domingo, 2 de março de 2014

Os bancos da Praça do Ferreira - Parte II




Outro banco também se tornou famoso, porque dele fez parte o jovem matuto Joaquim Pimenta, para cá vindo sob a proteção do vigário de Tauá, depois bispo de Pelotas, Dom Joaquim Ferreira de Melo. Veio e depois tornou-se materialista, não obstante sua origem, fazendo jus ao qualificativo de agitador se essa expressão já vigorasse naquele tempo. É dele mesmo o depoimento: - "Na Praça do Ferreira, quando nos reuníamos, tudo se discutia, desde a colocação de pronomes, muito em voga por influência de Cândido de Figueiredo,
até política e religião"
("Retalhos do Passado", Rio de Janeiro, Editor A. Coelho Branco F2., 1949, p. 68). 

Gustavo Barroso dá-nos notícia desse "banco da Praça do Ferreira em frente da Empresa
Telefônica
"
, abrigada esta em prédio de duas portas, com mirante, sito na rua Floriano Peixoto, entre o da Agência Alaor e o Eden Café. Eram principais companheiros de Gustavo os pintores Ra­mos Cotoco e Antônio Rodrigues. ("O Consulado da China", Rio
de Janeiro, Edit. Getúlio Costa, s/d, p. 264). 

Fala-nos ele desse mesmo banco em outro livro seu, quando depõe a respeito da atuação de Joaquim Pimenta e de outros, como Mamede Cirino, "filho do melhor sapateiro da terra", e Oscar Pinto de Lima, "o Pinto Molhado, que morreu médico do Exército, namorando de olhos dengosos uma cadeira de Deputado Federal por obra e graça do Padre Cícero". ("Liceu do Ceará", Rio de Janeiro, Edit. Getúlio Costa, 1940, p. 159).

Assinaladas fiquem, igualmente, as turmas responsáveis pela circulação da revista "Fortaleza", integrada por Mário Linhares, Genuíno de Castro, Raul Uchoa e outros; do jornal "O Demolidor", sob a liderança de Adonias Lima; e da filha "Os Novos", sendo estes Filgueiras Lima, Luís Ábner Moreira (depois oficial do Exército), Walder, Amadeu e Lelando Sá. Todos esses grupos tinham "cadeiras cativas" em bancos da Praça.

Mais ambulante do que sedentário, mas assim mesmo como seu banco preferido, era Artur Sampaio, filho do Delegado Sampaio e irmão do Dr. Pedro Sampaio. Funcionário dos Telégrafos e solteirão impenitente, em volta dele voejavam alguns rapazes da terra, fruindo sua apimentada verve. Eram eles: Hugo de Gouveia Soares Pereira (colega meu desde o curso do professor Martins de Aguiar, em que nos preparávamos para ingressar no Liceu, e igual­mente contemporâneo meu neste estabelecimento de ensino se­cundário, na Faculdade de Direito e no Tribunal de Contas do Estado), Geraldo Lira Aguiar (colega de folguedos na Praça do Carmo), Iran Benevides, José Perales Aires, José Mílton Dias (mais tarde meu consócio na Academia Cearense de Letras), Hermano Frank, Stélio e Hugo Lopes de Mendonça, Francisco e João Aguiar Ximenes, Otacílio Colares (colega de Academia e compadre meu), Gentil Melo, José Newton Barbosa, Francisco das Chagas Cruz, Lucívio Rocha e outros, muitos outros, pois esse grupo variava conforme o horário (matinal, vespertino ou noturno), a ele aderindo Francisco José Novais, Antônio Drummond Filho, Aluízio Medeiros, João Clímaco Bezerra, Américo Barreira, José Bonifácio Câmara, Manuel Albano Amora (compadre e consócio meu na Academia), Ernesto Pedro dos Santos, Mileno Silva The, meu colega de Academia e compadre Antônio Girão Barroso, Álvaro Lins Cavalcante, Edvar Teixeira Férrer, Paulo Botelho, Gregório Calou, Renê Dreyfus, Waldery Uchoa, Wilson e Walter Fontenele, Wagner e Turbay Barreira, além deste cronista, que a integrava vez por outra. Para que se tenha idéia quanto possível exata da personalidade de Artur Sampaio, recordemos dois dos muitos episódios ocorridos na roda. Certa vez, um dos nossos, moreno
carregado, perguntou "inocentemente" qual a idade de Sampaio, calcanhar de Aquiles dessa interessantíssima personalidade de nossas rodas da Praça nas décadas de 1930 a 1950.
A reação foi imediata: Sampaio quase lhe deu as costas, resmungando alguma coisa, vezo muito seu. Pouco tempo após, o malicioso compa­nheiro, que se achava calçado mas sem meias, oferceu-lhe o esperado ensejo para a resposta cabal, cruzando uma perna sobre a
outra e pondo à mostra sua pele morena. Sampaio não perdeu tempo e indagou onde o malicioso havia comprado aquelas mei­as pretas ... Doutra feita, um dos frequentadores da roda, obser­vando que, a respeito de cada um que se ausentava, Sampaio sempre dizia algo negativo, resolveu sair por último, pensando livrar-se assim de comentários assemelhados. Qual não foi a sua surpresa quando, depois de despedir-se de Sampaio, que ficara sozinho, olhou tranquilamente para trás e viu que o temido com­panheiro o estava saudando com as "armas de São Francisco" ...

Dessa curiosíssima personalidade nos deixou sua forte impressão o primoroso cronista Milton Dias, em artigo publicado em "O Povo" de 11 de julho de 1982, dias após o brutal desastre aviatório em que perdeu a vida seu jovem irmão Batista, que viajava para assistir o enterro de uma cunhada de ambos. Sampaio muito tempo antes, amargurado com a morte de sua mãe, confessara a Mil­ton que "a alegria dos outros o ofendia, que o riso alheio lhe feria fundo, que o aspecto de felicidade que descobria de repente numa pessoa qualquer, amiga ou desconhecida, lhe promovia uma re­volta enorme. Tinha ganas de sair atirando, proibindo as manifes­tações de bem-estar, que lhe pareciam um acinte à sua dor. Era um homem sozinho, que escondia sua tristeza, sua solidão, seus preconceitos e frustrações na conversa inteligente, cheia de pilhé­rias que não poupavam ninguém e que depois se distribuíam um pouco por. toda parte - um homem que eu conheci já na meia idade, espirituoso, irreverente, cáustico, um solteirão que toda noite fazia rir seu grupo de ouvintes atentos. Isto ao tempo em que a Praça do Ferreira era o ponto de encontro obrigatório - e ali, sentado naqueles bancos anatômicos de saudosa memória,  ele pontificava, balançando uma perna cruzada sobre a outra, vestido num branco impecável, um anel de brilhante no dedo
mínimo, o olhar travesso por trás dos óculos, o riso matreiro. (. .. ) 
Ele era um homem sofrido, viajado (quem sabe, algumas vezes humilhado pela vida), fazendo questão, no entanto, de parecer muito seguro de si, muito triunfante, falando de um passado social animado, de festas esplêndidas da alta sociedade em que bri­lhara, nos grandes bailes, nos blocos de carnaval, na elegância, nas conquistas, nas fofocas dos tempos de dantes. Era esta a sua glória maior"

Milton, ainda não ferido pelos espinhos da vida, "um menino que ainda não trazia no corpo e na alma as marcas do tempo", haveria de estranhar aquela atitude francamente niilista de Sampaio. "Daí meu choque (escreveu ele) diante daquela afir­mação que me pareceu egoísta, do homem idoso, andado, ampu­tado de muitas pessoas de seu bem-querer, marcado pela convivência com o sofrimento e com a morte, homem que escondia heroicamente as suas depressões, que tinha pudor das suas angústias, que não confessava fracassos nem desgraças, incapaz de fazer alusão até mesmo às dificuldades financeiras, guardando uma constante de orgulhosa dignidade. Falava muito dos outros e pouco de si". A confissão necessariamente pareceria mesquinha, exagerada, e causaria surpresa. "Muito tempo foi preciso até que  o entendesse" - confessou Milton, afinal, ao embalo da dupla
tragédia que levou a cunhada ainda jovem e o irmão cheio de vida que vinha confortar o outro irmão.

Concomitantemente com a roda (ou as rodas) de Artur Sampaio, reuniam-se em outro local alguns rapazes, muitos deles oriundos de Redenção e de Limoeiro. A preferência recaiu, a princípio, na alameda próxima da esquina das ruas Major Facundo e Guilherme Rocha, formada pela calçada existente entre o meio­ fio limitativo da Praça e uma das passagens de carro abertas com sacrifício do espaço do logradouro, e por isso por eles chamada de Ponta-Porã, Território Federal criado pelo Estado Novo e de­pois extinto pela Constituição de 1946. Não havia banco, mas era como se houvesse. Lembro-me bem dos irmãos Vieira (Francisco, conhecido depois por "Senador", Antônio, já falecido, e o Dr. José Moura, futuro advogado); os irmãos Nascimento (Geraldão, Bibiano e César, filhos de Waldemar, ex-Prefeito de Redenção, todos emigrados para o Rio de Janeiro); os irmãos Camarão (Roberto, depois comerciante, e Fernando, futuro advogado); os irmãos Oliveira Qosé Filho e Antônio, o Nozinho); e mais Tarcízio de Oliveira Lima (alto funcionário da Previdência Federal), Lúcio Bonfim, Helano Montenegro (hoje corretor de imóveis), Antônio Emérico de Sousa (depois advogado), o futuro empresário Osmar Pontes, Otacílio Rodrigues (o Tota), Pedro Rogério de Aguiar Fi­lho (aviador civil, hoje em São Paulo), Antônio da Silva Benevides, José Leonardo Caminha, Alexandre Cavalcante (o "Coronel"), e Pedro Moreira de Queirós (futuro dono da Petrojóias, estabelecida na rua Perboyre e Silva nº 186). Eu também frequentei essa roda que, posteriormente, se fixou em um dos bancos da Praça, preci­samente o que se situava ao pé da Coluna da Hora, em sua face oeste, olhando para a Farmácia Pasteur e o Cine Majestic. Como igualmente frequentei outras: a do Grupo Clã, a de líderes católi­cos (especialmente confrades vicentinos), a liderada por José Elias Bachá e Renê Dreyfus, a de Moisés da Joana D'Arc, a do bondoso capitalista José Manassés Pontes, e a do Dr. Rafael de Codes Y
Sandoval
e Sebastião Arruda Boto, que foi a que mais resistiu, ainda hoje se reunindo ao lado do Cine São Luís, embora desfalcada. 


Não me seria lícito, por excessiva ou falsa modéstia, deixar de por em seu devido e alto lugar os frequentadores do banco em que se sentavam os membros do futuro Grupo Clã, de grande e prolongada repercussão cultural no Ceará, o maior dos últimos tempos, sem qualquer dúvida. Compunham-no Fran Martins, An­tônio Girão Barroso, Aluízio Medeiros, João Clírnaco Bezerra, Stênio de Lucena Lopes, Otacílio Colares, Artur Eduardo Benevides, Eduar­do Campos e eu. Esse banco da Praça foi, quando o grupo cresceu, substituído pelas cadeiras e mesas do Eden Café, estabelecido na face leste do logradouro. 

Prestigiavam-no os "mais velhos" Martins Filho, Joaquim Alves e Braga Montenegro, e admiravam no os "novinhos" Eliardo Farias, Durval Aires, Jairo Martins Bastos e Germano Pontes. Como já nos foi dado dizer, esse grupo, com o fechamento do Eden em 1948, emigrou para o Café do Comér­cio em sua terceira fase (rua Major Facundo nº418). 



Já nos foi oferecida a oportunidade de dizer que havia um banco na Praça frequentado pela jovem liderança católica da ter­ra, especialmente "vicentinos". Situava-se também em frente ao prédio da antiga Empresa Telefônica e seus frequentadores se deixaram fotografar para a posteridade. Essa fotografia, divulgada por Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) em "O Povo", mereceu reparos de minha parte, motivo pelo qual foi reproduzida depois. 



Nela se vêem Florêncio Coelho de Holanda (comerciantes de couros), Luís Augusto Caracas (bacharel em Direito), José Moacir Teles (economista e bancário), Francisco Gentil Nogueira (comerciante e funcionário da Ceará Gás Butano), Itamar Santiago Espíndola (ad­vogado e filólogo), Francisco de Assis de Arruda Furtado (advoga­do e escritor), José Eymard de Arruda Furtado (bacharel em Direito e bancário), José Vicente Ferreira, o Cazuza (santo homem e sapa­teiro com oficina em casinha da rua do Pocinho, lado sul; destruída para a organização de um estacionamento de automóveis e posterior construção de mais outro edifício do Grupo Clóvis Rolim, tal como ocorreu com as demais de sua vizinhança), Manuel Aquino dos Santos (dono da Tipografia Santos, sita na rua Floriano Peixo­to, lado de números ímpares, em prédio desaparecido para no local levantar-se a Casa do Jornalista, e líder trabalhista, tendo sido Presidente da Legião Cearense do Trabalho), Ubirajara Borges (comer­ciante e pai do comunicador Augusto Borges e do Cel. Uirandé Borges), Leandro Pimenta Lira (jornalista e estatístico), o cronista que escreve estas relembranças, além de outros.

Mozart Soriano Aderaldo




Continua...
Parte I
Fontes: Portal da História do Ceará (Gildásio Sá), ACL 1995/1996, Nirez


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