sexta-feira, 20 de outubro de 2017

As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte III


Que Fortaleza modificou o seu espaço urbano a partir da seca de 1932, é fato! Agora, como esse processo de modernização e como toda essa modernidade era utilizada através dos discursos das elites para legitimar a vertiginosa urbanização que ocorria na década de 1930? E como as camadas mais pobres viviam essa modernidade?

No relatório do Interventor federal Roberto Carneiro de Mendonça, vemos como o discurso da modernidade estava presente, no que se refere à justificativa da implantação de um relógio na Praça do Ferreira e em relação à própria remodelação da praça:

Sobre a praça no Relatório do Interventor 

A Praça do Ferreira era considerada o coração da cidade, segundo o interventor, a praça era o principal “órgão” da cidade, uma vez que ela é o “centro de convergência das atividades”, atividades essas que poderiam ser culturais, mas principalmente comerciais. Por isso o interventor justifica a implantação de um “relógio oficial”, pois o ritmo de trabalho da cidade estava mudando, e era importante que a população tivesse um controle mais racional de tempo, uma das características da modernidade.

O relógio se tornava fundamental para uma cidade que estava passando por um processo de modernização desde o final do século XIX, mas que tinha uma população hegemonicamente rural e que não era adaptada à disciplina de trabalho capitalista, racional e moderna, que ocorria na cidade, já que o caráter disciplinador das relações de trabalho, que a implantação do relógio objetivava, se tornava ainda mais necessário a partir da seca de 1932, pois o fluxo migratório foi muito intenso, e o governo demonstrava um maior nível de organização racional, no que tange ao controle social dos retirantes. Desta maneira, essa massa de “flagelados” que ocupava a cidade deveria se adaptar a uma disciplina de trabalho moderna, sincronizada e racional, onde não haja “desperdício” de tempo. Aliás, não só os retirantes deveriam se acostumar com esse tipo de vida, como os demais habitantes da cidade.


Todavia, a coluna da hora não pode ser entendida apenas como uma obra para embelezar a cidade. Além da preocupação estética, havia o interesse funcional que o relógio tinha para a Fortaleza “moderna”. A estratégia do governo era “otimizar” o tempo para a produtividade. Isso não significa dizer que assim que o relógio foi erguido, as relações de trabalho mudaram radicalmente. Pois há conflitos entre a temporalidade do relógio e a temporalidade da população, que no caso de Fortaleza, era substancialmente rural.

Fortaleza estava passando por um processo de modernização, que se refletia em vários aspectos: culturais, econômicos, políticos e sociais. Os retirantes eram utilizados para construir e remodelar o espaço urbano da cidade. Em contra partida, eram obrigados a morar em locais que não eram planejados de maneira racional, mas a partir das necessidades imediatas de ter uma moradia. Assim sendo, a modernização como palavra de ordem nos discursos políticos do governo, passava a quilômetros da periferia e dos bairros pobre da cidade.

A cidade era ainda bem pequena, como se percebe através da planta levantada em 1932, época em que conseguia recobrir bem pouco a mais do que as vias planejadas por Hebster em 1875! A partir do início do decênio de 30, desenvolve-se a cidade toda, zoneando-se de acordo com a estrutura preexistente. Os bairros mais modestos vão se espalhando ao longo das ferrovias, junto das quais, principalmente na zona oeste, surgem as indústrias. As pessoas mais abastadas começam a preferir a Aldeota”. (CASTRO, 1977, p 35 e 36).

Planta de 1932

Após a seca de 1932, a cidade aumenta consideravelmente o seu espaço urbano. Mas esse espaço é modificado a partir dos grupos que o habitam, pois bairros mais modestos vão se formando próximos às linhas de trem que estavam surgindo. Isto ocorreu provavelmente devido às estratégias do governo de controlar as levas de retirantes que chegavam à capital pelos trens e lá já se “instalavam” em campos de concentração, ou fora deles, construindo as embrionárias favelas. Também se instalavam próximos às indústrias, pois seriam eles os operários, sem falar que ficariam distantes dos grupos mais abastados que não gostavam de ter “flagelados” como vizinhos.

Construção da Coluna da Hora na Praça do Ferreira. Acervo Ricardo Figueiroa

Neste sentido, as formações dos bairros de Fortaleza estão intrinsecamente ligadas às diferenças sociais dos grupos que o habitavam. Assim, a modernização de Fortaleza é excludente, pois só uma parte da população usufrui da sua urbanização e também é contraditória, pois a maioria da população da cidade é de origem rural, ou seja, “não-moderna”.
É interessante percebermos o choque que havia entre os retirantes e a elite fortalezense que “lutava” para transformar Fortaleza numa cidade moderna com uma população hegemonicamente rural:

Mesmo na época em que se fixam as primeiras grandes levas de imigrantes rurais, trazidas pela seca de 1932, período de grandes transformações sociais e econômicas, quando grupos recém-chegados, sem tradição de vida urbana, se tornam demograficamente majoritários, mesmo nesses dias, jamais se apegaram as características do viver fortalezense, ora traduzidas pela complacência diante da novidade, ora marcadas pela ironia demolidora e amarga aos valores mais consagrados, herança do elevado nível de vida intelectual de fins do século XIX, perfeitamente configurado pela posição antiprovinciana daquele grupo sério da Padaria Espiritual. (IDEM, 1977, p. 44).

Praça na década de 30 - Arquivo Nirez

Através da fala de José Liberal de Castro, é possível observar o choque cultural entre a elite intelectual de Fortaleza e os retirantes. Esses considerados como provincianos, sem tradição urbana, espantados diante da “cidade moderna”, que tinha uma população mais intelectualizada, adaptadas aos “ideais de modernidade” desde o final do século XIX.
Torna-se plausível questionar se Fortaleza era uma cidade moderna na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, uma vez que ao mesmo tempo em que ela passava por reformas urbanas, que modernizavam seu espaço físico, era habitada por uma população majoritariamente rural, que tinha costumes, hábitos, considerados pelos grupos dominantes como não modernos.

No discurso do cronista Mozart Soriano Aderaldo¹ numa crônica do livro História Abreviada de Fortaleza, referente a Fortaleza moderna, percebemos sua visão acerca dos retirantes, da modernidade e as contradições que a permeavam:

Se assim procediam as chamadas "elites‟, o que não dizer da "massa‟, dos habitantes de nossos subúrbios? Levas de emigrantes em consequência das secas, constroem "favelas‟ em seu derredor e trazem para a cidade problemas sociais, os mais variados, da prostituição de infelizes mocinhas pobres ao "biscatismo‟ consequente da mão-de-obra não qualificada. Do costume de cuspir no pé das paredes ao alimentar-se nas ruas e jogar nas calçadas as cascas se bananas, manga e laranja ali mesmo consumidas. Dos pés descalços à roupa em trapos e mal lavada. (ADERALDO, 1974, p 60).

Apesar de a crônica ter sido escrita posteriormente à década de 1930, pois o livro não traz a data específica da crônica, é muito importante para analisarmos como o autor representava os retirantes. Segundo ele, são os emigrantes que traziam os problemas sociais para a cidade, como a prostituição, o biscatismo, mão de obra desqualificada, sem falar que seus costumes eram “péssimos”. Jogar cascas de bananas nas calçadas, andar de pés descalços, esfarrapados, alimentarem-se nas ruas, etc. A partir de uma representação negativa sobre os retirantes, podemos observar como se davam as contradições entre os grupos sociais em Fortaleza, onde os costumes dos retirantes se mostravam diametralmente opostos aos das elites. A modernidade da Capital mostrava-se deveras paradoxal.

Apesar dos costumes sociais que Fortaleza presenciava no inicio da década de 1930, como a seca de 1932 e a invasão de uma população de “flagelados” em seu território, havia em contrapartida a introdução de novas tecnologias que animavam as classes abastadas, que associava essas tecnologias ao desenvolvimento do progresso na capital. “Ainda em 1933, a título de experiência, em trecho da cidade se inaugurou a pública iluminação elétrica, denunciando-se, em consequência, o contrato com a Ceará Gás, cuja duração se alonga por muitos anos, entravando o nosso progresso.”(ADERALDO, 1974, p. 55).

Centro da cidade. Vemos o quarteirão entre a rua Guilherme Rocha e a Liberato Barroso na década de 30. 

A eletricidade se torna sinônimo de “novo”, urbanização, modernização, em detrimento do velho, antigo e “insuportável” gás carbônico. Outra inovação para a cidade na época foi a primeira transmissão a rádio realizada na inauguração da Coluna da Hora, representando dois marcos simbólicos que denotavam a cidade de “progresso e modernização”.

No dia da inauguração da coluna, 31 de dezembro de 1933, foi realizado nos estúdios da casa Dummar, futura PRE-9, então nos altos da atual sede da CIMAIPINTO, a primeira transmissão radiofônica no Ceará, para aparelhos receptores fixados no referido monumento do centro da Praça, a não mais de 200 metros de distância... Mas que progresso para época! (IDEM, 1974, p 54 e 55).

O ano seguinte, em 1934, vai ser inaugurado à primeira radio do Estado do Ceará. É a Ceará Radio Clube (PRE-9), que significava então para a ascendente burguesia urbana de Fortaleza, que a capital estava se modernizando e em constante “progresso”.

A praça na década de 30 - Arquivo Nirez

As classes abastadas são as que mais se beneficiam da modernidade e urbanização de Fortaleza, pois as principais obras de urbanização, saneamento, aterramento, são realizadas no centro da cidade, e a grande massa de retirantes, não vai ter acesso, nem, vai usufruir da urbanização da cidade. Porém, essa população de retirantes não era passiva nesse processo de transformação da cidade. Eles se organizavam, questionavam o governo e faziam saques de mercadorias, forçando assim a burguesia e o governo a cederem as suas pressões. Nesse sentido, os retirantes também são protagonistas da cidade, chegavam a incomodar a “paz urbana” das elites e ameaçar a quebra da ordem. Consequentemente, sendo eles o “flagelo” da elite, que era obrigada a conviver com essa população que lotava a cidade a partir da seca de 1932. Miséria e luxo coexistiam não como um antagonismo indissolúvel, mais como fruto de uma modernidade paradoxal e excludente.
Contudo, nos períodos de secas, como a de 1932, intensificavam-se os conflitos e exacerbavam-se as contradições na capital. Uma população de retirantes sem recursos materiais, devido a uma série de fatores como concentração de latifúndio no campo, má distribuição de renda, conflito de interesses entre classes sociais, política excludente do Estado, dentre outros, contribuía para aumentar a violência na cidade.

Praça na década de 30 - Arquivo Nirez

O governo e as classes abastadas da capital queriam expurgar o centro e os seus bairros de moradia, o que significava afastar do seu convívio as camadas mais pobres. Porém essa não era uma tarefa fácil, pois as camadas mais pobres representavam a grande maioria da população, que tinha migrado para a capital devido à seca de 1932, e que buscavam em Fortaleza uma melhoria na qualidade de vida, e não um recrudescimento da miséria.

É importante compreender a modernidade como sendo um complemento do desenvolvimento capitalista na cidade, uma vez que as reformas urbanas que ocorreram em Fortaleza no inicio da década de 1930, mais especificamente nos anos 1933 e 1934, estavam relacionadas também ao contexto de uma nova classe social que emergia no País, a burguesia industrial urbana.


¹Mozart Soriano Aderaldo, apesar de ter nascido no Maranhão era descendente de uma tradicional família cearense de Mombaça. Ocupou vários cargos no governo chegando a ser prefeito de Senador Pompeu, diretor da Imprensa Oficial do Estado, secretário Estadual de administração do governo Plácido de Aderaldo Castelo. Foi também professor universitário e participou efetivamente do grupo Clã. Fizemos essa lacônica apresentação para que possamos entender melhor o seu lugar social da fala. Portanto, entender melhor o seu discurso.



As melhorias urbanas durante a seca de 1932
As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte II

Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza



Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará/ Livro Fatores de Localização e de Expansão da cidade de Fortaleza, do arquiteto José Liberal de Castro/ http://memoria.bn.br/

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

As melhorias urbanas durante a seca de 1932 - Parte II


Trecho da rua General Sampaio pavimentado a concreto. 
Foto do Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça

Conforme relatei no post anterior, durante a seca de 1932 Fortaleza foi agraciada com várias melhorias urbanas, tanto por causa da mão de obra barata, como pelos recursos atraídos do governo federal devido à seca. Outro aspecto da morfologia urbana que sofreu alteração nesse período foi o calçamento. Houve um investimento exorbitante do governo e de alguns setores capitalistas, nos anos de 1932 a 1934 em relação à pavimentação das ruas, e desenvolvimento de um novo calçamento. As ruas estando mais bem pavimentadas favoreciam o desenvolvimento do comércio e da indústria da construção civil, uma vez que nesse período várias cooperativas de construção se instalam em fortaleza, abrindo possibilidade até para o parcelamento de casa em várias prestações, refletindo uma expansão do crédito e aumento do capital financeiro.

Fortaleza era uma das cidades do Brasil de pior pavimentação. Depois do surto de renovação verificado nos últimos anos e que tem dado à capital cearense aspecto de cidade moderna, era triste ver como destoava do seu progresso a velha e antiquada pavimentação das suas ruas de pedra irregular, em péssimo estado de conservação e sem os indispensáveis serviços de escoamento das águas pluviais.
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292.)

Esta situação é lapidar em relação aos interesses do governo. Ele utiliza o discurso do “progresso”, da “modernidade”, em contrapartida de uma cidade velha e antiquada, que tem por urgência ser pavimentada, remodelada, em que o serviço de escoamento das águas estava obsoleto, aliás, “nem existia”. O calçamento era feito de pedras irregulares, em péssimo estado de conservação, criando assim uma imagem de caos em Fortaleza antes dessas obras, como sendo indispensável modernizá-la. Mas os interesses do governo, e desse setor capitalista, tornam-se mais cintilante e ganha um sentido mais abrangente, ao observarmos a continuação do trecho citado acima.

A prefeitura, chegada a oportunidade, resolveu tão importante problema mandando abrir a necessária concorrência pública para a construção de dois tipos de calçamentos – a concreto e a paralelepípedo. [...] continua, revelando os interesses da burguesia [...]. Venceu a concorrência a firma Industrias Brasileiras Portela S/A que executou muito bem o seu contrato, cobrindo 10.000m² daquele primeiro tipo e 10.000m² do segundo. Aberta nova concorrência em janeiro deste ano, foi vencedor o Dr. Omar O`Grady; com quem foi contratada, de acordo com o edital de concorrência, a cobertura de.... 100.000m², distribuídos em três exercícios financeiros consecutivos sendo 25.000m² em 1934, 35.000m², e ....40.000m² em 1936. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292.)

Com observação desta fonte, é possível inferir como essas obras representavam um lucro exacerbado para esse setor. Havia uma disputa pelas licitações, que demonstrava qual fração do capital tinha uma relação mais “íntima” com o governo. Nesse caso, o Dr. Omar O´Grady venceu a concorrência das Indústrias Brasileiras Portela S/A, e continuou com uma “ boa relação com o governo” durante mais três exercícios financeiros consecutivos até o ano de 1936. Essas melhorias também movimentavam um grande mercado da indústria da construção civil.


Até hoje, por conta da metragem do exercício em curso, foram construídos 2.217 m² de concreto e 11.614 m² de paralelepípedo, num total de 18.831 m². No período de janeiro de 1933 a esta data, se construíram 68.376 m² de calçamento comum em ruas menos centrais e reconstruídos 80.647 m², ou seja, 107.480 m², assim distribuídos:
Calçamento a paralelepípedo -------------------------------------------- 21.887 m²
Calçamento a concreto --------------------------------------------------- 17.217 m²
Calçamentos comuns ----------------------------------------------------- 68.376 m²
Total ---------------------------------------------------------------------107,480 m² 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 292-293.)

Assim, essas reformas urbanas foram fundamentais para o desenvolvimento do circuito secundário da sociedade e da indústria da construção civil. Essa urbanização ocorreu concomitantemente à industrialização de Fortaleza, pois era necessário ter um aparato tecnológico desenvolvido para possibilitar a construção em larga escala, sem falar na mão de obra livre e barata das pessoas que vinham do campo e que, rapidamente tinham que se metamorfosear de camponeses em operários. Esses dados acima também mostram como o volume de melhoramentos foi intenso a partir da seca, e como algumas frações de capital souberam aproveitar o momento para ampliar sua margem de lucro e desenvolver suas indústrias.

A cidade de Fortaleza, ao mesmo tempo em que era a mais desenvolvida do Ceará, e que tinha uma maior industrialização, uma maior rede de comércio e uma maior urbanização, também passa a ser o lócus das contradições de classes, onde existiam vários sujeitos disputando os seus espaços. Daí o medo do governo e dos grupos privilegiados no que se refere ao controle social dos retirantes.
O governo, porém, continua a sua propaganda urbanista:

Como conseqüência natural do preparo da nova pavimentação, teve a prefeitura que estudar e construir as galerias de vazão das águas pluviais, serviço de que a cidade se ressentia quase totalmente. Correspondentes aos trechos cobertos com calçamentos a concreto e a paralelepípedo, foram construídos 724 metros de galeria, as quais produziam resultados magníficos durante o ultimo inverno, ficando assim provada a sua eficiência. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 294.)

Fortaleza, a partir da seca de 1932, virou um verdadeiro “canteiro de obras”. Ainda foi feito nesse período um serviço de colocação de meios-fios, no qual a prefeitura aproveitou para fazer propaganda do seu governo, comparando com o governo anterior. Portanto, as melhorias eram utilizadas das mais diversas maneiras possíveis, desde a propaganda do governo, lucro da indústria da construção civil, valorização do capital imobiliário, até o controle social dos retirantes através do trabalho. Podemos perceber como a seca contribuiu para aumentar a quantidade de obras na cidade, se observarmos o quadro abaixo que mostra a quantidade de meio-fios que foram colocados na capital:

(Dados do Relatório do Interventor federal Carneiro de Mendonça).

Se compararmos o triênio anterior à seca, que foram construídos 15.028 metros, com o triênio da seca que foram construídos 28.984 metros, houve, portanto, um aumento considerável, e a administração Raimundo Girão, a partir de abril de 1932, ao assumir a prefeitura, não hesitou em considerar ser este resultado mérito de sua administração. Porém, diversos elementos contribuíram para isso, como a seca, que atraiu recursos, os retirantes servindo de força de trabalho barata e volumosa, o investimento de capital por parte de alguns capitalistas, e a industrialização de Fortaleza que estava mais desenvolvida.

Além dos serviços de meios-fios, galerias de vazão de águas pluviais, terraplanagem de dunas, construção de praças, Fortaleza foi dotada de um novo sistema de numeração, considerada no discurso oficial, como mais adequada ao aspecto de “cidade moderna”.

Através do Decreto municipal nº 75, de 31 de dezembro de 1932, modificou e normalizou a nomenclatura das ruas e logradouros públicos da cidade, até então incongruentes, desordenada e falha. Em consequência, foram colocadas e substituídas inúmeras placas e iniciado o serviço de numeração dos prédios, já tendo sido apostos mais de 18.000 números. 
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 294.)

Desta forma, a cidade passou por diversas reformas infraestruturais para torná-la mais “moderna”, ou seja, mais apta a desenvolver o capitalismo. Mudou-se até mesmo o sistema de limpeza pública que “foram substituídos por auto-caminhões convenientemente adaptados, as velhas carroças que desde tempos imemoriais faziam transporte do lixo domiciliar. Desta maneira o serviço é hoje feito com rapidez e eficiência, sem aquele aspecto moroso e antiquado.” - Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 297.

O Estado (interventoria e governo municipal) vai substituindo todos os aspectos mais rurais de convívio da sua cidade. O logradouro cada vez mais vai ganhando um aspecto urbano, apesar de parte da população que habita ainda ser rural. Os retirantes passam a viver numa cidade que apesar de participar do seu processo de produção, a enxerga como algo que lhe é “exterior e estranho”, não usufruindo dos seus benefícios. Sendo eles deslocados para os subúrbios, favelas, distante das elites e do convívio social. Esses trabalhadores construíram um espaço urbano “moderno”, e não puderam ser beneficiados com seu uso, abrindo possibilidades para que as classes abastadas e setores capitalistas legitimem-se como sujeitos do processo, criando discursos como: “a modernização de Fortaleza foi realizada pela elite”; “o governo do Raimundo Girão urbanizou Fortaleza”, dentre outros.

Jornal a Razão em visita ao Morro do Moinho em 1936, local para onde foram deslocados alguns retirantes da seca de 32.

Uma parte da historiografia do Ceará legitima Adolfo Herbster, Silva Paulet, Nestor Figueiredo, sujeitos criadores da cidade, como se um processo complexo como a construção de uma cidade se resumisse a um conjunto de ideias e/ou projetos frutos da intelectualidade de uma plêiade.

A propaganda sobre as melhorias da cidade que, segundo os grupos dominantes estava se tornando moderna, continua. Agora é em relação ao Horto Municipal da cidade:

Continua tendo o maior desenvolvimento o Horto municipal, como a prefeitura pôde construir e refazer os seus jardins, arborizar ruas e logradouros e fornecer a quase todas as municipalidades do interior do estado. Infelizmente a sua atual situação é de todo inconveniente. Era pensamento do governo municipal localizá-lo nos terrenos adquiridos pela prefeitura a empresa Matadouro [...] aponto, o que para a prefeitura, seriam as vantagens [...] Além da excepcional localização e da fertilidade da baixada, a instalação do Horto, ali, terá a vantagem de contar com o adubo e o barro provindos do Matadouro, sendo quase nulas as despesas de transportes.
(Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 296.)

A prefeitura se demonstrou tão interessada em transportar o Horto para as proximidades do Matadouro, que na época ficava localizado próximo à lagoa do Tauape, que é plausível questionar os interesses em questão. As vantagens apontadas pelo governo sobre o terreno são tão explícitas e “convidativas” que se poderia pensar que se tratava de valorizar o terreno próximo ao Horto.
No entanto, o que é mais importante notar, é que as obras em Fortaleza não paravam de serem executadas. “No espaço de tempo compreendido entre janeiro de 1933 e esta data, foram abertos treze(13) kilômetros de novas ruas, tendo sido levantados 2.180 metros de cerca de arame”. (Relatório do Interventor Carneiro de Mendonça p. 295.)

Veremos algumas dessas obras através das fotos do Relatório do Interventor federal Roberto Carneiro de Mendonça.

No Relatório do Interventor, boa parte das fotos são mostradas fazendo uma comparação entre o antes e o depois das melhorias. Com isso, fazia sempre uma propaganda positiva do Interventor e do Prefeito Tibúrcio Cavalcante ou Raimundo Girão, dependendo do período.
Era comum também no relatório fazer comparações, de maneira discreta, com a administração anterior, criando uma imagem negativa da cidade, antes das “melhorias urbanas”. No caso, a cidade era termômetro para se avaliar se a administração foi boa ou ruim. A cidade era compreendida apenas no seu aspecto físico, infraestrutural, tornando-se, portanto, a vitrine de propaganda do governo, que a utilizava sempre com o adjetivo de moderna.


Ponte do Jacarecanga depois de sua nova reconstrução.

O governo utiliza a reconstrução da ponte como mais uma das melhorias que deixou Fortaleza uma cidade moderna.  Percebemos melhor a propaganda do governo nessa citação:

A prefeitura teve necessidade de reconstruir a ponte de Jacareganga, a Avenida 5 de julho, que por força das chuvas torrenciais deste ano, quase veio a ruir completamente. Os trabalhos da reconstrução pode-se dizer consistiram em uma nova construção, porquanto, para corrigir os defeitos da obra anterior e os danos causados pela invernada, tiveram de ser levantados novos muros de arrimo, feito todo o piso, construídas novas balaustradas e outros passeios laterais. A ponte apresenta agora um aspecto moderno, amplo e agradável. (Página 288-289)


Pista de patinação construído no Passeio Público na administração Major Facundo.


Esta foto demonstra a suntuosidade do governo e da elite¹, que em meio a vários conflitos na cidade: seca, explosão demográfica, campos de concentração, saques dos retirantes, movimento em prol da constituinte, não se esqueciam de seus momentos de luxo e lazer. Esse também é mais um indício do aumento de verbas que chegava à cidade, devido à seca. A cidade era remodelada num ritmo acelerado, ou melhor, o centro da cidade e alguns bairros da classe abastada.

Em relação ao centro da cidade, se observarmos as fotos das suas principais ruas como a Major Facundo, a Barão do Rio Branco dentre outras, verificaremos a presença de automóveis, os edifícios começando a se verticalizar, sua pavimentação a concreto, todos os indícios de um centro comercial que se tornava efervescente e moderno.


Essas fotos nos dão um panorama de como era o centro da cidade de Fortaleza, ou melhor, algumas possibilidades da reconstrução do centro, partindo da perspectiva que essas fotos foram selecionadas para propagandear o governo.
Podemos questionar como eram feitas essas melhorias, visto que as fotos mostravam as melhorias já em estado de conclusão. No entanto, são poucas as fotos no Relatório do Interventor que mostram as obras em andamento e, por conseguinte, os trabalhadores em atividade, pois não era intenção do governo mostrar a que custo era feitas essas melhorias, sendo muito mais interessante para efeito de propaganda exibir os resultados.


Esta foto é uma das poucas que mostram os trabalhadores no processo de construção das melhorias. Ela se refere ao serviço da nova pavimentação da Rua São Paulo. Não podemos afirmar pela foto que aqueles trabalhadores sejam retirantes. Porém ela é bastante significativa, pois revela quem são os sujeitos que constroem materialmente a cidade. Percebemos na foto a presença de trabalhadores em atividade, e a quantidade de trabalhadores que era necessário na época para se pavimentar uma rua. Como todas as ruas do centro foram pavimentadas, remodeladas, junto com a construção de praças, pontes, e outras obras, temos uma noção da quantidade enorme de trabalhadores necessários para realizar esses serviços, visto que as obras foram feitas em período concomitante.

Em 1932, os campos de concentração e várias frentes de serviço procuravam prender o flagelado no sertão. Entretanto, muitos retirantes conseguiram chegar à capital, onde eram recolhidos e alocados em obras como a construção de calçamentos e prédios. Além disso, os retirantes também trabalharam em construção de estradas de ferro, na oficina do Urubu, que foi mantida durante todo ano de 1933.
É importante salientar o caráter contraditório da urbanização de Fortaleza, que privilegiou o centro e os bairros nobres, e acelerou o crescimento das periferias e favelas.

¹“A patinação era um desporto em voga, com o qual a Jeunesse Dorée aproveitava os passeios cimentados das novas praças para exibir-se”. Daí em se pensar em projeto de modernidade e não apenas de modernização. A elite cearense se espelhava nos costumes europeus, e queriam uma cidade não apenas com novos equipamentos modernos, mais com uma população “culturalmente moderna”. (Castro, 1988, p 216)


Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará/ CASTRO, José L. de. Arquitetura Eclética do Ceará. São Paulo, Nobel, editora da universidade de São Paulo, 1988: in Ecletismo na Arquitetura Brasileira. Org: ANNATERESA, Fabris.- São Paulo: Nobel; editora da universidade de São Paulo, 1988./ http://memoria.bn.br/

sábado, 14 de outubro de 2017

As melhorias urbanas durante a seca de 1932


A partir da década de 30, Fortaleza acusa um crescimento demográfico elevado que se reflete no aumento de sua área urbana. Contudo a expansão da cidade a partir do aumento da população não gerou a ampliação relativa a infra-estrutura urbana, tais como calçamento, energia elétrica, água encanada, rede de esgotos, transportes coletivos, etc. (SILVA, 1992, p 29).

A Fortaleza dos anos 30 numa raríssima imagem de um pequeno postal. 
Vemos um bonde elétrico na Praça do Ferreira, onde os homens usavam terno de linho branco irlandês com chapéus, por causa do forte sol. A igreja Cristo Rei ao fundo, cajueiros e casarões contemplam o raro cenário. O Palacete Ceará, prédio inaugurado no início do séc. XX é destaque na foto. 
Parece que a foto foi tirada de cima do Excelsior Hotel (inaugurado em dez/1931). Pode ser também de um fotógrafo lambe-lambe, assim chamado que no início do século XX se pendurava em locais de difícil acesso p/ registrar os acontecimentos da cidade.

A seca de 1932 contribuiu para que a cidade de Fortaleza se tornasse mais habitada, porém, as pessoas que passaram a morar na cidade (retirantes) eram enxergadas pelas classes abastadas de maneira paradoxal. Pois se por um lado representava vandalismo, rebeldia, costumes inapropriados, quebra da ordem vigente, por outro significava a mão de obra barata para implantação do projeto de modernidade e consolidação do capitalismo desejado por essa classe dominante. Portanto, a cidade vai ser construída, ou melhor, reconstruída na seca de 1932 a partir dos conflitos sociais entre os setores capitalistas, o governo, e os retirantes, que representavam lucro e marginalização.
Nessa época se intensifica o processo de favelização de Fortaleza, causada em parte pela explosão demográfica que a seca de 1932 proporcionou. Boa parte da população de retirantes que vieram para a capital foi morar em bairros afastados da elite. O governo aproveita a quantidade de população (retirantes) e os recursos atraídos do governo federal devido à seca, e passa a investir nas chamadas “melhorias urbanas”.

Na década de 30, mesmo com o agravante da seca de 1932, Fortaleza insere-se num contexto nacional de urbanização. O governo começa a investir em “melhorias urbanas” na cidade, com o objetivo de torná-la mais moderna, na esteira do contexto nacional de urbanização. A mão de obra flagelada serve de recurso para a construção da “nova cidade”, que data sua gênese no final do século XIX, mas que é intensificada nesse momento.
As ruas do centro começaram a ser remodeladas para atender o novo padrão de urbanização que preza pela melhor circulação de pessoas, mas, principalmente, de mercadorias. Era necessário ampliar a circulação de mercadoria, para gerar uma maior acumulação de capital, especialmente após a crise de 1929.

Tendo sempre na máxima consideração as facilidades do tráfego, a atual administração realizou um serviço de incalculáveis resultados, o qual consistiu em fazer a ligação da Avenida Visconde do Rio Branco com a Rua Sena Madureira, a fim de estabelecer comunicação franca entre a zona da praia e, portanto, a zona portuária, e o bairro Joaquim Távora e, consequentemente o distrito de Mecejana e o interior do estado. 
(Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará. p. 290)

A rua Sena Madureira nos anos 30.

Era importante para o governo melhorar a circulação na cidade. Os bairros que faziam parte do perímetro central deveriam estar ligados com a praia, ou melhor, com a zona portuária. Pois o objetivo principal não era melhorar “o tráfego de pedestres” como podemos observar nesse trecho extraído do relatório, e sim facilitar o acesso ao porto da cidade, que, no desenvolvimento atual de sua economia, recebia maior importância. Essa reforma foi chamada no relatório do Interventor Federal, de “ligação importante”, mostrando a sua relevância visto que, para ela ser efetuada, foi necessário reconstruir.


A pavimentação do trecho compreendido entre as ruas Pedro I e Travessa do Pocinho, até então totalmente imprestável, e afastou o alinhamento dos muros do Parque da Independência e da chácara pertence ao Sr. Alfredo Barbosa Leite, a quem foi indenizado o prejuízo correspondente. [...] mesmo depois de ter mostrado o esforço para que o ligamento fosse feito. O governo ressalta [...] este melhoramento era sobremodo facilitado o escoamento do trafego por aquela importante via publica. 
(Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará. p. 291)

Beco dos Pocinhos em 1927. Crédito: Prefeitura Municipal de Fortaleza. Agradecimento-Ivan Gondim

Beco dos Pocinhos visto da Rua Pedro Borges na direção do nascente, vendo-se ao fundo a Igreja do Pequeno Grande.

Reformas como essas se tornaram frequentes a partir da seca de 1932, graças a um aumento das verbas que chegaram à capital devido à seca e também a um setor do capitalismo ligado ao comercio e à indústria civil, que precisava se desenvolver. Sem falar na população “flagelada” que poderia ser um recurso barato, e que foi aproveitado pelo governo, na medida em que resolveria dois problemas de uma só vez, diminuição dos gastos com mão de obra e controle social dos retirantes. Isso se reverbera no discurso afiado do Estado, no que tange a necessidade dessas melhorias para a população. Podemos notar na sua justificativa sobre o prolongamento da Rua Liberato Barroso:

Em obediência a um plano anteriormente traçado, de fazer prolongar a Rua Liberato Barroso até a praça dos voluntários, em cujas proximidades, é projeto construir-se o Paço Municipal, foram indenizados e demolidos os prédios e terrenos necessário a esse prolongamento, no trecho compreendido entre as ruas Floriano Peixoto e Major Facundo. E este é um melhoramento de avultados efeitos para o futuro da cidade e muito facilitará como já está facilitando, o desenvolvimento do trafego urbano. Torna-se indispensável que a administração municipal complete a abertura da rua projetada, no trecho compreendido entre as ruas Floriano Peixoto e General Bezerril, a fim de que a medida atinja a sua finalidade.
(Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará. p. 289)

Fotos do Relatório Carneiro de Mendonça

O relatório mostra o empenho para convencer que esse prolongamento era de total necessidade, que facilitaria o tráfego, ou seja, o desenvolvimento futuro da cidade, deixando implícito que a cidade e a administração (do prefeito Tibúrcio Cavalcante e Interventor) iriam ter perdas enormes se a obra não fosse construída. Ressaltando como sendo de fundamental importância concluir essa melhoria que para a abertura do trecho ora entregue ao publico, foi necessário desapropriar cinco prédios, no valor total de R.S. 385.000. Os discursos eram criados com a intenção de justificar a construção dessas melhorias. Falava-se do aumento de verbas destinados a essas obras, utilizavam a retórica da antinomia cidade moderna em detrimento da “velha” cidade, para que os setores capitalistas e o governo¹ efetuassem seu projeto urbano de desenvolvimento capitalista, excluindo as camadas pobres da participação dos benefícios. Fortaleza estava se remodelando numa velocidade exacerbada. Várias obras foram construídas com a intencionalidade de deixar a cidade mais moderna. Foi construído nessa época o primeiro mictório público sendo instalado no canto do jardim da Praça General Tibúrcio. “O material sanitário é de primeira qualidade, foi adquirido na Inglaterra e já se encontra no almoxarifado da prefeitura” (Relatório do Interventor Federal).
Verificamos, então, qual era a prioridade do governo. A cidade lotada de retirantes famintos, sem moradia, em busca de melhores condições de vida, e a prefeitura utilizando a verba, oriunda em boa parte devido à calamidade, para construir banheiros públicos.
No primeiro ano do governo de Getúlio Vargas, a seca já fazia parte da agenda de discussão. Resultando, em 1932 e 1933, de auxilio de verbas do governo federal ao combate à seca, normalmente repassados via IFOCS e Ministério de Viação e Obras Públicas. No ano de 1934, ficou estabelecido na Constituição que a União teria que traçar um plano orçamentário relativo às secas. A estiagem passou a ser incorporada como pauta obrigatória do Estado. Os problemas provocados pelas secas deveriam ser contornados pelo viés racional de controle da União. As imigrações passaram a ser analisadas numa dimensão global. A mudança na política do governo em relação à estiagem mostrou, em parte, a relevância da seca de 1932 no cenário nacional.

Mictório público da década de 30. Esse ficava localizado na Travessa Pará. Acervo MIS

Como se tratava de uma das maiores secas já ocorridas no estado do Ceará, os governos estaduais e federais, agiriam junto com as classes abastadas para tentar atenuar os conflitos que ela poderia gerar. Portanto, era necessário enviar mais verbas para que o controle da população fosse efetivado sem conflitos. Isso significava construir obras e colocar os retirantes para ocupar seu tempo, no caso, trabalhar pesado.
Foi construída mais uma praça, conhecida como Fausto Barreto.

Serviço de terrapleno na Praça Fausto Barreto (Praça da Alfândega). Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça - 1931 a 1934


Na planta da cidade, levantada ultimamente, ficou projetado uma praça, que tomou o nome de Fausto Barreto e esta localizada a praia de Iracema, no ponto terminal da Avenida Pessoa Anta, recém-aberta e pavimentada. O terreno destinado à referida praça foi adquirido em condições vantajosas para municipalidade. Foi feito o serviço de aterramento dos charcos ali existente, e aproveitado o coqueiral como arborização do logradouro, que tem atualmente aspecto pitoresco e sadio.

Avenida Pessoa Anta (rua da Praia) na década de 30. Arquivo Nirez


Essa era uma das formas que o governo encontrava para utilizar os retirantes, estabelecendo um controle sobre seu tempo “livre”, visto que era necessária muita mão de obra para fazer os serviços de aterramento dos charcos, construção de praças e ruas, e não carecia de muita especialização para esses tipos de serviços, sendo, por conseguinte muito viável para o Estado a alocação dos “flagelados” nessas obras, e que não foram poucas.

É importante salientar que os discursos acerca dessas obras sempre vêm acompanhados de adjetivos como: vantajosas, bonitas, de imensa serventia pública, fundamental para melhorar o tráfego entre outros. Em nenhum momento é ressaltada a importância dos trabalhadores na construção dessas “melhorias”. É como se elas fossem feitas pelas ideias da elite e do governo e não pelo trabalho dos operários que carregavam as pedras, erguiam as praças, modificavam as ruas etc. Havia uma inversão de valores em relação a essas melhorias. Elas eram utilizadas dentre outros objetivos, para fazer propaganda do governo. E as reformas continuavam sem parar.


Continua...

¹As reformas referentes a seca de 1932 se iniciam no governo do prefeito Tibúrcio Cavalcante, mas ganham um impulso maior na administração de Raimundo Girão, no ano de 1933.

Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: SILVA, José B. d. Os incomodados não se retiram: Fortaleza: Multigraf, 1992/ Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. Arquivo Público do estado do Ceará. / http://memoria.bn.br/

sábado, 7 de outubro de 2017

A seca, o conflito político e a favelização da capital


Os Campos de Concentração fizeram da seca de 1932 um cenário de intensos conflitos, mas outros acontecimentos também influenciaram...

O mundo, na década de trinta estava passando pela maior crise que o sistema capitalista já tinha experimentado, afetando a economia de quase todos os países. No Brasil, o cenário estava sinistro, as oligarquias se viram de uma noite para outra em total desespero: a estrutura do regime abalou-se completamente, a Depressão acabou com a oligárquicaPrimeira República de 1889 – 1930 e levou ao poder Getúlio Vargas, mais bem descrito como “populista nacionalista”.
Neste contexto, ocorreram algumas mudanças políticas no país. Os estados perderam autonomia, e houve uma forte centralização política.

Crédito: TV Verdes Mares

As oligarquias caíram, mas como a “revolução” teria que seguir a cartilha da democracia liberal de reforma do estado burguês, não houve uma mudança na distribuição da riqueza da sociedade. Apesar de não ter ocorrido uma mudança radical em termos de classes sociais, houve uma transmutação política. Passou-se de um “liberalismo oligárquico” para um “centralismo interventorial”. Getúlio Vargas criou as interventorias estaduais, responsáveis para tomarem medidas administrativas, políticas, econômicas e jurídicas sem precisarem consultar as elites locais, embora na prática não fosse bem assim, pois as lideranças locais ainda exerciam influência nos interventores, é claro que de uma forma mais atenuada em relação às oligarquias estaduais.

Carneiro de Mendonça é escolhido para ser o novo interventor do Ceará. Conhecido por ser muito hábil e político, Mendonça faz alianças com as oligarquias decaídas, contrariando, à primeira vista, a orientação dos revolucionários. Todavia, com a aliança, Mendonça conseguia fazer uma gestão mais calma e sem oposição. Apesar de o regime político ter mudado, era necessário agir com cautela, pois muitas oligarquias mesmo não estando no governo poderiam prejudicar o novo interventor, fazendo uma forte oposição ao ponto de perder o cargo.
As relações entre os interventores federais e as oligarquias estaduais eram bastante complexas, tênues, podendo ser rompidas a qualquer momento, o que justificava este malabarismo político. Sem falar que outro episódio norteava Fortaleza em 1932, a revolução constitucionalista, que deixou a situação da seca ainda mais complexa e dividiu a atenção do governo que ora tinha que dirigir as atenções para o sul, preocupado com o movimento das oligarquias “decaídas”, ora tinha que concentrar as energias no combate à seca e manutenção da ordem social. Os discursos ficaram mais eufemizados por parte da elite e do governo, em virtude do momento de tensão que estava ocorrendo em São Paulo. Podemos observar melhor essas mudanças numa matéria do jornal O Povo, que tinha como título “O Momento Político”, que é uma pequena entrevista com o Interventor Carneiro de Mendonça sobre esse período:

O Povo de 11-04-1932

Carneiro de Mendonça fez claramente um discurso de conciliação. Ele demonstra que as coisas serão resolvidas sem radicalismos por parte de ambos os lados, “sem quebra de dignidade”, como sendo possível expurgar as diferenças através da negociação e do diálogo fraternal. Porém, verificamos como ele responde com extrema cautela a pergunta sobre a constituinte, devido ao momento conturbado que se passava no Brasil, podendo afetar diretamente os seus interesses, ou seja, a perda do cargo.

A seca e a situação dos retirantes passaram então a ser segundo plano para o governo e para imprensa, que passou a dar maior ênfase aos acontecimentos do sul até o mês de outubro, quando o movimento em prol da constituinte foi diluído. A imprensa oficial tentava justificar o seu interesse no sul, através da defesa do Golpe de 1930, estabelecendo uma dicotomia norte-sul, como se o “Golpe de 1930” fosse benéfico para o norte e a sua ruptura só favorecesse ao sul.

Retirantes migram para a capital fugindo da seca. Crédito TV Verdes Mares 
Do sertão cearense, assolado por mais um longo período de estiagem, partiam uma multidão de retirantes, verdadeiros refugiados da seca. Vinham do interior do estado em direção ao litoral, atraídas pela possibilidade de trabalho nas obras publicas urbanas.

A “Revolução” garantiria para o Norte uma posição favorável no jogo de forças políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superficialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, considerado pelas elites locais como principal fator de sua decadência. O jornal O Povo, portanto, imediatamente aprova a criação do “segundo Batalhão provisório destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da Ditadura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredidas pelos reacionários paulistas”. A “inoportuna rebelião paulista”, segundo o jornal, “traz, em seu bojo, uma sede de domínio que, se tivesse de ser saciada, acarretaria a desgraça do “Norte”, já que a “hegemonia paulista sempre foi funesta aos nossos interesses regionais”. A “Revolução de 30”, ao contrário, veio “criar para o Norte condições próprias até então desconhecidas.” (NEVES, 2000, p. 136 e 137).

Na capital, eram enviados aos Campos de Concentração.  Crédito TV Verdes Mares 
Tentando evitar a instalação destas famílias nos centros urbanos, o governo decide, como medida de contenção deste fluxo migratório, a instalação de estruturas em locais estratégicos as quais dava o nome de campos de concentração. Este era o termo oficial usado pelo governo, inclusive para tratar do assunto nos jornais da época.

A negligência da imprensa em relação à seca até o mês de outubro foi justificada pelo interesse em manter a continuidade do governo provisório que, segundo acreditavam, favorecia os “interesses” regionais, legitimada como sendo necessária para garantir a autonomia do “Norte”. Enquanto isso, os campos de concentração¹ foram esquecidos na imprensa, apesar das verbas do Ministério da Viação continuar chegando ao estado do Ceará. Porém, mesmo num contexto tão repleto de conflitos políticos, o Estado conseguiu agir de maneira centralizada e organizada.
É possível verificar essa organização e centralização com a implantação das interventorias, que refletiu diretamente na maneira de se combater a seca no estado do Ceará. Os retirantes não estavam mais tão esperançosos de receber viveres, ou qualquer outra ajuda da iniciativa privada. Agora isso ficava a cargo do Estado que controlava a economia.


“Por decreto nº. 796, de 17 de outubro de 1932, foi criada, em substituição ao comissário de alimentação, a comissão de abastecimento público, que ficou incubada da fiscalização de todo o território do Estado”.
Com a criação da comissão de abastecimento público, todo comerciante ficou impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o intuito de provocar elevação de preços. Aqueles que tentassem infringir, - não foram poucos, os infratores – seria condenado a multar de 500 $ 000 a 1: 000 $ 000, e ao dobro, nas reincidências.” (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P. 65.)

O governo estava agindo de forma mais centralizada, controlando até mesmo as oscilações nos preços dos alimentos. O governo efetivou o combate à seca através da articulação dos seus órgãos, que no caso são: IFOCS (Inspetoria de Obras Contra a Seca), Interventoria Federal que tem a frente o Interventor Roberto Carneiro de Mendonça e Ministério de Viação e obras públicas dirigido pelo ministro José Américo de Almeida. Essa articulação se concretiza através do departamento de secas. Podemos perceber essa relação através de uma matéria do jornal O Povo cujo título era “Plano de socorro às vítimas da seca”. A matéria dizia o seguinte:

O Povo de 21-01-1932

Nitidamente havia uma maior articulação, e também uma maior preocupação em relação à seca de 1932. Esta situação de tensão foi aproveitada pelas classes abastadas, que frequentemente “clamavam” pela urgência de obras públicas, conseguindo atrair cada vez mais recursos do governo federal para implantação do seu projeto de modernidade.

Para o governo as migrações volumosas de pessoas “esfomeadas” era um perigo constante para a capital, ao passo que eles poderiam trazer doenças contagiosas, além de outras “inconveniências” que uma miríade de retirantes mobilizados poderia causar à cidade e ao governo. Foi estabelecido nesse momento um serviço de assistência ao flagelado, que tinha uma preocupação notória com o controle da população e a prevenção de doenças. Sendo interessante transcrever uma parte do relatório do Interventor federal, que mostra como funcionava, segundo ele:

Desde aquele ano, início do grande êxodo das populações sertanejas em face da tragédia climática já declarada, pesando a responsabilidade que nos cabia em função do perigo que representava brusca dessa massa humana inteiramente desprovida de conhecimentos que pudessem interessar à sua defesa sanitária, foram tomadas as primeiras medidas de amparo e salvaguarda. Medindo bem a gravidade e a extensão do problema e não fugindo a ele, deu-se começo a um serviço de assistência e prevenção, que obteve, conseguindo-se com esforço sobre-humano defender o Estado da projeção de epidemias muito mais devastadoras do que as que se apresentavam. De saída a luta restringiu-se aos próprios recursos do Estado e aos pequenos auxílios do governo central, seguida mais adiante pela população da cruz vermelha, vindo tempo após o Ministro da Viação em socorro, por intermédio de um contrato com esta interventoria, elaborando-se assim o projeto definido de organização dos serviços de assistência médicas aos flagelados do Ceará, anexada a D.S.P em virtude de suas cláusulas. Por este acordo os serviços abrangeriam os operários da I.F.O.C.S e os campos de concentração, compreendendo 18 postos, 5 residências sanitárias e 4 hospitais, construídos também de seções matrizes de Direção, contabilidade, farmácia, almoxarifado e expedição, incluída ainda a mantença de 80 leitos destinados às crianças retirantes. Tinham os postos como objetivo os cuidados de prevenção contra doenças contagiosas assistência médica cirúrgica a enfermos e acidentados, a fiscalização dos gêneros alimentícios, o controle de estatística vital e a propaganda e educação sanitárias”. (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P.124 - Pintura: Retirantes de Portinari)


Outro elemento importante é como o governo enxergava o costume dos retirantes, que “eram inteiramente desprovido de conhecimentos que pudessem interessar a sua defesa sanitária”. Podemos notar a comparação em tom de escárnio em relação à higiene dos retirantes. Trata-se de uma contradição aos padrões de assepsia moderna, que a elite fortalezense almejava, sendo, portanto, o papel da Interventoria educar aquela população aos padrões “normais” de higiene.

Prédio da Inspetoria de Obras contra as Secas. Acervo Nilson Cruz

Apesar das migrações não serem uma especificidade da seca de 1932, a peculiaridade desta seca é sua relação com o aprofundamento do processo de favelização da capital, e com o protejo de modernização do governo. Entre 1930-1955 surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Zé Padre² no Otávio Bonfim (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933)³, Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papouquinho* no Dias Macedo (1950), Estrada de Ferro (1954).

*A favela do Papouquinho foi a primeira favela a surgir no Bairro Dias Macedo, tendo origem num processo de invasão de terreno por famílias provindas, em sua maioria, do interior do Ceará.


Cercado do Zé Padre/Mucuripe/Lagamar


A seca acelera um processo de aprofundamento das contradições do espaço urbano de Fortaleza, na medida em que os retirantes, quando chegam à capital, precisam de moradias. Neste ponto entra o projeto do governo, a especulação mobiliária, o poder das classes abastadas, no sentido de afastar os flagelados da zona central e tangenciá-los para as favelas. Pois não era do interesse da elite que essa população ocupasse as áreas nobres da cidade, ou melhor, as áreas mais modernas e urbanizadas. Os retirantes poderiam servir para essa elite como exploração de mão de obra barata no desenvolvimento da urbanização da cidade, mas jamais poderiam servir como “vizinhos”.

Planta da cidade de Fortaleza de 1932, indicando a localização dos Campos de Concentração do Matadouro e Urubu (Apud RIOS: 1998, 74).

¹Segundo a professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) (autora de Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932), os campos de concentração de 1932 ficavam estrategicamente localizados próximos às estações de trem. Assim os retirantes desciam das conduções e eram imediatamente conduzidos aos campos. Os campos se localizavam nas cidades de Buriti (distrito do Crato), Patu (Senador Pompeu), Cariús (São Mateus), Ipu, Quixeramobim, e em Fortaleza nos bairros do Pirambu (chamado Campo do Urubu) e Otávio Bonfim. Estes locais contavam com uma estrutura básica (se é que pode se falar de estrutura neste caso), com posto médico, para onde eram levados os enfermos, cozinha, barbearia, banheiros (insuficientes), capela e casebres ou galpões, divididos em pavilhões para homens solteiros, viúvas e famílias, tudo em estado de precariedade.

² O Cercado do Zé Padre era um imenso areal ao norte do Jardim Japonês, ao sul da Praça São Sebastião, após um açude onde as lavadeiras das redondezas lavavam suas roupas. (Diário do Nordeste)

³ É necessário fazer uma observação sobre a favela do Lagamar. A citação do (Silva, 1992) foi extraída do documento organizado pelo Governo do Estado, intitulado Migrações para Fortaleza em 1967. O problema é que, no referido documento, a favela do Lagamar é datada de 1953, e não 1933 como mostra Silva. O debate do inicio da favela não é uma questão menor. Diferentemente do Mucuripe, Pirambu, Arraial Moura Brasil, que em 1933 já eram favelas com razoável número de moradores, o Lagamar começa a constituir as primeiras habitações após a seca, como demonstra o depoimento da Maria Lagamar. “A favela do Lagamar surge em 1933, momento em que estava sendo construída a BR-116 no antigo Caminho de Messejana, acesso para quem vinha do sul, centro e sudeste do Estado. O terreno era irregular e alagado e foi sendo ocupado por retirantes da seca. "Aqui era só lama, mato e espin... Eu cavei um buraco, formou um olho d´água que era um amor... Aí é que foi chegando gente", diz dona Maria Custódio da Silva, a Maria Lagamar, uma das primeiras moradoras do local, em depoimento ao pesquisador Luiz Távora. Segundo a moradora, o próprio nome do bairro advém dela. A questão é que se os primeiros habitantes do Lagamar começam a chegar no local em 1933, não podemos dizer que ali já se encontrava uma favela. Isso demonstra que a seca de 1932 contribui para a gênese desse processo, e não secas anteriores como Mucuripe e Pirambu.

Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de castro. A multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará./ Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Imagens da Cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002./ Biblioo Cultura Informacional