domingo, 24 de julho de 2016

Os espaços de lazer na Fortaleza de outrora - Parte II



Em 1910, Fortaleza contou, pela primeira vez, com uma grande casa de espetáculo, o Theatro José de Alencar. As negociações para a construção do Theatro José de Alencar foram mediadas em 1908 pela filial cearense da casa Boris Frères, de Paris. Aliás, esta casa costumava intermediar as negociações financeiras de toda a cidade com a França, inclusive as do Estado. Assim, o Theatro José de Alencar teve sua estrutura metálica fabricada na Escócia pela firma Walter MacFarlane & Co. Embora a administração da oligarquia Accioly, como era conhecida por estar desde 1896 no poder, já não gozasse de prestígio e popularidade, o teatro foi um ponto de convergência entre os partidários e opositores do
governo. Vinha corroborar os ideais de modernidade, dos bons costumes e representação de
poder como aponta Carlos Câmara no jornal A República, de 21 de janeiro de 1910:  


“Vai Fortaleza possuir um theatro, uma casa de espetáculos vasta e confortável, que não a
envergonhará aos olhos do estrangeiro. [...] O Theatro é um elemento de civilização e
progresso”
.


 

A inauguração do Theatro José de Alencar foi comentário de muitos impressos do período. Otacílio de Azevedo, por exemplo, que esteve no dia da inauguração, abordou em seu livro de memórias, as sensações daquela noite:

A primeira vez que transpus as portas do Teatro José de Alencar foi na noite de 17 de setembro de 1910 – era a sua inauguração artística, pela célebre Companhia de Operetas Leopoldo Fróes e Lucila Pérez. [...] Três meses antes, a 17 de junho, a casa de espetáculos havia sido entregue ao público da província pelo presidente Acióli, através de um longo discurso proferido por Júlio César da Fonseca, um dos maiores oradores da época. Realizou-se umconcerto pela Banda de Música do Corpo de Segurança do Estado, sob as
batutas dos maestros Luis Maris Smido e Henrique Jorge. [...] No centro da Praça, um enorme e belo coreto, onde a Banda da Polícia Militar executava todas as quintas-feiras belas partituras dentre as quais se destacava a valsa mais querida de todos – “A Norma”.



 Fortaleza e a era do cinema

Curiosamente, não foi encontrada nenhuma nota em jornal, revista ou livro de crônicas da época que anunciassem uma apresentação de música popular. Apareciam, como se observa na citação, apenas apresentações operísticas, de bandas militares ou de orquestras.
Os artistas, por mais que gostassem das diversões noturnas mais ecléticas, demonstravam
deslumbramento para com os divertimentos nos teatros. Ramos Cotôco e Paula Ramos, por exemplo, não só frequentavam ininterruptamente esses locais, como participaram da sua
construção estética, pintando o teto do palco principal e o do foyer.
O cinematógrafo foi outro espaço de entretenimento que “abrigou” um público bastante heterogêneo, sendo, muitas vezes, alvo da crítica das elites. O primeiro cinematógrafo foi instalado em Fortaleza no ano de 1907, por Vitor de Maio, o mesmo que inaugurou no Rio de Janeiro em 1884 o primeiro cinema brasileiro. Ele foi montado na rua Cel. Guilherme Rocha, nos fundos da Maison Art-Nouveau. Em 1909, outros seguiram os seus passos. Henrique Mesiano, que inaugurou o cinema Rio Branco, e Júlio Pinto, que fundou o Cassino Cearense.


Cinema Rio Branco na rua Barão do Rio Branco. A placa do cinema foi percebida pelo pesquisador Nirez -  Fortaleza e a era do cinema

 Fortaleza e a era do cinema

As instalações do Cassino Cearense eram mais modestas se comparadas às do Cinema Rio Branco. No começo, o Cassino Cearense possuía orquestra, na sala de espera inclusive, mas depois passou a ter apenas uma pianista na sala de projeções. Essa presença de instrumentistas e/ou cantores no cinema se explica pelo fato de que os filmes, nesse período, eram mudos. Apesar da presença de camadas abastadas nos cinemas, no início das instalações das salas, os
indivíduos iam apenas ver esses filmes pelo dever social, ou seja, por acharem que essa
prática simbolizava um elo com a modernidade. Havia dificuldade desses cinemas sobreviverem na capital devido à falta de espectadores.


 Majestic - Fortaleza e a era do cinema


Em 1917, um cinema-teatro foi inaugurado em Fortaleza. O Majestic Palace foi descrito pelo memorialista Otacílio de Azevedo como a maior expressão do fino gosto que atraía a fina flor da sociedade. Entre essa “fina flor”, encontravam-se no dia da inauguração seus amigos boêmios Ramos Cotôco, José de Paula Ramos e Antônio Rodrigues. A presença desses indivíduos ligados à boemia na casa de espetáculo é um alerta sobre a importância de se conhecer a fundo as estratégias, sobretudo de Ramos Cotôco, de mediar e condensar suas
experiências nas modinhas que produzia. Ainda, segundo Azevedo, a estreia dos espetáculos
foi feita por músicos profissionais, um deles vindo de fora, como se pode observar abaixo:
 

Da segunda porta do belíssimo cenário, surge Fátima Míris, vestida como japonesa e, após entrar rapidamente na primeira porta, voltou a sair, desta vez na forma de um pastor. Era inacreditável tudo aquilo. [...] Ao levantar-se o pano, no segundo intervalo, a violinista deslumbrantemente trajada apareceu, imitando um dueto com tamanha habilidade e perfeição que o maestro Henrique Jorge, subindo ao palco, ajoelhou-se e beijou-se as mãos.
[...] ficaram todos boquiabertos e assombrados diante da excelsa intérprete de Paganini. [...] Ao cair o pano, em meio à maior chuva de aplausos, gritavam a todos a uma só voz: “bis, bis”, ao que ela entendeu.


Os clubes também contribuíram para a institucionalização das diversões. No fim do século XIX, eles foram tomando o lugar dos bailes que ocorriam nos sobrados e palacetes da capital. A narrativa de Raimundo Girão adverte que, aos olhos dos estrangeiros, aos poucos os clubes se tornaram vulgarizados. Fortaleza foi denominada por eles como “A cidade dos clubes”. No
entanto, acredita-se que esse comentário foi uma forma pejorativa de encarar os habitantes
como indivíduos dispostos ao gosto por “coisas efêmeras”.




O Clube Cearense, que surgiu no ano de 1867, e estava localizado num sobrado residencial da Rua Senador Pompeu, de propriedade de D. Manuela Vieira, foi, segundo Girão, um clube bastante seleto, que comportava os indivíduos mais “ilustres” da sociedade.
Nesse tempo, era predominante a atuação de estrangeiros na Capital, notadamente ingleses,
franceses e portugueses, afeitos às “exigências” das grandes cidades europeias e, por essa
razão, frequentadores assíduos do clube. Essa seleção social fez surgir uma reação de grupos
intelectuais que se sentiam agredidos por não terem a entrada permitida no clube, surgindo
assim, no ano de 1880, o Clube Iracema. Essa agremiação era composta, em sua maioria, por moços do comércio, um número pequeno de estrangeiros, empregados públicos. Esses indivíduos que pertenciam à agremiação do Clube Iracema, embora tivessem sofrido preconceito de classe, não deixaram de fazer o mesmo recebendo apenas “todos os dignos da cadeia social da cidade”.  Um dos comentários feitos por Girão em defesa do Clube Cearense é revelador:


Não há aristocracia dos bailes do Clube Cearense, nem essa grandeza de nobiliarquia, nem as deslumbrantes toilettes do clássico noblesse oblige, mas em compensação há vida, mocidade e prazer, que fazem do baile, não um agrupamento convencional de etiquetas e exposição de tipo e trajes, mas uma assembléia jovial, familiar, alegre, buliçosa, ativa, forte e robusta, que
enche os pulmões de prazer e desenvolve-se, marcha, evolui, por meio dessa higiene moral que faz das sociedades o fator da civilização, do progresso e da grandeza da humanidade.


 
As confraternizações no Clube Cearense eram pensadas para ter funções além da de entreter. Percebemos que as diversões, como os concertos, recitais e sessões literárias, tinham a finalidade de educar e, ao mesmo tempo, moralizar os espectadores. A família nuclear deveria ser mantida a todo custo, ou, do contrário, não se era visto com “bons olhos” pelos outros pertencentes à agremiação. Quando o Clube Cearense fechou suas portas, coube ao Clube Iracema manter esses ideais de valorização da família e dos “bons costumes”, com a finalidade de “civilizar” os habitantes da capital. O Clube Iracema aumentou a sua fama após inúmeras apresentações de companhias internacionais, entre elas as italianas, além da presença do compositor Alberto Nepomuceno, que, por ter completado seus estudos musicais na Europa e possuir certo renome, passou a ser um símbolo de indivíduo civilizado:

Ficou afamado, tido e havido com o primeiro grande concerto presenciado pelos fortalezenses aquele tão bem descrito pelo cronista Pery e no qual (1884) tomaram parte amadores prata-de-casa e artistas da Companhia Lírico-Cômica Italiana, de Luigi Milone, que representava no Teatro São Luis: Salões literalmente cheios, uma miríade de olhos divinos constelando um  jardim de rosas sob as cintilações dos candelabros num giorno fantástico, ideal, celeste. [...] O jovem maestro Ciro Ciarlini e o grande orquestrante Joaquim Franco ao piano arrebataram, como arrebataram com as suas gargantas privilegiadas a prima-dona Sidônia Springer, na Serenata de Braga, e os barítonos Cesare Baracchi e Dominici, cantando este a Balo in maschera, romanza de Verdi. Dos nossos, deram desempenho maravilhoso Celina Rolim e a irmã Branca Rolim, “as jóias queridas do calor de Iracema”, as senhoras Maria Abreu Albano e Maria Amélia Teófilo, e o diletante José Marçal, grande vocações artísticas que era. [...]E o renome do Clube Iracema, nos domínios da ate, cresceu com o fulgor que lhe vieram dar, com as suas admiráveis interpretações, virtuosos do valor de Alberto Nepomuceno, Henrique Jorge, Moreira Sá, Frederico do Nascimento, Galiani Vincenzo Cernicchero, Artur Napoleão, Adrés Dalmau, Ladário Teixeira [...]

 
Com o passar do tempo, outras agremiações nasceram como, por exemplo, A Fênix Caixeiral (1894), o Reform Club (1886), entre outras. Algumas dessas agremiações eram modestas e se fixaram em locais distantes da área central da cidade. Outro grande clube em Fortaleza, que só abriu em 1913, levou o nome de Clube dos Diários por seus fundadores
João Garcia Árêas, Francisco da Costa Freire, Martiniano Silva, José Mendonça Nogueira, João Mar-Do-well Guerreiro Lopes, César Cals de Oliveira e Henrique Jorge.




No fim do século XIX, outros pontos de encontro foram instalados na cidade de Fortaleza. Os cafés afrancesados e os bares eram frequentados por um público bem distinto, entre eles estavam presentes intelectuais, boêmios, caixeiros, políticos, estudantes, entre outros. Estes locais aguçavam debates fervorosos sobre assuntos do dia a dia, críticas políticas ou, até mesmo, mexericos sociais. Os cafés locais eram inspirados nos de Paris. Café de La Paix, o Café de La Regence eram representações do gáudio e glamour e, por isso, serviram de
modelo para a construção dos quatro cafés instalados na Praça do Ferreira: O Café Iracema, Café Elegante, Café do Comércio e Café Java, este último, lugar de encontro dos intelectuais da Padaria Espiritual. Seu proprietário era conhecido como Mané Coco, um homem espirituoso, que adorava frequentar circos e teatros.


O Café Riche teve vida curta mais intensa. Curiosamente intensa, porque essa intensidade não significava movimento comercial de receita para os proprietários. Funcionava na esquina mais famosa da cidade, em plena Praça do Ferreira, na Rua Guilherme Rocha, antes Municipal e 24 de Janeiro. Na hora do almoço, a parte do Café Riche que era bar enchia-se dos fregueses que trabalhavam no comércio. Já à tarde, os frequentadores eram mais estudantes, artistas e literários. Os cafés eram espaços de sociabilidade mais democráticos do
que os clubes e os salões da elite, consequência da não necessidade de consumir para sentar
nas cadeiras do estabelecimento.



As discussões nesses cafés geravam frutos, pois, segundo Azevedo, muitas agremiações, revistas e jornais foram fundados nas rodas de conversas nos bares e cafés da cidade. O Café Java, por exemplo, era sede de discussões políticas fervorosas. Entre seus frequentadores estavam Amâncio Cavalcante, Leonardo Mota, Eurico Pinto, Gérson Faria, William Peter Bernard, Ramos Cotôco, Chamarion, Carlos Severo, Gilberto Câmara, Quintino Cunha, o Rocinha, da farmácia, o Pilombeta, muitos deles boêmios.
Enfim, percebe-se que a circulação de artistas e uma parcela menor de intelectuais nos variados espaços da cidade foi imprescindível na tentativa de diminuir o controle sobre as diversões públicas. O “lugar da música” foi relativamente controlado por indivíduos preocupados com o progresso da capital, pois havia o lugar para tocar as fanfarras militares
(em coretos de praças), o lugar das orquestras (em teatros e clubes), o lugar dos pianistas (em
cinemas e bailes suntuosos), entre outros. Porém, a improvisação, marca de grupos que se esforçavam para manter vivas suas manifestações culturais, resignificavam dia a dia o “lugar
da música”, fazendo-as em bodegas, quiosques, residências e, principalmente, no meio da rua.


Alguns escritores advertiram que os lugares de música podem ser bem inusitados e que as pessoas podem transitá-los de acordo com suas necessidades. Oliveira Paiva em seu romance de ficção A afilhada, por exemplo, percebe que, na sociedade de que fazia parte,
havia, embora em número muito reduzido, homens que garantiam a circulação das práticas
musicais. Embora fosse um personagem criado pelo autor no século XIX, Coutinho era fruto
da sociedade fortalezense, que serviu como modelo para o romance:


Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel-mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastilhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube Iracema, magricela, olhos cavados. Nas horas d’ ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos do gênero piegas dos últimos trovadores de salão.
[...] Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta. [...] Convidado a toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará. Ninguém como ele sabia marcar uma quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes com um colete branco.





Crédito: Ana Luiza Rios Martins - Entre o piano e o violão: A modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-1920). /Biblioteca Nacional 

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