Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : novembro 2017
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes (Parte II)


Praça do Ferreira na década de 30.
No projeto de urbanização de Raimundo Girão, a retirada dos trilhos dos bondes da Light era imprescindível, principalmente em se tratando da Praça do Ferreira, cartão postal da cidade. A relação da companhia com a prefeitura, que já não era boa, ficou num patamar de tensão ainda maior:

Jornal A Rua de 16 de Dez. de 1933 
Após essas exigências e impasses, um funcionário da Light foi tomar satisfação com o Prefeito, explicando que não tinha condições de funcionar desta forma. Porém, a mediação encontrada por Raimundo Girão foi permitir que os bondes pernoitassem fora da estação. O chefe da municipalidade havia deixado claro que “a modernização” das ruas e das praças estavam no topo da hierarquia, e qualquer empresa deveria se adaptar a esse projeto.


Vista aérea da cidade na década de 30. Vemos a chaminé da Usina Light, a catedral metropolitana e o Gasômetro. Arquivo Nirez
Foto da Rua Major Facundo com vista da
Praça do Ferreira em 1937
O governo compreendia a importância de controlar os transportes, como parte de um complexo social maior que ia desde o esquadrinhamento das ruas em traçado xadrez, para evitar barricadas e facilitar o tráfego de mercadorias e transeuntes, até o isolamento e marginalização dos pobres em bairros afastados do perímetro central. Enquanto a Light, ou qualquer outra empresa, não aceitassem as regras do jogo, os prejuízos só tenderiam a se elevar até a falência. Pois o Estado brasileiro, com a ascensão de Getúlio Vargas no poder, não estava mais entregue “a mão invisível do mercado” (a experiência de 1929 foi muito educativa sobre os problemas que “tal liberdade” poderia causar), mas, trava-se na época de um Estado interventorial, e que tudo queria controlar.
Percebemos a dimensão desse controle numa matéria do Correio do Ceará, referente ao trânsito de animais pela cidade:


Vendedores em seus burricos - Parque da Liberdade
Todos sabem que não se pode contar com o abastecimento de água do Acarape que falta desde as primeiras horas do dia até a noite. É imprescindível que se recorram aos vendedores ambulantes e se estes não podem transitar com seus burricos como é que vai ser?[...] A situação é, pois, desesperadora para os que ficam sem o precioso líquido do abastecimento público e não podem comprar porque é proibido animais transitarem pelas ruas calçadas a paralelepípedo ou a concreto. 


Vendedores de água no início da Rua Marechal Deodoro,
esquina com a Domingos Olímpio. Arquivo Nirez
[...] Se se permite que animais puxando carroças com rodas de borracha penetrem nas ruas, porque impedir o trânsito deles só porque não estão atrelados a um veículo? A Avenida João Pessoa é calçada a concreto em toda a extensão do Benfica a Porangaba. Entretanto, por ali transitam, sem proibição nenhuma, animais de toda a espécie, sem que dali resulte qualquer dano ao calçamento. Reflita bem o Sr. Prefeito sobre os embaraços que essa medida ocasiona ao comércio e a população em geral e verá que convém revogá-la em bem do público e para maior simpatia da administração municipal. (CORREIO DO CEARÁ, 04/10/1934 p 01).

Praça do Ferreira na década de 30. Arquivo Nirez
A prefeitura proibiu os animais transitarem em algumas ruas do Centro da cidade que foram calçadas a paralelepípedo ou a concreto, alegando que poderia danificar o material do calçamento. Sendo que boa parte do abastecimento de água, venda de diversos produtos como frutas e outros gêneros de primeira necessidade, ainda eram realizado por ambulantes conduzindo as mercadorias nos animais. A contradição aumenta quando o periódico cita que da Avenida João Pessoa a Porangaba, os animais transitam sem nenhuma fiscalização, e mesmo assim não causaram dano algum no concreto. Na verdade, o que podemos inferir dessa medida da prefeitura, é que ela queria afastar os animais do perímetro central, escopo principal da modernização, lócus do comércio e anfiteatro do desenvolvimento, pois, como a Avenida João Pessoa ficava um pouco afastada do centro, sem falar da Porangaba (Atual Parangaba), que era ainda mais distante, não carecia de tanta fiscalização.


Praça Clóvis Beviláqua (Ainda sem a Faculdade de Direito) em 1931.
Arquivo Nirez
Dessa forma, animais transitando pelas artérias centrais causariam contrastes com a remodelação do centro, praças reformadas, introdução de novos cinemas, teatros, clubes recreativos, toda uma série de equipamentos modernos que estavam sendo instalados em Fortaleza na época. A modernização não foi apenas um projeto econômico e político, mas também estético e cultural. 


Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado do Cine Majestic, o Cine Polytheama. arquivo Nirez
O centro de Fortaleza foi remodelado como síntese de diversos processos convergentes e antagônicos. Só tem sentido em pensar nas reformas materiais das ruas, praças, avenidas, modernização do sistema de transporte, se comparado com a ausência dessas infraestruturas nos bairros mais afastados, nas favelas e nos subúrbios. O que houve no centro da capital foi uma dialética da modernização, uma relação tensa entre o todo e as partes, entre os anseios da população e o projeto de Raimundo Girão, entre a remodelação de algumas ruas e o total abandono de outras, entre uma Fortaleza que se queria moderna ao preço de expurgar costumes e valores rurais.

Veja AQUI a parte I

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

domingo, 19 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes


Fortaleza nos anos 30. Acervo de Carlos Augusto Rocha

Praça do Cristo Redentor com a rua Rufino de Alencar
ao fundo. Foto dos anos 20. 
O Sr. Governador da cidade deveria lançar as suas vistas para a Rua Rufino de Alencar, mais conhecida por Ladeira da Prainha. Por ali ainda não se passou o fio de pedra. Nem sequer o chefe da edilidade teve a boa vontade de mandar acertar o calçamento pontiagudo daquela via pública. Parece que o mesmo tem contrato com alguma fábrica de calçados. Os pisos dos passeios têm aspectos de uma escada. Uma verdadeira “montanha russa”....Cheia de altos e baixos. Os transeuntes vencem, de ida e volta aquele trajeto com maior sacrifício. Ora, a Rua Rufino fica situada no centro da cidade, ao lado do palácio Arquiepiscopal. Não se compreende, portanto, o abandono em que o tem deixado o Mairé da cidade. Além da falta de estética, logo no começo da Rua, no bifurcamento da Praça da Sé com a Rua São José, levanta-se um grande areal. Se o Sr. Prefeito tem olhos para ver a Praça do Ferreira, parece se descuidar do resto da nossa capital. (Jornal A Rua, 27/10/1933 p. 03).

Rua Major Facundo, 1930. Arquivo Nirez
Na década de 30 (se bem que hoje não é tão diferente assim....), esse “descuido”, ou negligência com os demais logradouros da cidade não era por acaso. A remodelação da capital, ao contrário do que pensavam alguns jornais citadinos, não se devia à falta de planejamento urbano, mas justamente o oposto. Existia um planejamento que beneficiava uma parte da cidade, tendo em vista principalmente o desenvolvimento do comércio e dos chamados bairros “aristocráticos”. A urbanização do Centro expressava interesses de dirigentes políticos, e de setores da classe capitalista. Não se tratava de um processo caótico e desordenado, mas de uma lógica que tinha como prioridade atender a demanda do Capital, seja ele ligado ao comércio, construção civil, transporte, importação e exportação. Não podemos entender o processo de urbanização de Fortaleza, se não considerarmos o papel que exerceu a necessidade de acumulação de capital, refletindo até na prioridade de reformar, equipar e sanear alguns bairros, em detrimento do abandono de outros.

Imposto sobre os meios fios. Jornal A Razão 11 de junho de 1929
A urbanização de Fortaleza foi resultado de um campo de disputas, de uma luta entre os diversos setores sociais. No caso do governo, estava claro que se tratava de um projeto, pois na época foi criado até um imposto sobre os meios fios, e quem não pagasse no prazo, acarretaria multa. Portanto, o governo crivava fontes de rendas voltadas, exclusivamente, para a construção de ruas. Mas as obras nem sempre correspondiam às expectativas, e às vezes eram motivos de chacotas na imprensa.

Rua Guilherme Rocha, final da década de 30.

Jornal A Razão de
25 de Fev de 1938
Por toda a parte observa-se uma falha no trabalho. Ora, é um bueiro, ora é um arremate mal feito, deixando, as vistas do público, o aspecto do desmantelo prefeitural. O paralelepípedo que estão sentando é tão áspero que tem a aparência do antigo calçamento. Corre até uma pilheria a respeito. Um paraense ironizando o trabalho, disse que aquilo não era paralelepípedo, mas cearenselepípedo. Ontem, ao passarmos pela Rua Dr. Pedro Borges, verificamos que o concreto, que se está fazendo, naquele trecho, nas mediações da Padaria Italiana, é trabalho de tapiação, pois que o concreto é sentado sobre uma camada de areia. Pelo menos, é o que se nota nas extremidades. De modo que a espessura da massa é diminuta, não correspondendo ao que ficou estipulado da firma empreiteira com nossa edilidade. (IDEM, 10/11/1933 p. 01).

À medida que a remodelação da cidade ocorria, as críticas na imprensa acompanhavam nas mesmas dimensões. Todavia, também existiam elogios sobre o aspecto estético da cidade, no sentido de uma urbe moderna, bela, nos parâmetros da “civilização europeia”. Os adjetivos sempre salientavam os equipamentos modernos, a arquitetura dos prédios, o desenvolvimento do comércio, a suntuosidade das sedes administrativas, os recursos de transporte e iluminação, todos apresentados como indispensável e essencial de um estereótipo de cidade moderna. Não obstante, mesmo os periódicos que teciam críticas “cauterizantes” à administração de Raimundo Girão, faziam reverência a Fortaleza como símbolo da modernidade.

Jornal A Razão de 10 de Nov de 1937
Jornal A Razão

É empolgante. Possui prédios colossais como o “Hospital de Santo Antônio dos Pobres”. O cinema como não há igual no sul do Estado; o prédio dos Correios e Telégraphos; o luxuoso Palacete Benevides; sedes da Associação Comercial e da União Artística; a igreja matriz; estação da R.V.C.; Usina C. I. D. A. O; Villa Margarida, Prefeitura, e outros. Duas lindas avenidas. Iluminação elétrica de primeira ordem. (O NORDESTE, 17/03/1934 p. 06).

Jornal A Razão de 10 de Março de 1938
Jornal A Razão
Trata-se de mais um dos paradoxos da modernidade. A elite que pertence ao local não deseja representá-lo como arcaico, prosaico, ou obsoleto. A modernidade adquire tanto um sentido denotativo, de expressão material das ruas e prédios da cidade, do novo suplantando o velho, como uma acepção conotativa, onde a população sintetiza valores “eurocêntricos”, desejando adquirir costumes e culturas de outro padrão societal. O moderno era almejado como um horizonte a ser seguido, ao qual toda a população citadina deveria se adaptar sem nenhuma denegação. Portanto, além de uma pavimentação nova e esteticamente bonita, a capital precisaria ter um sistema de transporte urbano novo e eficiente. A “mobilidade urbana”, para usarmos uma expressão hodierna, foi um dos problemas da modernização de Fortaleza, protagonizando lutas titânicas entre a prefeitura e a Light¹, empresa que exercia o monopólio do transporte na época. Uma dessas lutas ocorreu devido à reforma da Praça do Ferreira, e a prefeitura, no caso, criou um decreto para retirar os trilhos da Ligth, pois estaria atrapalhando a tal reforma e, segundo o prefeito, também estava causando congestionamento no local.

Rua Major Facundo no final da década de 30.

Jornal A Razão de 1931
Isto é o cúmulo. E falta de senso político. O chefe do executivo municipal deve convir que os trilhos da Light não podem ser removidos de um momento para o outro, e ao sabor de um desejo pessoal, da Praça do Ferreira para outro qualquer ponto da cidade. Quanto a rescisão do contrato, é pilheria que não vale a pena nem falar. Nós não temos alcance para capital de tão arrojada empresa. Salvo se desejamos voltar aos antigos bondes de burro.... (A RUA, 29/08/1933 p. 03).

O jornal A Rua, como o veículo que fazia oposição aberta ao prefeito sai em defesa da empresa, alegando arbitrariedade por parte de Raimundo Girão, que tinha ameaçado romper o contrato com a Light, caso ela não retirasse os trilhos da Praça do Ferreira. Porém, a problemática era muito mais complexa, tratava-se, além da questão da referida praça, uma discussão sobre o monopólio dos transportes urbanos. Era uma estrutura arcaica, para um capitalismo que “necessitava de concorrência”. Sem falar que a cidade estava se expandindo, a população aumentando, os subúrbios crescendo, e alargando a distância dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. O transporte não poderia ficar fora do projeto de modernização do Estado. Neste sentido, a intervenção do Estado no sistema de transporte se tornara inevitável. O que poderia variar seriam os aspectos dessa intervenção.

A última nota da prefeitura proibindo que viajem mais de 4 passageiros nos bondes da Light, não traz nenhum benefício a população. Ao contrário, acarreta prejuízos. As classes pobres não se utilizam dos ônibus, já pelo preço, que é mais caro, como também porque eles reclamam um traje mais descente. Resulta daí que o número de veículos, em determinadas horas do dia, é insuficiente para lotar os passageiros, e estes ficam naturalmente prejudicados com a nova invenção da prefeitura. Se tal providência é posta em prática com o objetivo de ferir a companhia inglesa, vá lá, nada temos a ver com isso. Acreditamos, porém, que não há de ser com esses processos que a municipalidade consiga que a Light retire os seus trilhos da Praça do Ferreira. (IDEM, 31/10/1933 p 01).

Existiam na época dois tipos de transporte que atendiam a maioria da população, os bondes e os auto-ônibus. Os bondes representavam o passado, o velho, com suas instalações antigas, serviço precário, com excessivas reclamações dos habitantes da urbe. Já os auto-ônibus, surgiram como o moderno, mais novo, mais flexível, visto que não necessitava de trilhos fixos para se locomover. Mais rapidez no transporte do trabalhador para o seu serviço, refletindo as necessidades de uma cidade que crescia e se desenvolvia.
A contenda com a Light figurava, além da questão do monopólio dos bondes, a necessidade de substituir um transporte obsoleto por um mais moderno. Por isso, acreditamos que Raimundo Girão restringiu os números de passageiros dos bondes, com o seu intuito de diminuir a quantidade de lucro da empresa, e incentivar a propagação do auto-ônibus, uma vez que a Ligth detinha o monopólio dos bondes, mas não dos auto-ônibus. Raimundo Girão também estava consciente da difícil fase que passava a empresa inglesa, pois a maioria dos países ainda estava, de maneira lenta, se recuperando da crise de 1929, e a Light não era “imune” a essa situação.

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul
Ônibus Ford - V8, ano 1936, carroceria de madeira,
fabricado em Fortaleza.
Pensará a municipalidade que Fortaleza é um ótimo campo de exploração para os serviços de transporte a cargo da empresa inglesa? Jornais de Londres anunciam, conforme estamos informados, exatamente o contrário. Dizem que as ações (debêntures) da Light, cujo valor nominal é de 100, estão sendo cotadas na bolsa da capital inglesa ao preço de 24,5. A notícia, a ter o fundamento que á mesma atribuímos, demonstra eloquentemente que a companhia estrangeira não está disposta a agravar uma situação já precária. Se a prefeitura quer tirar os trilhos da Praça do Ferreira sem ônus para empresa, deve fazê-lo. Sobrecarregando a companhia de maiores despesas é que não vai, salvo medidas vexatórias que de certo não hão de ser lá muito aconselháveis....(IBIDEM, 07/11/1933 p 01).

Fortaleza em 1930
Os auto-ônibus na Guilherme Rocha
Diante do texto do jornal, é quase certo que o prefeito sabia exatamente como andava a companhia, o que justificava ainda mais as suas medidas antilucrativas para com a empresa. Além do mais, o próprio jornal já modificou o seu discurso, edulcorando um pouco a linguagem, pois, “se a prefeitura que tirar os trilhos da Praça do Ferreira deve fazê-lo”, mas sem acarretar um “ônus” para empresa. Porém, era provavelmente esse ônus o alvo de Raimundo Girão. A Light passou muito tempo sem investir em equipamentos novos e renovação da frota, sem falar que “trilhos” não combinavam com o projeto urbanístico do governo. A relação de tensão da prefeitura com a companhia era bem mais complexa do que se supunham os periódicos da época, pois representavam dois projetos antagônicos, em várias dimensões: monopólio/concorrência; bondes/auto-ônibus; trilhos/pavimentação em concreto; e todas essas contradições tinham como pano de fundo o projeto de modernização do Estado. O que convergisse para o desenvolvimento do projeto seria mantido, ao mesmo tempo em que, os obstáculos seriam “extirpados” do meio do caminho da “modernidade”.

Capital cearense na década de 30. Arquivo Nirez
¹ “Concessionária do serviço de luz, força e viação elétrica no município de Fortaleza, a The Ceará Tramway, Light and Power C, Ltda, tem seu escritório na Rua Barão do Rio Branco nº 844. Tem como gerente o Cel. Francis Reginald Hull, e sub-gerente o Sr. João Batista de Paula. A extensão atual de sua linha é de 20 kms, tendo 38 bondes no tráfego, e 11 auto-ônibus. O número de passageiros transportados, nos bondes, no último ano 16.800.000, em ônibus 2. 160.000. Tem 7.200 consumidores de luz, e 480 de força”. Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 257


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30 - Parte II


Praça do Palácio (Atual General Tibúrcio) antes do aterro. Álbum Vistas do Ceará 1908

Foto ao lado: Rua São Paulo com a praça à direita.

Em consequência da torrencial chuva desta manhã, veio a desabar parte da muralha de arrimo do Aterro da Praça General Tibúrcio, canto da Rua São Paulo, local onde ultimamente a Prefeitura planejava construir mictórios públicos. Embargada a obra já iniciada, trataram de reconstruir a parede e o fizeram sem a necessária solidez, causa do desmoronamento desta manhã. (CORREIO DO CEARÁ, 20/12/1934. P. 08).

Álbum Vistas do Ceará 1908

Como era e como ficou depois do aterro. 
Foto1: Acervo Carlos Augusto/Foto2: Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

O desabamento do aterro da Praça General Tibúrcio, noticiada pelo Correio do Ceará, como “Serviço mal feito”, nos deixa claro como o processo de remodelação do centro se efetuava com percalços pelo caminho, pois desabamento de aterros, acidentes de trânsito causados pelas obras, acidentes de trabalho nas construções, dentre outros, ocorria com uma assiduidade espantosa que já se tornara uma característica congênita do processo de urbanização da cidade. Fortaleza era na época um “canteiro de obras a céu aberto”. Porém, um canteiro sem uma infraestrutura segura para os operários e transeuntes, como verificado no caso do desabamento do Arco do Triunfo, na Rua Major Facundo, uma das mais importantes do perímetro central. Na época, quase toda a cidade estava eufórica com a visita de Getúlio Vargas, veiculada em todos os jornais da urbe como um grande acontecimento, até mesmo pelos matutinos que criticavam Getúlio, como ditador. Portanto, a cidade deveria estar bonita e “enfeitada”, para transmitir uma “boa imagem” da administração local.

 População aguarda ansiosa a chegada de Getúlio Vargas em frente a Estação Central
Fotos Acervo Assis Lima

Ontem cerca das 23, ½ horas, deu-se um horrível desastre do qual quase que perecem sem vida seis operários, a serviço da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Estava em construção, há alguns dias, no trecho da Rua Major Facundo, esquina com a Travessa Senador Alencar, um arco em que seriam colocadas flores naturais, para o fim de ser saudado, com elas, a entrada da nossa cidade, o Sr. Chefe do governo provisório. Naquela hora, a mandado do humanitário Prefeito da Capital, uma turba de trabalhadores foi desobstruir o referido arco, pois, com a notícia da chegada, hoje a tarde, do Sr. Getúlio Vargas, todos os esforços seriam perdidos em concluir a obra em tempo. Quando despregavam as primeiras taboas, veio abaixo toda a armação, resultando da catástrofe saírem cincos operários com sérios ferimentos nos membros, e um contorcionado gravemente. (A RUA, 17/09/1933. P 02).

Rua Major Facundo

Após o acidente, os operários foram levados pela polícia para a Santa Casa de Misericórdia, onde receberam atendimento. Na verdade, era muito importante para Raimundo Girão, como administrador da cidade, apresentar Fortaleza como uma cidade “moderna”, resultado do seu trabalho. Pois, além dessa boa imagem garantir a sua permanência no poder, poderia receber mais incentivos financeiros para efetuar a modernização da Capital, visto que uma boa parte dos recursos era oriunda do Governo Federal. Para tanto, não bastava reformar as ruas, praças, logradouros etc., era necessário “vendê-la” como um arquétipo da modernidade, onde o centro era a sua vitrine principal. Os aspectos obsoletos, arcaicos, anti-modernos da Capital, como as favelas e os areais, deveria ser ocultada da visita de Getúlio.
A dinâmica da cidade foi transfigurada, nos dias 17 a 20 de setembro de 1933, período da estadia de Getúlio Vargas, as obras de calçamento das ruas tiveram que sofrer alterações no “calor da visita”, para resplandecer, cintilar, somente os aspectos positivos da urbanização.

Grande concentração de apoio a Getúlio Vargas na Praça do Ferreira. Acervo Lucas

Agora, porém, com a passagem da comitiva presidencial, o Sr. Prefeito deu nova feição aos trabalhos. Por quê? Ninguém sabe. O certo é que ele mandou que a picareta da prefeitura, desordenadamente, arbitrariamente, desalojasse todas as pedras de algumas travessas, e simultaneamente da Praça do Ferreira, de forma que hoje, ninguém mais pode andar por aqueles sítios. [..] Ontem, por exemplo, o mau serviço culminou. Ninguém sabia onde pisar. Tinha-se a ideia que um terremoto deslocara o empedramento da cidade, fazendo um estrago irremediável. (O NORDESTE 23/09/1933 p 04).

Porém, o que notamos é que a imagem construída pelo O Nordeste divergiu do projeto do Prefeito. O matutino na mesma matéria, ainda ironiza Raimundo Girão, insinuando que ele estava iludido, achando que parecia Getúlio Vargas, quando na verdade ele estava “interrompendo o trânsito, atestando o progresso e também atestando um serviço mal orientado”. O calçamento das ruas foi um dos pontos mais polêmicos no projeto de modernização na época. Primeiro, porque só contemplava o centro e as ruas comercialmente mais importantes. Segundo, porque foi um processo arbitrário, verticalizado onde a sociedade estava apartada das decisões, restando apenas, criticar os resultados. Noutra matéria do O Nordeste, percebemos melhor esses contrastes:

Fortaleza apresenta, em matéria de calçamento, o mais chocante dos contrastes. Enquanto a Praça do Ferreira, e algumas ruas ostentam o luxo da pavimentação a concreto ou a paralelepípedo, outras vias, mesmo centrais, se ressentem de qualquer melhoramento nesse sentido, e em várias, o calçamento existente é desolação. Trechos há, por exemplo, na rua “Dona Isabel”, quase intransitáveis, como há na rua “Major Facundo”, “Dona Bárbara”, etc. É uma tortura andar por ali, de veículo ou a pé. De forma que a capital está dando a impressão dessas moças vaidosas que usam vestido de seda e sapatos de solados rôtos. (IDEM, 16/12/1933. P 03).

Esse trecho é muito elucidativo sobre o processo de remodelação das ruas, e da implantação do calçamento a concreto. O calcamento a paralelepípedo estava sendo substituído pelo concreto, pois facilitava o transporte de carros, de pessoas, e era considerado mais moderno e esteticamente superior. Porém, como observamos essas melhorias só contemplavam o centro da capital, e mais especificamente, as ruas mais importantes. As áreas mais distantes como subúrbios, favelas, ou mesmo um bairro um pouco afastado do centro, não era alvo dessas reformas. A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente. A produção de mercadorias é priorizada em detrimento das relações humanas, por conseguinte, os locais de saneamento com equipamentos modernos e condições salutares de moradia, também seguem essa ordem, a “hierarquia da mercadoria”. Não obstante, a própria rua e o calçamento, são também mercadorias, que também se depreciam.

Trechos há, em que dentro de pouco tempo, terá desaparecido por completo o cimento, tal é a precariedade do trabalho [...]. O serviço está mal feito em vários pontos, e a prefeitura deve-se lembrar de que o proprietário, que concorre com sua quota para o calçamento, tem o direito de exigir trabalho eficiente, seguro, para que amanhã, sob pretexto de remodelação no pavimento urbano não venha a recontribuir, onerosamente, para tal serviço. Faz-se preciso, destarte, fiscalização mais rigorosa no calçamento a concreto. (IDEM, 16/11/1933 p 03).

Esta citação expressa que a rua, mesmo sendo uma via pública, já era enxergada como mercadoria, da qual os “proprietários- consumidores” que pagaram os seus impostos teriam o direito de “usufruir” de um produto com qualidade e trabalho eficiente. Há uma inversão de valores, e uma apropriação do público pelo privado, pois não é um cidadão que exige um serviço bem feito mediante a cobrança dos seus impostos, mas um “proprietário”, que não quer onerar o seu bem. Outro elemento importante que podemos constatar, é que já se tinha a noção de que algumas obras eram construídas para terem uma vida curta, a pretexto de reconstruí-las e atrair novos investimentos. Ao que tudo indica as reformas na pavimentação de Fortaleza, não escaparam a esta lógica:

Quem se der a curiosidade de transitar pela travessa Senador Alencar, trecho compreendido entre a rua Major Facundo e Barão do Rio Branco, verificará de que maneira pouco recomendável está a prefeitura gastando os dinheiros do povo. Só nesse pequeno trecho encontram-se uma meia dúzia de remendos recentes, defeituando todo o serviço da pavimentação. Isso vem provar, simplesmente que na composição do concreto entra grande parte de areia e uma insignificância de cimento. O mesmo vem acontecendo com os paralelepípedos. Esse mal acabamento demonstra a sociedade que a prefeitura não fiscaliza os serviços que estão sendo executados a custa do povo e que vão ser pagos por esse mesmo povo. [...] Tudo isso ocorre agora em pleno e rigoroso verão. E quando chegar o inverno? Temos necessariamente de encomendar algumas canoas se desejarmos transitar pela Praça do Ferreira e rua Major Facundo. (A RUA, 29/10/1933 p 09).

A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente.


O “libelo” acima critica a qualidade da pavimentação, destacando que o material utilizado na construção era adulterado, composto mais de areia do que de cimento. E a culpa seria da prefeitura, que não “fiscalizara as obras”. Diferentemente do relatório apresentado pelo Interventor Federal, Roberto Carneiro de Mendonça, que representou uma imagem edulcorada da remodelação de Fortaleza, alguns periódicos mostraram uma visão diametralmente oposta, esboçando que foi um processo constituído de diversas contradições. E as contradições iam desde o péssimo saneamento dos bairros pobres, até precariedade do serviço de saúde, proliferação da miséria nos areais ao redor da cidade, ausência de local para cuidar dos mendigos, propagação de doenças como: varíola, lepra e alastrim, aumento dos números de delitos, aumento exponencial dos acidentes de trânsito e de trabalho, divorciamento socioespacial do centro–periferia, dentre outros antagonismos provenientes do processo de “modernização” de Fortaleza, ou melhor, das reformas materiais realizadas no perímetro central. Deixando os demais logradouros, expostos á sorte.

Continua...


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30


Praça de Pelotas, atual Praça Clóvis Beviláqua.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No início da década de 30, o  Centro de Fortaleza viveu uma tensão permanente de reformas modernizantes. Apesar do velho e do novo se relacionando, o espaço urbano de Fortaleza estava caótico e desordenado e inúmeras críticas apareciam nos jornais. Podemos observar um exemplo, nessa matéria:

Segundo um documento da edilidade, as carroças não poderão trafegar na pavimentação a concreto. As ruas Major facundo e do Rosário, Praça do Ferreira, Travessa Senador Alencar, enfim, os pontos centrais da cidade estão sendo pavimentados a concreto. Diante desse impasse, o que poderá fazer o pobre carroceiro? Pagou o imposto adiantadamente durante o corrente ano, e não pode exercitar a sua atividade! Pensa que o Sr. Prefeito que a civilização está no caminhão Chevrolet, queimando gasolina da América do norte! Antes do contato da vertigem inhanque, o Ceará atravessava um período de grande prosperidade econômica e financeira. Hoje, entretanto, constatamos o contrário. Enquanto experimentamos o progresso na mecânica, nos ares, em terra, no mar, por outro lado o nosso dinheiro se escoa para o estrangeiro e caímos numa pobreza de job! O movimento de carroças é nosso. É regional. Fica entre nós. Mas o Sr. Prefeito não entende de finanças. Acha que a carroça afeia a nossa linda artéria toda recamada de concreto. E pronto. Com um decreto manda as favas o serviço de carroças pelo centro da capital. Bela visão de administrador! ( A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Rua Major Facundo, a primeira a ser pavimentada a concreto.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Outro trecho da rua Major Facundo.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934


O jornal tece uma crítica ácida ao Prefeito Raimundo Girão, ao imperialismo Estadunidense, e defende o carroceiro com um discurso “anti-moderno” e regionalista. Também critica a noção de “civilização” baseada no caminhão Chevrolet, que segundo o matutino, só piorou as condições econômicas da cidade. Porém, percebemos como havia uma disputa ideológica a respeito da modernização da cidade. A realização da pavimentação a concreto do centro que, nos veículos oficias era apresentado como grande inovação e melhoria para Fortaleza, tem no jornal A Rua o antidiscurso, o reverso da medalha, realçando o “novo” como quebra de costumes e tradições citadinas. Em contrapartida, o carroceiro é concebido como símbolo regional e cristalizador de uma identidade.

A a polêmica continua quando Raimundo Girão resolve colocar uma placa na Faculdade de Direito:

As coisas do Ceará não mudam e nem mudarão. Em matéria de política, então, o negócio aqui é individualista até no modo de falar. O Sr. Governador da cidade entendeu de reformar a pavimentação a concreto da cidade por conta do particular e vem levando tudo de roldão, só pelo gosto de deixar o seu nome ligado a alguma concreta que perdure (per omnia secula seculorum)... “O que, porém, está chamando a atenção do público é a placa colocada na testa da faculdade de Direito, lado em frente ao Palacete Brasil, com o seguinte título: Travessa Morada Nova”. Morada nova é a terra dos Girão. Daí, certamente, a glorificação do nome numa das ruas de Fortaleza. Isso assim, também é demais. (A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Palacete Brasil, Travessa Morada Nova e a Faculdade de Direito (Hoje Museu do Ceará). 
Acervo Assis Lima

O projeto de “urbanização” da cidade atendia aos interesses de governantes e capitalistas, no qual o papel do Estado era muito presente. As ruas eram reformadas e tinham seus nomes alterados de maneira arbitrária seguindo a perspectiva do enaltecimento.
A urbanização de Raimundo Girão, Roberto Carneiro de Mendonça, e inclusive Getúlio Vargas (representantes do Estado), se aproxima muito mais do conceito de urbanismo do que propriamente de uma sociedade urbana. Podemos observar melhor os interesses envolvidos na remodelação do centro, na matéria sobre aTravessa das Trincheiras:

O Sr. Prefeito continua com a picareta em funcionamento. Quando a sua ação destruidora é bem orientada, ainda bem; quando, porém, a mania demolidora, não se exerce em proveito coletivo, é claro que a imprensa precisa clamar.  É o caso da Travessa das Trincheiras. O S.s. é incapaz de justificar com argumentos aceitáveis o considerável dispêndio que vai fazer sem qualquer interesse aconselhável da parte da população. Vão ser gasto neste serviço, 200 ou 300 contos, sem nenhum proveito para a cidade. Pelo lado estético, a estrutura da travessa é uma pilheria, ridícula [...]48 quadra [...] parada pelo beco [...] um alejão. Pelo que toca ao descongestionamento da Praça do Ferreira, o absurdo não é menor, pois esse congestionamento só existe na cabeça dos inovadores apressados. O tal beco vai ser tão útil quanto o da travessa da Boa Vista... que o povo bem sabe a que ele é destinado. Perguntamos: não seria mais proveitoso para a população que essa avultada quantia fosse aplicada em calçamento, na zona afastada do centro ou em qualquer melhoramento que beneficiasse o contribuinte? Qualquer pessoa em bom senso ficaria com nosso ponto de vista. {...}nunca os que são refratários da imprensa, e nesse número o atual Prefeito bate o Record. Há, porém, uma {...}: se o dinheiro fosse do seu bolso, certamente que s.s. o aplicaria mais cuidadosamente. Mas que usa a pólvora alheia pouco se incomoda que o tiro atinja ou não o alvo... Se o programa é gastar, dinheiro haja... (IDEM, 14/09/1933 p. 01.)

Travessa das Trincheiras, atual rua Liberato Barroso.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Segundo o periódico, a reforma da Travessa das Trincheiras  seria, não só inviável como totalmente desnecessária para os “cofres públicos”.  Não atenderia as expectativas da população, seria dispendiosa, esteticamente não “aconselhável” e inoperante. Em contrapartida, sugere que o dinheiro gasto nessa reforma fosse aplicado nos bairros mais afastados do centro, pois teria uma maior funcionalidade pública. Todavia, o processo de urbanização de Fortaleza priorizou o centro, sua artéria comercial, mostrando uma tendência das cidades capitalistas em formação inicial. Reforma-se logo o lócus do poder econômico, depois se pensa no resto. Existiam duas Fortaleza, uma com infraestrutura e com conjunto de equipamentos modernos, e outra composta de areais, moradias sem saneamento, onde habitavam as populações mais pobres. Essa realidade se aplicava integralmente na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, pois os bairros que eram mais pobres nessa época como Arraial Moura Brasil, Mucuripe, Lagamar, para citar alguns, se confirmarão como os mais pobres no período subsequente, ou seja, nas décadas de 1940 a 1960. A gênese dessa urbanização desigual se materializa ainda na década de 1930.

Arraial Moura Brasil. Acervo Lucas 

O cearense fez de Fortaleza a linda cidade cheia de alegria e de encantamento. Deu-lhe a imponência das ruas largas e simétricas. Deu-lhe agora a pavimentação a concreto. Deu-lhe tudo, enfim, que uma civilizada metrópole pode proporcionar aos seus insaciados turistas. Eis a cidade de Fortaleza. Encantada. Asseiada. Faiscante de reformas materiais e estéticas, o pano de boca do grande teatro da vida cearense... A plateia gosta de aplaudir a representação. Desconhece, entretanto, a tragédia dolorosa que se passa por detrás dos bastidores..(...) A pobreza nos arredores da cidade vive a sua grande tragédia anônima... Os homens públicos nunca penetraram a baiuca do vagabundo. Acostumados ao conforto social, jamais sentiram a angústia dos que peregrinam, noite e dia, pelas ruas da cidade, a procura de uma côdea de pão. A costureira que dá o último ponto da encomenda no atelier, e espera à tardinha de sábado, o pequeno salário, não pode compreender o que seja felicidade. O trabalhador da oficina e do campo, exausto do cansaço e da desilusão, não encontra nenhum conforto no regaço da família porque o governo não lhe pagou a jornada semana. (...) Nas obras do Porto, o governo não paga os vencimentos dos operários. A Inspetoria das Obras contra as Secas não satisfaz ao pagamento dos seus fornecedores. A cidade está cheia de flagelados, a toda hora descem dos sertões ressequidos, caravanas de famintos. Nos centros populosos das localidades sertanejas, agrupam-se milhares de camponeses a procura de pão e de trabalho. (...) A pomposidade, o luxo, a sela, o pompom, o frou-frou da alta sociedade, todo esse requinte de beleza não pode viver sem o auxílio do trabalhador anônimo que habita os subúrbios, envelhece nas fábricas e nas oficinas e morre de tuberculose nos hospitais. A cidade é o pano de boca dos subúrbios e dos campos. Sem o concurso das gentes dos bastidores, a farsa da vida não terá uma boa representação e a plateia chicoteará com apupo o elenco da Companhia. Não se iluda o governo com o julgamento dos moralistas. O povo tem fome. E a fome, diz um ditado, tem cara de hereje... (IBIDEM, 10/08/ 1933 p. 05).

Mucuripe em 1931 

Esta longa citação, escrita por Gastão Justa¹, tinha como objetivo defender o jogo do bicho, pois o governo aprovara uma lei considerando esse jogo ilegal. Por conseguinte, o referido periódico abriu uma campanha nas suas páginas defendendo o jogo do bicho como fonte de renda para a classe trabalhadora. Porém, o que é sintomático nesta matéria é que ela sintetiza as principais contradições por que passava a cidade na época, salientando que existia uma Fortaleza representada para turistas, “asseada, faiscante de reformas matérias e estéticas”, ao mesmo tempo em que os subúrbios estavam repletos de problemas sociais, tais como falta de pagamento aos trabalhadores, excesso de migração para Fortaleza, que continuava no ano de 1933, mesmo com a estratégia do governo dos campos de concentração, além da epidemia de tuberculose que afetava principalmente os pobres da cidade, devido à subnutrição, precária condição de moradia e falta saneamento e carga horária extenuante da classe trabalhadora nas fábricas, que tornavam rotineiros os diversos acidentes de trabalho. Todos esses elementos são componentes do processo de urbanização de Fortaleza na década de 1930. Enquanto havia uma proliferação da miséria, existia, também, um aumento no crescimento de estabelecimentos comercias como bancos, construtoras, maior número de automóveis na cidade, e um crescimento substancial de empresa particulares. E a picareta do governo, para usar uma expressão do jornal, não parava. Se compararmos os serviços de construções de ruas e calçamentos, de 1927 a 1933, notaremos um acréscimo substancial nos anos de 1932 e 1933, ou seja, no período da seca as obras foram intensificadas. Como podemos verificar na tabela abaixo.

Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Todavia, se cotejarmos o ano de 1931 (“véspera da seca”) com os anos de 1932 e 1933, veremos que o aumento chega a ser bastante considerável em relação a calçamentos novos e reconstruídos. Isso significa dizer que a seca de 1932 foi um elemento importante para a remodelação do espaço urbano de Fortaleza, especialmente, o centro. Por ilação, se houve aumento na construção de ruas e calçamentos nesse período, também houve aumento da verba para realização de tal empreendimento. O Governo Municipal acabou angariando mais investimentos do Governo Federal e as despesas com melhoramentos passaram de 484:117$006, em 1931; para 698:325$087, em 1932; e 558:332$700, no ano de 1933. E a arrecadação total do município de Fortaleza, passou de 1.926$252$439, em 1931; para 2.249$007$416, em 1932; obtendo uma ligeira queda no ano de 1933 para 1.862$703$600²

Interessante ressaltar que houve um aumento de investimentos dos governos (Municipal e Federal) no setor de construção e melhoramentos de ruas, mesmo num momento crítico e tênue que o País estava passando, devido à crise de 1929. Fortaleza passou por um “ajuste espacial”, no qual Raimundo Girão encetou o momento para aplicar reformas no centro da cidade, atraindo recursos, desenvolvendo o setor secundário, e absorvendo a mão de obra dos retirantes, que, além de ser barata, gerava uma acumulação adicional de capital, retirava os flagelados da “ociosidade e do perigo do banditismo social”.

Lançamento do lençol de concreto na rua General Sampaio. 
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Serviço de pavimentação em plena atividade na rua São Paulo
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No Ceará os investimentos se processaram em duas frentes distintas: 1) recursos para construção de açudes, poços profundos e estradas de rodagem no interior; 2) recursos para melhoramentos do centro e construção do porto na capital.
E as reformas na capital, continuavam! Porém, a insatisfação de alguns periódicos com a administração municipal também. Como podemos observar em relação à mudança das novas placas e dos números das ruas:

A prefeitura no desejo iconoclasta de tudo reformar desta terra resolveu mudar as placas dos números das casas da cidade. Ao tempo da administração do Sr. Godolfredo Maciel, o assunto mereceu o cuidado do chefe municipal e a colocação do nosso número se processou de forma rápida e prática. Presentemente o serviço não corresponde à necessidade do meio. Em vez de substituir a placa velha pela nova, a edilidade atrapalha o serviço, mandando pintar na parede dos edifícios um número provisório, para o mesmo ser substituído depois pela placa efetiva. O funcionário postal encarregado pela distribuição de cartas e jornais encontra séria dificuldade para normalizar o serviço. Ficando também prejudicado o particular que não recebeu, com regularidade, a sua correspondência. Urge uma reforma contra a reforma. [...] Reformar para melhor, vá lá! Para pior, é melhor deixar a coisa como estava. (IDEM, 17/08/1933. P 03).

A rua da Praia, atual Avenida Pessoa AntaArquivo Nirez
Uma das únicas (se não a única) foto a mostrar uma placa de rua com números. 

Qualquer alteração no cotidiano, na normalidade da rotina diária era criticada pela maioria dos periódicos da época. A mudança dos números das casas foi o proscênio de disputas quase homéricas, pois a efemeridade dos nomes e números, além de dificultar o serviço postal regular, transfigurava a identidade dos lugares. A crítica geralmente vinha de forma comparativa com administrações pretéritas, no caso dessa matéria do jornal A Rua, elogiava a forma como Godofredo Maciel tinha executado a mudança dos números das ruas, de forma “prática e efetiva”. Enquanto isso, as ruas do centro iam sendo reformadas, mas nem sempre da maneira que o governo gostaria.



¹Redator chefe e secretário do jornal A RUA. Boa parte das matérias de crítica ao governo foi escrita por ele. Na grande maioria das vezes com tom ácido e irônico.

²Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: JUCÀ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza. São Paulo: Anablume editora. 2 ed., 2003./Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará.

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