Ainda se conserva, entre os antigos de Fortaleza, uma vaga reminiscência da festa do Dia dos Rei, que se efetuava na Igreja do Rosário.
Festa de pretos, mas levada com grande pompa e luxo, as negras escravas ostentando grossos cordões de ouro, brincos e joias de valia, que suas bondosas senhoras lhes emprestavam para que se apresentassem com o espavento e brilho exigido pela importante cerimônia da missa e coroação dos reis.
Conserva a tradição a fama destas festas e recorda o poder despótico de que os reis ficavam investidos nesses afastados e famosos dias: podiam dar ordens a quem quer que fosse, prender ou soltar qualquer dos seus súditos; e conta-se de que um deles que, para mostrar para quanto prestava, mandara amarrar em um poste, no pátio de Palácio, um pobre negro com o olho para o sol.
Imagine-se o que faria esse Pedro Cru africano com os seus senhores se, pelos vaivéns da sorte, viessem, um dia, a ser seus escravos!
Um negro malcriado e pernóstico viveu aqui, lá pelos anos de 1840; e como gozasse de certa influência entre seus pariceiros foi escolhido rei mais de uma vez.
Porque tinha o nariz grande e as ventas muito acesas, era conhecido por 'venta de roqueira', ou, simplesmente, Roqueira.
Segundo os bons exemplos dos homens de então, tinha em casa a sua Marcela, teúda e manteúda. Não temos certeza de que fosse escravo; mas, pelo que vai a seguir, parece-nos que era negro forro.
Certa vez, tendo sido eleito rei, pediu a Antônio Antunes, poeta malicioso e satírico, que escrevesse um discurso laudatório, para ser lido logo após a missa solene.
Antunes, que não era gente e concentrava em si espírito do Ceará-moleque, irreverente e acanalhado, compôs uma versalhada exaltando a "Sua Majestade".
Chegado o momento oportuno, começou a ler os versos, perante a corte e a assistência.
Roqueira, assentado no trono, de coroa na cabeça, tendo ao lado a sua rainha, impava de satisfação e de orgulho.
Antunes continuava, muito sério, a desenvolver, em meio à aprovação ingênua dos pretos e fingida dos brancos, a lista de virtudes e qualidades do monarca.
O penúltimo verso, infelizmente, a tradição não conservou, mas, ainda mais do que os outros, exaltava o rei. O último porém, dizia assim:
Para mostrar que sou rei,
Marcela me ponha nu,
Toque-me fogo no ...;
Verão que estrondo darei.
Por pouco a igreja não desabou ao troar da gargalhada que se seguiu. Um escândalo!
A alusão ao apelido era clara. Roqueira não perdeu o aprumo; mas todos viram que ficara "reinando" (os nossos antigos empregavam o verbo reinar no sentido, também, de se estar impando de raiva, mas em silêncio).
Quando a festa terminou, Roqueira agradeceu, com um riso amarelo, os cumprimentos dos que se iam. Passados dias, Antunes levava uma derreadela de pau, que o deixara bem convidado.
Era a vingança de Roqueira.
Conta John Lingard, na sua History of England, que certo rei inglês mandara açoitar um poeta que fizera uns versos menos respeitosos e alusivos a Sua Majestade.
Aplicado o castigo, dissera o soberano aos cortesões: "Vejam com isto, estes poetastros, a sorte que os espera se ousarem menoscabar o rei de Inglaterra".
Roqueira não sabia disto, porque, se soubesse, teria carregado a mão ainda mais; e se Antunes conhecesse o fato, teria tido mais cuidado com a língua porque, ainda naqueles tempos, era perigoso debicar um poderoso, embora fosse ele rei de um só dia.
05 de janeiro de 1938
Fonte: Livro Fortaleza Velha de João Nogueira - 2ª Edição - 1981
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