Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Os espaços de lazer na Fortaleza de outrora
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sexta-feira, 1 de julho de 2016

Os espaços de lazer na Fortaleza de outrora


Na virada do século XIX para o XX ocorreram planos de modernização em Fortaleza que incluíram a “remodelação” do espaço urbano, ou seja, a “disciplinarização” do crescimento da cidade. Com o intuito de evitar a expansão desordenada, Adolfo Herbster preservou o traçado xadrez de Silva Paulet, vislumbrando a possibilidade de ocupação das áreas periféricas, fato que não custou a se tornar realidade, enquanto as novas elites econômicas e intelectuais, compostas por comerciantes ligados ao comércio interno e externo, de profissionais liberais como médicos e advogados, em sua maioria bacharéis formados no exterior ou na conceituada Faculdade de Medicina da Bahia, e a classe média de pequenos comerciantes, artistas, poetas e os demais trabalhadores letrados, ocupavam e valorizavam as áreas centrais da cidade, as regiões mais afastadas e com menores condições de infraestrutura foram legadas aos pobres, negros e migrantes do interior do Estado.


Esse sistema de ocupação dos espaços, inspirado nas reformas do Barão de Haussmann em Paris, contribuiu para que as diversões das camadas abastadas fossem isoladas em clubes e salões. Nesses ambientes as elites tentavam se distinguir socialmente se apropriando de bens culturais trazidos da Europa, como os pianos Essenfelder e Doner & Sohn, que eram encontrados em um número reduzido e ritmos europeus como a valsa, a polca, o schottisch e a quadrilha. Já nos areais das zonas periféricas, a “arraia miúda” (designação degradante que os grupos elitistas faziam das camadas empobrecidas, sobretudo aqueles que bebiam e frequentavam bordéis na cidade) se divertia com suas manifestações tradicionais como os fandangos e maracatus. No entanto, essas festas eram, em grande parte, desmanchadas pelas autoridades policiais, com a justificativa que causavam muitos tumultos. Essa condição suburbana imposta a uma parcela da população cearense desfavorecida economicamente, de fato, contribuiu para o surgimento de uma cultura “à margem” do “afrancesamento” e do requinte aclamados pelas elites locais.



Porém, essas “restrições” não foram suficientes para conter a aproximação dos artistas, sobretudo os boêmios, com os mais humildes nas zonas periféricas ou à noite nos espaços públicos. Dos cronistas pesquisados, Otacílio de Azevedo foi o que mais se preocupou em analisar esses episódios. Apesar de Azevedo ser um memorialista e olhar o passado com saudosismo, trouxe em sua escrita um olhar diferencial sobre o movimento musical de seu tempo, que pode ser confrontado com as outras fontes. Ele mesmo foi um grande frequentador dos ambientes relatados, junto com os seus companheiros boêmios.
Foi encontrado em seus escritos o Café do Pedro Eugênio, localizado na segunda seção da linha do Benfica. Esse café “abrigava”, nas noites de sábados e domingos, seresteiros, arruaceiros e intelectuais, como Quintino Cunha, Virgílio Brandão, Carlos Severo, Carlos Gondim, Raimundo Ramos e Mamede Cirino. Pedro Eugênio residia em um casarão ao lado do estabelecimento, antigo Dispensário dos Pobres.


Outro recanto de artistas era o sítio de Pedro Dantas, localizado no logradouro “Mata Galinha”. Estava situado entre Fortaleza e Messejana, local que hoje é chamado de Dias Macedo. Observa-se nos relatos que músicos como Rossini Silvia, Artur Fernandes, Edgar Nunes, Aristides Rocha, Antônio Moreira, Júlio Azevedo, Alfredo Martins e Boanerges Gomes, esse último contrabaixista da orquestra do Cine Majestic, misturavam-se com “gente de todo o tipo”.




A Barbearia de João Catunda foi um lugar, um tanto excêntrico, que serviu de divertimento para poetas, músicos, pintores e teatrólogos reconhecidos pelas suas obras
artísticas em nossa capital. O “salãozinho pobre” de João Catunda era localizado na Rua Floriano Peixoto. A simplicidade do ambiente de teto de estopa caindo, onde os fregueses se
equilibravam em velhos bancos e se refletiam em espelhos mofados e carcomidos, não impedia de se criar um ambiente de debates calorosos. A preferência por esse local era tanta
que passou a ser sede da Academia Rebarbativa, composta por Carlos Severo, Josias Goiana, Luís de Castro, Genuíno de Castro, João Coelho Catunda e José Gil Amora. Otacílio de Azevedo aponta que após as reuniões da academia os boêmios se embebedavam e terminavam a noite na Praça do Ferreira, sentados num banco diante do Café Iracema, de Ludgero Garcia, onde discutiam literatura, “metendo a lenha nos medalhões da época”, como o Barão de Studart, Papi Junior, Antônio Sales, entre outros.


No entanto, é na “Lapinha” (Denominação popular do pastoril) do Paula Ramos que se percebe a intensidade desse contanto com os diferentes grupos, pois encontramos também figuras femininas, cujos relatos dos cronistas eram escassos a respeito da participação delas em divertimentos desse tipo em Fortaleza no período. Empregadas domésticas e lavadeiras tiveram acesso à maioria das músicas que embalaram suas vidas nesse ambiente como foi observado por Azevedo. A Lapinha do velho Paula Ramos se tornou bastante famosa em Fortaleza. Estava situada na Rua do Imperador, para onde se dirigiam à noite centenas de pessoas. Elas costumavam pagar duzentos réis pela entrada no presépio construído sobre o dorso de uma serra, talhada em latas velhas amassadas e cobertas de papel grosso pintado, imitando pedras. Uma pequena máquina rodava sobre os trilhos soltando fumaça, apitando insistentemente e levando atrás um comboio. Um velho gramofone fazia a parte musical, tocando “valsas chorosas” à luz da meia dúzia de lampiões de acetileno.





É notável o empenho de Otacílio de Azevedo em demonstrar que os divertimentos acompanhados por música aconteciam em locais inusitados, e não somente nos clubes, nos
salões e nos teatros. Outro cronista, que também publicou livros documentais e analíticos
sobre música e que analisou a interação entre diferentes tipos sociais nesses locais foi Edigar
de Alencar
. A bodega, por exemplo, foi destacada pelo escritor como um ambiente catalisador e divulgador da criatividade musical entre seresteiros e ex-cativos cantadores.

 


A bodega na Fortaleza de anteontem foi sempre nota de realce da vida pacata da sua gente. Ponto de convergência e reduto de importância acima das rotineiras e modestas atividades mercantis. Assim com a farmácia era o local destacado – e ainda hoje deve ser – dos vilarejos e burgos do interior, a bodega nas cidades maiores era sem dúvida elemento catalisador e divulgador dos acontecimentos que merecessem essa qualificação.
As bodegas mais famosas da cidade eram do Mané Boi (Imperador), do Zé Ramos (Santa Isabel), do Gambetá Bruno (Imperador), Do Maracanã (Imperador), do Zé Macieira e do Chico Ramos (na Tristão Gonçalves, ou Trilho de Ferro), a do Lopicínio, do Eduardo Garcia e do Chico da Mãe Iza. A maioria das bodegas citadas estava localizada em terrenos centrais da cidade e não nos areais. Esse dado é revelador, já que as sociabilidades entre indivíduos empobrecidos podiam ocorrer também em terrenos fora da periferia. Lugar de música e de boemia, a bodega do negro Chico da Mãe Iza foi muito frequentada por seresteiros e violeiros. Francisco Borges da Silva, conhecido como Chico da Mãe Iza nasceu no Icó e possuía uma bodega localizada na Rua 24 de Maio.
Era na bodega famosa que os seresteiros imprevidentes se iam suprir, quando lhe rebentavam de súbito as primas e os bordões: - Ih! Rebentou a terceira! Temos que ir bater no Chico da Mãe Iza! E mesmo que se encontrassem em pontos distantes da Rua 24 de Maio, vinham pela madrugada, batiam na porta e o bodegueiro aparecia, mal refeito pelo sono, para servi-los já ai não só de cordas de violão, mas de generosos tragos de pinga do Acarape, do anis e da genebra ordinária da fábrica de Paulino de Oliveira da Rocha.



A frequência dos boêmios nesse tipo de estabelecimento era tanta que Raimundo Ramos dedicou uma estrofe de seus versos: Palestra de bodega é bebedeira. Os comerciantes, acostumados com a circulação da boemia, abriam seus estabelecimentos fora do horário comercial. O bodegueiro Rato, por exemplo, só abria as portas com a condição de que os músicos tocassem “Zé-Pereira”.* Sua bodega era localizada nos areais da cidade, ou seja,
nos trechos não calçados. Os quiosques situados nos logradouros serviam também de estimulante opção para a boêmia. Nesses ambientes tudo indica que havia exagero de consumação alcoólica.



Os seresteiros, também conhecidos como modinheiros, foram responsáveis pelas resignificações culturais que ocorreu fortemente nessa virada de séculos. No entanto,
observando os relatos de cronistas, periódicos e partituras editadas, percebemos que os
seresteiros pertenciam a “boas famílias” e não encontravam proibição em circular desde
espaços de lazer “da fina flor da sociedade” até os areais. Apesar dessa abertura, os modinheiros não deixavam de ser escrachados pelos familiares das moças galanteadas, que os
viam como irresponsáveis por causa do gosto pela bebida, pela polícia, que os rotulavam como desordeiros por andarem nas ruas de madrugada tocando o violão, e pela Igreja, que não acreditava que as posturas tomadas por esses indivíduos fossem condizentes com a
moralidade da época.

Os bancos das praças públicas em noites de luar serviam para o lazer e a criatividade desses boêmios que se juntavam a mulheres de toda sorte e a todo tipo de gente “degradante” da sociedade. A troca de experiências desses grupos em alguns momentos era produtiva, pois, enquanto os modinheiros se utilizavam dos exemplos de vida dessa gente para compor suas músicas, os habitantes das zonas periféricas aprendiam esse novo saber musical, ou seja, uma nova estética para adicionar a suas manifestações tradicionais. Também propagadoras desse saber musical eram as seresteiras domésticas, mulheres que atenuavam seus problemas cotidianos com o canto de modinhas. Sobre isso Edigar de Alencar comentou:

“Das cozinhas e dos quintais do casario humilde as modinhas subiam aos ares, através da voz
nem sempre afinada das mulheres e das moças lavando e engomando roupa, ou atenuando a
dureza dos afazeres domésticos”.



É possível observar que as diversões dos sujeitos de posses, sobretudo as dos grandes comerciantes, grupos ligados ao regime oligárquico e estudantes recém formados na faculdade de Recife, buscavam se isolar criando suas próprias diversões. Os bailes eram realizados, em sua maioria nos poucos palacetes existentes em Fortaleza, sobretudo nos do Mendes Guimarães, do Capitão-mor Joaquim Barbosa e do cônsul Manuel Caetano de Gouveia. Os salões particulares se denominavam soirée, partida ou sarau, mas todos queriam
dizer a mesma coisa: um evento musical em casas privadas que incluía, em geral, mais do que
apresentações musicais. Normalmente ocorria a leitura de poesia, seguida de número musical,
canto e piano ou peças instrumentais e, por vezes, até peças cômicas estavam entre as atrações da noite. Após o evento, um jantar era oferecido, seguido do baile.
Raimundo Girão narrou alguns dos episódios que ocorreram nos bailes realizados no sobrado do Coronel Eustáquio, em comemoração à vinda do presidente da província
Fausto Aguiar e de sua esposa. Percebemos na descrição de Girão que apresentar “boas
maneiras” nesses eventos era essencial para que os indivíduos fossem aceitos pelos grupos.
Essas “boas maneiras” podiam ser entendidas naquele período como um conjunto de práticas
sociais que incluía a forma de se pôr a mesa, de vestir, de falar, de dançar, de declamar versos
para os convidados, entre outros.




Das sete horas da noite em diante começaram a concorrer os convidados, e à proporção que se aproximava qualquer família, era sua vinda anunciada pela música que, postada na portada do edifício, fazia ouvir agradáveis sons, enquanto os mestres-sala recebiam as senhoras à entrada e as conduziam às salas, onde o bom gosto, com que se achavam vestidas, de tal modo fazia realçar as graças com que a natureza as dotou, que atraiam sem cessar as vistas de todos os assistentes, os quais, com a presença de tantos encantos, aumentavam a alegria de que se achavam dominados. [...] No curso do baile houve mui bem desempenhadas contra-danças, que tinham lugar ao mesmo tempo em ambas as salas, dançando em cada uma, uma vez, dezesseis ou doze pares; os intervalos foram cheios ou por modinhas que algumas senhoras se dignaram cantar com geral aplauso, ou valsas desempenhadas com toda agilidade, tendo também em um deles a exmª Senhora do sr. Presidente, por sua bondade e cedendo às instâncias do Dr. Fernandes Vieira, tocando com todo primor no piano algumas variações da Norma. Antes de concluir-se o baile, foi recitado um soneto e para maior brilhantismo haviam preparado não pequena porção de fogos de artifício, a saber: bastante fogo no ar, figuras, rodas, um balão, etc., O chá foi servido a contento de todos, havendo nele muita riqueza e profusão, notando-se em tudo uma admirável variedade. Finalmente, todo o baile esteve excelente, tendo sido o único inconveniente o de não ter casa bastante cômodo para os
concorrentes.

Os motivos pelos quais Raimundo Girão lançou o olhar sobre essas práticas e espaços estão intrinsecamente relacionados ao lugar social com que ele se identificava. O historiador concebeu suas crônicas a partir das experiências como diretor do Instituto do Ceará, prezando a racionalização dos espaços e dos “bons costumes” como metas para alcançar o progresso. De uma forma geral, os bacharéis em Direito, dos quais Raimundo Girão fazia parte, desempenharam papel fundamental na construção dessa nova ordem urbana.
Assinaladas pela racionalidade cientificista em voga na Europa, formaram instituições de saber, compartilharam dos mesmos anseios civilizatórios das classes dominantes e colaboraram estreitamente com o Estado ao conferir a competência técnica que o poder então
carecia. Galgando prestígio científico e político, esses grupos de letrados pretendiam instaurar
novos conhecimentos e representações sobre a cidade, fazendo circular um campo de diversificadas “verdades” e medidas voltadas para o ajustamento da população às novas
regras de vida e trabalho urbanos.


No entanto, pequenos vestígios da interação social entre grupos distintos aparecem brevemente na obra Geografia Estética de Fortaleza, de Raimundo Girão. Ao tratar das diversões tradicionais da pequena província entre os anos de 1830 e 1870, Girão tece um pequeno elogio saudoso às antigas festinhas domésticas de que “todos” participavam e que
ocorriam no meio da rua, como as noites de São João nos arruados térreos e as brincadeirinhas de cirandas e pastorinhas nas praças encobertas de areia e embora termine seu comentário aclamando o estilo de vida europeu, que proporcionou ensinamentos que, segundo ele, eram postos em prática nos bailes mais luxuosos da cidade.



Continua...

* “Zé Pereira”, marcha que, segundo Edigar de Alencar, há muito ganhara o status de hino do carnaval brasileiro. A sua quadrinha se tornou célebre como grande grito do carnaval: “Viva o Zé Pereira/ que a ninguém faz mal./ Viva a pagodeira/ nos dias de carnaval.” Cf.: ALENCAR, Edigar de. 1967. Op., cit., p. 25.


Crédito: Ana Luiza Rios Martins - Entre o piano e o violão: A modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-1920). /Biblioteca Nacional

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