quarta-feira, 22 de abril de 2015

Fortaleza antiga - Assassinato de José Nogueira


Em 1914, não havia no Ceará quem não conhecesse o Instituto de Humanidades, do Professor
Joaquim Nogueira
. Capaz de rivalizar com outros importantes centros educacionais da região, como o Liceu do Ceará, a Escola Normal ou o Ginásio São Luiz, o Instituto tinha como característica mais marcante a engenhosidade de seu diretor em criar novos métodos de aprendizagem. Assim, dificilmente deve ter havido alguém no Ceará que não tivesse ouvido falar da dor de Joaquim ao perder seu único filho, José de Mendonça Nogueira, assassinado aos 22 anos.

Joaquim Nogueira conheceu um desespero só externado
em outras grandes tragédias. Um sofrimento sem medidas, sem limites e sem pudores, tendo como cenário a paisagem urbana de uma cidade em crescimento. Uma tristeza acima de qualquer palavra, e que no entanto começou e teve fim exatamente pela força das palavras,
quando Sixto Bivar, num final de outubro, acusou José de ser filho de um ladrão.




Instituto de Humanidades do Professor Joaquim Nogueira

A discussão não vinha daquele dia. Há muito estava se desenrolando uma carga desagradável de denúncias contra a Tipografia Escolar, da propriedade de José Nogueira, por parte da Firma Comercial H. Barroso, da qual Sixto era representante. A divida, no valor de 200 mil réis, se referia a despesas que teriam sido efetuadas em 1912, apresentando contas vencidas e não pagas. O professor Joaquim só veio a tomar conhecimento do fato no dia em que o filho foi parar na Delegacia de Policia, vítima de uma tentativa de agressão por parte de Sixto.


Cortejo até o cemitério pela então rua das Flores (Castro e Silva).
 Revista Fon Fon e Acervo Lucas

A Delegacia ficava na Praça do Ferreira, próxima ao Café Java, centro de concentração econômica, cultural e popular da cidade. “- O que há?" - perguntou Joaquim Nogueira ao filho, que estava calmamente sentado num sofá, alvo direto dos olhares da multidão curiosa. 


Conforme reconstituição minuciosa dos diálogos, relembrados no livro que fez publicar em maio de 1915, o filho tentou iniciar um relatório detalhado que o pai cortou com brusquidão:
Não quero rodeios. Diga a verdade”.

Multidão acompanha o cortejo fúnebre até o Cemitério São João Batista. 
Revista Fon Fon e Acervo Lucas

Chegada ao cemitério. Revista Fon Fon
A história não era muito longa, e envolvia exatamente uma questão iniciada seis ou sete dias atrás, na Libro-Papelaria Bivar. Sixto Bivar havia protelado para dezembro um pagamento devido a José, amparado numa pretensa divida assumida e não paga por Joaquim Nogueira.

Sixto não havia sido nada gentil. Chamara José de “tapado”, o pai de “gatuno”, e o rapaz só não o agredira graças à intervenção de uma terceira pessoa, presente à discussão. Talvez uma semana houvesse se passado até aquele encontro casual entre os dois, numa tarde quente do dia 28 de outubro, em que José aproveitara para tentar tirar a limpo a acusação.
“-Sixto, você me deve uma satisfação pela injúria que atirou a meu pai”, teriam sido suas palavras. “- A satisfação é essa”, respondeu Sixto, sacando um revólver do bolso e apontando-o para um mais que surpreso José, que no entanto ainda teve presença de espirito para agarrar-se a seu agressor, dar-lhe uns tapas e desviar a arma para o outro lado.

Cemitério lotado. Revista Fon Fon

Os pais visitando o túmulo do filho em 1916. Revista O Malho. Acervo Lucas

“- Um revólver! ”, gemeu o pai espantado, custando a crer que uma discussão sem base tivesse posto em risco a vida de seu único e muito amado filho. Para desassossego de Joaquim, o filho foi liberado juntamente com seu agressor, já que eram, no dizer do escrivão Olegário“dois rapazes de família”. As preocupações de Joaquim Nogueira foram de ordem prática: levar o filho de volta a casa e conseguir o mais rápido possível um advogado que o assistisse num processo contra Sixto Bivar.




Salão do Clube dos Diários frequentado por José Nogueira

Com a tranquilidade da juventude, José não parecia muito preocupado com o fato. Naquela noite, apesar de ser o aniversário do pai, não tinha razões para ficar em casa. Havia primeiro o ensaio do Grupo Dramático João Caetano, ao qual pertencia há algum tempo, e mais tarde a festa promovida pelo Clube dos Diários, que no dia 19 completara seu primeiro ano de funcionamento.


E na calçada do Clube dos Diários, no “sereno” de uma festa que não chegou a terminar...

O pai, ao contrário, estava bastante aflito. Mas preferiu ignorar os apelos da esposa, Olivia de Mendonça Nogueira, que queria ver o filho longe da cidade o mais rápido possível. Dentro de casa, de volta a um ambiente de normalidade, a crise emocional que agitou a família foi rapidamente resolvida. José tranquilizou os pais e saiu. Joaquim tomou o bonde disposto a percorrer praças, avenidas, cinemas e cafés à procura de seu amigo Raimundo Ribeiro, advogado, para resolver de vez a questão. Apesar de apreensiva Olivia foi à casa de sua vizinha, discutir os acontecimentos do dia.


Dia de Finados - Comissão do Clube dos Diários (à esq.) e do grupo dramático João Caetano (à dir.), prestam homenagem em frente ao túmulo. Revista Fon Fon

Ela foi a primeira a se inteirar que algo de muito errado estava prestes a ocorrer. Um pouco depois das 8 e meia da noite, Sixto Bivar cruza a calçada onde ela se encontrava conversando com a amiga, e dirige-se à porta aberta da casa de Joaquim. Um bico de gás incandescente, aceso na sala, recorta a silhueta tensa do inimigo de seu filho. Olivia ergue-se, sem escutar os gritos da amiga preocupada com sua segurança. Com a mesma rapidez com que apareceu Sixto sumiu, aproveitando a escuridão da estreita passagem que ligava a rua à Praça dos Voluntários. Olivia deu a volta no quarteirão, pelas ruas do Rosário e Pedro Borges, e não avistou mais o vulto temido. Pensa em levar o caso ao Posto de Polícia, mas teme o ridículo de estar fazendo um drama de um fato sem grande significado. Um pouco mais tarde resolve recolher-se para dormir, mas não antes da aproximação de dois meninos, em desabalada carreira, à procura de Joaquim Nogueira para uma conversa particular. A esta hora, seu filho já estava morto. 


Praça dos Voluntários

Joaquim, por sua vez, esperava o bonde numa esquina da Praça, para voltar para casa, quando percebeu que muitas pessoas o cercavam com curiosidade. A noticia da morte correra veloz, mas foi preciso um guarda civil chegar até ele e disparar à queima-roupa as palavras que nenhum pai deveria ouvir: 
 Mataram seu filho.

Todo este longo e doloroso relato foi escrito pelo próprio punho do professor, e publicado no jornal "Folha do Povo" a 15 de dezembro de 1914. Encarando de frente a morte do filho, Joaquim Nogueira mergulhou fundo na análise dos fatos, procurando as razões para um gesto
tão sem sentido. No dia de seus 48 anos, ele e a esposa ficaram de repente privados do único filho que tiveram, daquele em quem depositavam tantas esperanças e tanto afeto. O imenso desespero sentido foi canalizado para um movimento solitário de deixar sempre viva a imagem do filho, o que se concretizou na publicação de um emocionante livro dedicado ao rapaz.

Prometia muito, o jovem José. Desde pequeno, com seu traje de marinheiro, sabia manter a mesma expressão concentrada das fotografias posteriores, braços e pernas disciplinados ao comando do retratista de sua infância. Com 12 anos José prestava serviços de aluno auxiliar no internato do Instituto de Humanidades, mantido pelo pai.




Foto ao lado: Jornal Nortista de 1914

Aos 18 já era proprietário da Tipografia Escolar, um presente paterno de enorme responsabilidade, que complementava com a representação das mais vendidas revistas nacionais e estrangeiras do tempo.
Fon-Fon, O Malho, Careta, Revista da Semana, O Tico-Tico, Ilustração Brasileira, as delícias dos leitores brasileiros, chegavam todas ao Ceará pelas mãos interessadas de José Nogueira.

O teatro, através do Grupo Dramático João Caetano, centralizava o interesse de José na arte da representação. E a fotografia, uma curiosidade de grande penetração, era também outro foco a atrair a atenção do incansável José, que desde os 15 anos empregava no aperfeiçoamento desta arte muitas horas de lazer, fazendo do próprio rosto o modelo para novas experiências com ângulos e luzes.

Hermann Lima o conheceu por volta de 1913, na Fotografia Olsen, e o chama de “primeiro amigo" num capitulo das memórias “Poeira do Tempo" (José Olympio, 1967): 

“Rapaz de simpatia fascinante, pouco mais do que adolescente, vivo, alegre, espirituoso, duma beleza viril e duma elegância fácil, a que as boas roupas de casimira inglesa acentuavam o charme natural, José Nogueira era um príncipe encantado”.

Assim o escritor se referia a ele, numa admiração não reduzida pela passagem do tempo. “Era adorado pelas moças, do mesmo passo que amigo de quase todos os rapazes da alta roda, que ele frequentava como sócio dos melhores clubes da terra: o Iracema e os Diários”.

E na calçada do Clube dos Diários, no “sereno” de uma festa que não chegou a terminar, deu-se o encontro entre os dois rapazes. Seis tiros selaram a sorte de José, ensanguentando sua camisa, manchando o chão de pedra, sua queda repercutindo no Brasil e em todos os lugares onde o pai conservava amigos.

A noticia do crime foi publicada nos jornais de Fortaleza, em revistas no Aracati, publicações de Sobral e Baturité, atravessou o Estado rumo ao Sul para chegar ao Rio Grande do Norte, Paraíba, PernambucoAlagoas, chegou à Bahia, Espirito Santo, às revistas cariocas que representava. Foi noticiada em Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Para o Norte, a morte de José foi lamentada no MaranhãoPiaui, Belém, Território do Acre, e atingiu Portugal, Espanha, FrançaItália, Honduras, Venezuela, Argentina e Uruguai.



De todos os lugares vieram telegramas, cartas e cartões de pêsames, no papel tarjado de negro exigido pela etiqueta da dor. Desde o dia seguinte ao crime, 29 de outubro, até o mês de janeiro, a correspondência do luto foi incessante. Enviaram seus sentimentos amigos como Francisca Clotilde, Ana Facó, Carlos Câmara, Rodolfo Teófilo, Júlia VasconcelosBeni Carvalho, Padre Bruno Figueiredo - mais tarde Monsenhor Bruno -, Antônio Bezerra, Alba Valdez, Antônio Sales, Dolor Barreira, Cruz FilhoBarão de Studart.

No dia do sepultamento assinaram o livro de presença 1.297 pessoas, um imenso cortejo enlutado, repartindo com os pais a perda do filho, numa cerimônia dolorosa que parou a cidade. Com tudo isto, Joaquim Nogueira não conseguiu a condenação do assassino de José.
Talvez o fato do patrão de Sixto, Hermínio Barroso, ser no momento Secretário da Fazenda, e mais tarde Secretário do interior, tenha pesado de alguma forma para o veredito emitido pelo júri no dia 9 de março de 1915. Pelo menos esta era a justa suposição de um pai revoltado, descrita explicitamente em publicações posteriores.

José de Mendonça Nogueira passou a ser parte da história do Ceará, graças ao incansável esforço de seu pai na busca de uma justiça que não o atendeu.


Fonte: A História do Ceará passa por esta rua. Vol. II de  Ângela Barros Leal, Biblioteca Nacional e pesquisas diversas.

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