriam muito a perder, pois os negreiros
fariam de tudo para não deixar nenhum de seus adversários impune, valendo-se de
perseguições, medidas repressivas e punições. Segundo o Livro de Actas, Lima e
Silva foi removido do seu cargo, assim como o promotor público da capital,
Frederico A. Borges, e de dois oficiais da guarda urbana.Além disso, o Dragão
do Mar foi destituído de seu posto de prático-mor do porto.
Os acontecimentos no Ceará acompanharam mudanças na
legislação a respeito da escravidão em outros cantos do Império. Nas principais
províncias do Sudeste, começaram a ser adotadas leis que restringiam a entrada
de escravos vindos do Norte, medidas que geraram um movimento com forte participação
popular. Com o fechamento do porto de Fortaleza ao tráfico em 1881, a venda de
cativos para outras províncias acabou sofrendo um duro e decisivo golpe,
fortalecendo a luta abolicionista, que no dia 25 de março de 1884 acabou
levando a Província do Ceará a proibir a escravidão. A luta para acabar com o
tráfico interprovincial na região, com a fundamental ação dos jangadeiros, saiu
vitoriosa, fazendo a “abolição” chegar ao Ceará alguns anos antes da Lei Áurea,
de 1888."
José Hilário Ferreira Sobrinho
(Professor da Faculdade
Ateneu no Ceará
e autor de Abolição no Ceará:
um novo olhar(Imeph, 2009).
AMARAL VIEIRA, Roberto Attila do. Um herói sem pedestal – a Abolição e a República no Ceará. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1958.
GONÇALVES, Adelaide; FUNES, Eurípedes. “Abolição – manifestação e herança. A Abolição da Escravatura no Ceará: uma abordagem crítica”. Cadernos do NUDOC nº 1. Fortaleza: Departamento de História/UFC, 1988.
MOREL, Edmar. Vendaval da liberdade: a luta do povo pela abolição. São Paulo: Global, 1988.
Aos conterrâneos que escrevem acima nesse Blog, comunico-lhes que estou trabalhando meu primeiro livro de Antropologia cujo tema são as alterações da cultura ibero-americana e inclui no segundo capítulo uma abordagem especial sobre a Abolição da Escravatura no Ceará em face desse evento ter tido reflexo sobre a História brasileira e dos EUA após e durante a Guerra da Secessão.
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