Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : A seca e a modernidade da capital
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quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A seca e a modernidade da capital



Já no começo de janeiro de 1932, o jornal O Povo noticiava a situação da seca no Ceará, uma das maiores que já ocorreram na história do Estado. A falta de chuvas, morte de gado, migrações massivas e a fome disseminada, foram fatores bastante presentes nesta seca, e que estimulam os sertanejos a saírem de suas cidades em busca de melhores condições para a garantia de sua sobrevivência.

Em 1932, matérias como essa do jornal O Povo não são raras, uma vez que a seca seria o estopim para uma série de conflitos sociais que iam permear a cidade de Fortaleza e o interior do Ceará. Nesta reportagem, lemos que os retirantes saquearam um comboio carregado de gêneros alimentícios, antes de a seca ter sido declarada oficialmente. Isso é resultado do saber acumulado dos retirantes que passaram por experiências de secas anteriores como a de 1877, a de 1915 e a de 1919, chegando à conclusão que naquele momento não deveria mais esperar pela “caridade do governo”, nem pela assistência das relações de compadrio¹ que, em momentos de seca, se mostrava bastante tênue, portanto era necessário agir por conta própria mediante violência se preciso fosse.
Ao chegar o mês de abril, a situação do flagelo ficava cada vez mais recrudescente. Alguns municípios do interior, em especial da região centro-sul, já declaravam estado de calamidade, com parte significativa da população passando fome.


Essa notícia é referente ao município de Icó, mas no mesmo dia o jornal publicou uma matéria semelhante, em relação ao município de Senador Pompeu em que, segundo O Povo, a população da cidade pede a construção do açude patú. Esse discurso da construção de obras públicas como sendo a melhor alternativa para resolver, ou pelo menos atenuar o problema da seca, vinha sendo utilizado desde a época da construção da Estrada de Ferro de Baturité.

Além da açudagem e estradas de rodagem, foi utilizada de maneira mais sistemática nesta seca, outra forma de combate, ou melhor, outra maneira de apropriação da seca, que foi a construção de “melhorias urbanas”. Foram construídas várias “melhorias” na época da seca de 1932 como:

a pavimentação da Rua Major Facundo, a primeira a ser pavimentada a concreto; o prolongamento da Rua Liberato Barroso; a reconstrução da ponte do Jacarecanga; o serviço de arrasamento das dunas para o prolongamento da Avenida Pessoa Anta; a construção do primeiro mictório público; a remodelação da Praça do Ferreira; a construção do posto da cidade; a abertura de uma nova rua a praia de Iracema
Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça 22/09/31 à 05/09/34. 
Arquivo Público do estado do Ceará.

Anos 30

No entanto, essas obras não foram erigidas por acaso, haja vista que: Fortaleza já havia passado por uma série de transformações na sua tessitura urbana. Desde traçado xadrez, projetado pelo arquiteto Adolfo Hebster, dividindo o centro em quatro, boulevard, até a construção de novas ruas, introdução de equipamentos modernos, cinemas teatros, iluminação pública, sistemas de transporte, instituições de saber, como Academia Cearense de Letras e o Instituto Histórico do Ceará, enfim, um conjunto de “melhorias urbanas” visando aproximar Fortaleza da modernidade.

A praça na década de 30

Nesse sentido, a presença dos retirantes na capital mostra-se para a elite e o governo como paradoxal. Se por um lado, eles representavam um contraste ao padrão de modernidade influenciado pelos costumes europeus, e que tinha na França o seu arquétipo. Por outro, eles possibilitavam ao governo edificar o seu projeto de modernização do centro, utilizando a mão de obra barata dos retirantes, e ainda atraindo recursos do governo federal para o combate à seca. Portanto, as classes dirigentes enxergavam os retirantes como uma possibilidade contraditória de lucro e perturbação social.
Enquanto isso a situação do flagelo no Ceará não dava trégua:


A seca era abordada diariamente nos jornais com o intuito de angariar recursos oriundos do Governo Federal. Sempre salientando o perigo de a população ficar sem trabalho, ociosa e os projetos de açudagem e irrigação como sendo fundamental para empregar os retirantes e assim “salvá-los” da funesta ociosidade, que tanto fere os ideais de produção capitalista. A elite de Fortaleza, através dos periódicos, passa a comentar a partir dos seus valores, quais seriam os melhores projetos para  “socorrer” os retirantes, demonstrando sempre uma preocupação exorbitante do controle desses “flagelados” pelos serviços públicos, que, segunda a notícia, caso não se resolvesse o problema da fome, se tornava inevitável um ataque desse povo.


IMAGEM FORTE - Crianças e adultos, vítimas da seca, ao lado da linha férrea que levava para o Campo de concentração de Senador Pompeu.

À medida que as contradições da seca de 1932 ficam mais explícitas, a elite e o governo passam a se preocupar cada vez mais com o controle social, no caso o isolamento dos retirantes no interior do estado. São criados, portanto, sete Campos de Concentração, cinco no interior (Crato, Cariús, Quixeramobim, Ipu e Senador Pompeu) e dois na capital (Urubu e Otávio Bonfim), sendo que esses campos não eram criados aleatoriamente, havia a estratégia de erguê-los nos locais das estações de trem. Pois se os “flagelados” fossem embarcar para a capital, já eram detidos lá. Outra tática era construir os campos perto das obras públicas para evitar que os retirantes ficassem perambulando pelas ruas e, no caso da capital, evitando incomodar a relativa “paz urbana” dos moradores da cidade.
Segundo o jornal O Povo, a concentração de retirantes nesses campos era dividida da seguinte maneira: “6.507 em Ipu, 1.800 em Fortaleza, 4.542 em Quixeramobim, 16.221 em Senador Pompeu, 28.658 em Cariús e 16.200 no Crato, perfazendo um total de 73.918 flagelados”. (O POVO, 30/06/1932).

Depois dos meses iniciais e turbulentos (abril e maio), muitos flagelados não mais chegaram à capital porque ficaram presos nos campos do interior. É importante ressaltar que o sucesso da estratégia do governo de manter os retirantes no interior foi parcial. Pois se compararmos, por exemplo, a quantidade de ração distribuída em Fortaleza em junho de 1932, mês da notícia, ou seja, logo após os meses turbulentos de abril e maio veremos que a ração distribuída era de “46.794”. Já em outubro do mesmo ano, aumentou para “63.803”, chegando a “160. 508” em janeiro do ano seguinte.
Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. 
Arquivo Público do estado do Ceará. p. 320

Retirantes da seca no Passeio Público - Revista Fon Fon

Esse aumento substancial dos alimentos distribuídos mostra que também houve crescimento na população dos campos nesse período. Portanto, a tentativa de manter os retirantes no interior não foi atingida plenamente, porém foi de maneira satisfatória, visto que as populações nos campos de concentração no interior eram exponencialmente mais volumosas do que as da capital. Sem falar que os retirantes que chegaram à capital não representaram apenas “prejuízo social”, pois eles também foram aproveitados para desenvolver a remodelação do perímetro central de Fortaleza. Contribuindo, por conseguinte, com o processo de modernização de Raimundo Girão².

Os campos de concentração fizeram parte de uma estratégia racional e bem elaborada de excluir e isolar uma camada da população da capital. Mas não se tratou de uma estratégia nova, ela foi utilizada na seca de 1877 com o nome de abarracamentos, e pela primeira vez com o nome de campo de concentração na seca de 1915, na região do Alagadiço, chegando a comportar cerca de 8 a 9 mil almas.

Jornal O Povo de 20/06/1932 - Acervo O Povo

O projeto urbano de Fortaleza estava traçado pelo governo, onde os campos seriam construídos próximos aos bairros pobres da cidade. Desta maneira, as classes abastadas não teriam contato com esses flagelados, e após o término da estiagem, caso os retirantes não voltassem para sua cidade natal, já habitaria a periferia da cidade. As populações de flagelados eram vistas pelas elites da cidade, não apenas como pobres. Mas com costumes considerados prosaicos e “indesejáveis”. Pedir esmolas, andar esfarrapados perambulando pelas ruas da capital, fazer bebedeiras, cuspir nas ruas e calçadas, todo esse conjunto de costumes que “chocavam” a população mais rica de Fortaleza, contrária aos seus ideais de modernidade, sem falar o constante perigo de saques, pois os retirantes se organizam coletivamente e saqueavam em momentos de necessidade, ou, até mesmo, aproveitando o ensejo da seca, que dava legitimidade ao ato.
Essas relações sociais em constante perigo de ebulição causavam um medo enorme na elite fortalezense, que não queria ver abaladas as suas relações de dominação e exploração. Portanto, para a elite, seu principal medo era a organização desses flagelados, saqueando, invadindo a cidade, questionando a ordem vigente, era seu pior flagelo. Neste sentido ela se reveste de um discurso de modernidade e progresso para justificar o seu “apartheid” social, que no contexto da seca de 1932 se reverbera num alojamento socioespacial, onde o centro de Fortaleza passa a ser remodelado para atender aos interesses do governo, das elites e da circulação de capital.

Localização dos Campos de Concentração em Fortaleza


¹Compadrio é uma relação baseada no binômio proteção – submissão. Onde o padrinho geralmente o fazendeiro garante proteção ao afilhado, que geralmente é um filho do morador da fazenda. Isso faz com que a família do apadrinhado preste servidão e obediência ao fazendeiro, em troca de proteção. Esta relação é bastante presente ainda hoje no interior do Ceará.

²Raimundo Girão foi prefeito de Fortaleza no ano de 1933, período que ocorreu a maior quantidade de reformas urbanas na cidade.

Leia também:
A Seca, o Conflito Político e a Favelização da Capital

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza a partir da Seca de 1932'  de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de Castro. Getúlio e a Seca: Políticas emergenciais na Era Vargas. In: Revista Brasileira de História. – Orgão Oficial da Associação Nacional de História. São Paulo, ANPUH/Humanitas Publicações, Vol. 20, nº 40, 2000./ PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Fortaleza: FDR/ Multigraf, 1993./ RIOS, Kênia de Souza. Campos de Concentração Ceará: Isolamento e poder na seca de 1932. Fortaleza: museu do Ceará, 2001./ SOBRINHO, Tomás Pompeu. Histórias das Secas (século XX). Fortaleza: Batista Fontenele, 1982.

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