quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30


Praça de Pelotas, atual Praça Clóvis Beviláqua.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No início da década de 30, o  Centro de Fortaleza viveu uma tensão permanente de reformas modernizantes. Apesar do velho e do novo se relacionando, o espaço urbano de Fortaleza estava caótico e desordenado e inúmeras críticas apareciam nos jornais. Podemos observar um exemplo, nessa matéria:

Segundo um documento da edilidade, as carroças não poderão trafegar na pavimentação a concreto. As ruas Major facundo e do Rosário, Praça do Ferreira, Travessa Senador Alencar, enfim, os pontos centrais da cidade estão sendo pavimentados a concreto. Diante desse impasse, o que poderá fazer o pobre carroceiro? Pagou o imposto adiantadamente durante o corrente ano, e não pode exercitar a sua atividade! Pensa que o Sr. Prefeito que a civilização está no caminhão Chevrolet, queimando gasolina da América do norte! Antes do contato da vertigem inhanque, o Ceará atravessava um período de grande prosperidade econômica e financeira. Hoje, entretanto, constatamos o contrário. Enquanto experimentamos o progresso na mecânica, nos ares, em terra, no mar, por outro lado o nosso dinheiro se escoa para o estrangeiro e caímos numa pobreza de job! O movimento de carroças é nosso. É regional. Fica entre nós. Mas o Sr. Prefeito não entende de finanças. Acha que a carroça afeia a nossa linda artéria toda recamada de concreto. E pronto. Com um decreto manda as favas o serviço de carroças pelo centro da capital. Bela visão de administrador! ( A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Rua Major Facundo, a primeira a ser pavimentada a concreto.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Outro trecho da rua Major Facundo.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934


O jornal tece uma crítica ácida ao Prefeito Raimundo Girão, ao imperialismo Estadunidense, e defende o carroceiro com um discurso “anti-moderno” e regionalista. Também critica a noção de “civilização” baseada no caminhão Chevrolet, que segundo o matutino, só piorou as condições econômicas da cidade. Porém, percebemos como havia uma disputa ideológica a respeito da modernização da cidade. A realização da pavimentação a concreto do centro que, nos veículos oficias era apresentado como grande inovação e melhoria para Fortaleza, tem no jornal A Rua o antidiscurso, o reverso da medalha, realçando o “novo” como quebra de costumes e tradições citadinas. Em contrapartida, o carroceiro é concebido como símbolo regional e cristalizador de uma identidade.

A a polêmica continua quando Raimundo Girão resolve colocar uma placa na Faculdade de Direito:

As coisas do Ceará não mudam e nem mudarão. Em matéria de política, então, o negócio aqui é individualista até no modo de falar. O Sr. Governador da cidade entendeu de reformar a pavimentação a concreto da cidade por conta do particular e vem levando tudo de roldão, só pelo gosto de deixar o seu nome ligado a alguma concreta que perdure (per omnia secula seculorum)... “O que, porém, está chamando a atenção do público é a placa colocada na testa da faculdade de Direito, lado em frente ao Palacete Brasil, com o seguinte título: Travessa Morada Nova”. Morada nova é a terra dos Girão. Daí, certamente, a glorificação do nome numa das ruas de Fortaleza. Isso assim, também é demais. (A RUA, 05/09/1933/ p 01.)

Palacete Brasil, Travessa Morada Nova e a Faculdade de Direito (Hoje Museu do Ceará). 
Acervo Assis Lima

O projeto de “urbanização” da cidade atendia aos interesses de governantes e capitalistas, no qual o papel do Estado era muito presente. As ruas eram reformadas e tinham seus nomes alterados de maneira arbitrária seguindo a perspectiva do enaltecimento.
A urbanização de Raimundo Girão, Roberto Carneiro de Mendonça, e inclusive Getúlio Vargas (representantes do Estado), se aproxima muito mais do conceito de urbanismo do que propriamente de uma sociedade urbana. Podemos observar melhor os interesses envolvidos na remodelação do centro, na matéria sobre aTravessa das Trincheiras:

O Sr. Prefeito continua com a picareta em funcionamento. Quando a sua ação destruidora é bem orientada, ainda bem; quando, porém, a mania demolidora, não se exerce em proveito coletivo, é claro que a imprensa precisa clamar.  É o caso da Travessa das Trincheiras. O S.s. é incapaz de justificar com argumentos aceitáveis o considerável dispêndio que vai fazer sem qualquer interesse aconselhável da parte da população. Vão ser gasto neste serviço, 200 ou 300 contos, sem nenhum proveito para a cidade. Pelo lado estético, a estrutura da travessa é uma pilheria, ridícula [...]48 quadra [...] parada pelo beco [...] um alejão. Pelo que toca ao descongestionamento da Praça do Ferreira, o absurdo não é menor, pois esse congestionamento só existe na cabeça dos inovadores apressados. O tal beco vai ser tão útil quanto o da travessa da Boa Vista... que o povo bem sabe a que ele é destinado. Perguntamos: não seria mais proveitoso para a população que essa avultada quantia fosse aplicada em calçamento, na zona afastada do centro ou em qualquer melhoramento que beneficiasse o contribuinte? Qualquer pessoa em bom senso ficaria com nosso ponto de vista. {...}nunca os que são refratários da imprensa, e nesse número o atual Prefeito bate o Record. Há, porém, uma {...}: se o dinheiro fosse do seu bolso, certamente que s.s. o aplicaria mais cuidadosamente. Mas que usa a pólvora alheia pouco se incomoda que o tiro atinja ou não o alvo... Se o programa é gastar, dinheiro haja... (IDEM, 14/09/1933 p. 01.)

Travessa das Trincheiras, atual rua Liberato Barroso.
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Segundo o periódico, a reforma da Travessa das Trincheiras  seria, não só inviável como totalmente desnecessária para os “cofres públicos”.  Não atenderia as expectativas da população, seria dispendiosa, esteticamente não “aconselhável” e inoperante. Em contrapartida, sugere que o dinheiro gasto nessa reforma fosse aplicado nos bairros mais afastados do centro, pois teria uma maior funcionalidade pública. Todavia, o processo de urbanização de Fortaleza priorizou o centro, sua artéria comercial, mostrando uma tendência das cidades capitalistas em formação inicial. Reforma-se logo o lócus do poder econômico, depois se pensa no resto. Existiam duas Fortaleza, uma com infraestrutura e com conjunto de equipamentos modernos, e outra composta de areais, moradias sem saneamento, onde habitavam as populações mais pobres. Essa realidade se aplicava integralmente na década de 1930, principalmente após a seca de 1932, pois os bairros que eram mais pobres nessa época como Arraial Moura Brasil, Mucuripe, Lagamar, para citar alguns, se confirmarão como os mais pobres no período subsequente, ou seja, nas décadas de 1940 a 1960. A gênese dessa urbanização desigual se materializa ainda na década de 1930.

Arraial Moura Brasil. Acervo Lucas 

O cearense fez de Fortaleza a linda cidade cheia de alegria e de encantamento. Deu-lhe a imponência das ruas largas e simétricas. Deu-lhe agora a pavimentação a concreto. Deu-lhe tudo, enfim, que uma civilizada metrópole pode proporcionar aos seus insaciados turistas. Eis a cidade de Fortaleza. Encantada. Asseiada. Faiscante de reformas materiais e estéticas, o pano de boca do grande teatro da vida cearense... A plateia gosta de aplaudir a representação. Desconhece, entretanto, a tragédia dolorosa que se passa por detrás dos bastidores..(...) A pobreza nos arredores da cidade vive a sua grande tragédia anônima... Os homens públicos nunca penetraram a baiuca do vagabundo. Acostumados ao conforto social, jamais sentiram a angústia dos que peregrinam, noite e dia, pelas ruas da cidade, a procura de uma côdea de pão. A costureira que dá o último ponto da encomenda no atelier, e espera à tardinha de sábado, o pequeno salário, não pode compreender o que seja felicidade. O trabalhador da oficina e do campo, exausto do cansaço e da desilusão, não encontra nenhum conforto no regaço da família porque o governo não lhe pagou a jornada semana. (...) Nas obras do Porto, o governo não paga os vencimentos dos operários. A Inspetoria das Obras contra as Secas não satisfaz ao pagamento dos seus fornecedores. A cidade está cheia de flagelados, a toda hora descem dos sertões ressequidos, caravanas de famintos. Nos centros populosos das localidades sertanejas, agrupam-se milhares de camponeses a procura de pão e de trabalho. (...) A pomposidade, o luxo, a sela, o pompom, o frou-frou da alta sociedade, todo esse requinte de beleza não pode viver sem o auxílio do trabalhador anônimo que habita os subúrbios, envelhece nas fábricas e nas oficinas e morre de tuberculose nos hospitais. A cidade é o pano de boca dos subúrbios e dos campos. Sem o concurso das gentes dos bastidores, a farsa da vida não terá uma boa representação e a plateia chicoteará com apupo o elenco da Companhia. Não se iluda o governo com o julgamento dos moralistas. O povo tem fome. E a fome, diz um ditado, tem cara de hereje... (IBIDEM, 10/08/ 1933 p. 05).

Mucuripe em 1931 

Esta longa citação, escrita por Gastão Justa¹, tinha como objetivo defender o jogo do bicho, pois o governo aprovara uma lei considerando esse jogo ilegal. Por conseguinte, o referido periódico abriu uma campanha nas suas páginas defendendo o jogo do bicho como fonte de renda para a classe trabalhadora. Porém, o que é sintomático nesta matéria é que ela sintetiza as principais contradições por que passava a cidade na época, salientando que existia uma Fortaleza representada para turistas, “asseada, faiscante de reformas matérias e estéticas”, ao mesmo tempo em que os subúrbios estavam repletos de problemas sociais, tais como falta de pagamento aos trabalhadores, excesso de migração para Fortaleza, que continuava no ano de 1933, mesmo com a estratégia do governo dos campos de concentração, além da epidemia de tuberculose que afetava principalmente os pobres da cidade, devido à subnutrição, precária condição de moradia e falta saneamento e carga horária extenuante da classe trabalhadora nas fábricas, que tornavam rotineiros os diversos acidentes de trabalho. Todos esses elementos são componentes do processo de urbanização de Fortaleza na década de 1930. Enquanto havia uma proliferação da miséria, existia, também, um aumento no crescimento de estabelecimentos comercias como bancos, construtoras, maior número de automóveis na cidade, e um crescimento substancial de empresa particulares. E a picareta do governo, para usar uma expressão do jornal, não parava. Se compararmos os serviços de construções de ruas e calçamentos, de 1927 a 1933, notaremos um acréscimo substancial nos anos de 1932 e 1933, ou seja, no período da seca as obras foram intensificadas. Como podemos verificar na tabela abaixo.

Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Todavia, se cotejarmos o ano de 1931 (“véspera da seca”) com os anos de 1932 e 1933, veremos que o aumento chega a ser bastante considerável em relação a calçamentos novos e reconstruídos. Isso significa dizer que a seca de 1932 foi um elemento importante para a remodelação do espaço urbano de Fortaleza, especialmente, o centro. Por ilação, se houve aumento na construção de ruas e calçamentos nesse período, também houve aumento da verba para realização de tal empreendimento. O Governo Municipal acabou angariando mais investimentos do Governo Federal e as despesas com melhoramentos passaram de 484:117$006, em 1931; para 698:325$087, em 1932; e 558:332$700, no ano de 1933. E a arrecadação total do município de Fortaleza, passou de 1.926$252$439, em 1931; para 2.249$007$416, em 1932; obtendo uma ligeira queda no ano de 1933 para 1.862$703$600²

Interessante ressaltar que houve um aumento de investimentos dos governos (Municipal e Federal) no setor de construção e melhoramentos de ruas, mesmo num momento crítico e tênue que o País estava passando, devido à crise de 1929. Fortaleza passou por um “ajuste espacial”, no qual Raimundo Girão encetou o momento para aplicar reformas no centro da cidade, atraindo recursos, desenvolvendo o setor secundário, e absorvendo a mão de obra dos retirantes, que, além de ser barata, gerava uma acumulação adicional de capital, retirava os flagelados da “ociosidade e do perigo do banditismo social”.

Lançamento do lençol de concreto na rua General Sampaio. 
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

Serviço de pavimentação em plena atividade na rua São Paulo
Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

No Ceará os investimentos se processaram em duas frentes distintas: 1) recursos para construção de açudes, poços profundos e estradas de rodagem no interior; 2) recursos para melhoramentos do centro e construção do porto na capital.
E as reformas na capital, continuavam! Porém, a insatisfação de alguns periódicos com a administração municipal também. Como podemos observar em relação à mudança das novas placas e dos números das ruas:

A prefeitura no desejo iconoclasta de tudo reformar desta terra resolveu mudar as placas dos números das casas da cidade. Ao tempo da administração do Sr. Godolfredo Maciel, o assunto mereceu o cuidado do chefe municipal e a colocação do nosso número se processou de forma rápida e prática. Presentemente o serviço não corresponde à necessidade do meio. Em vez de substituir a placa velha pela nova, a edilidade atrapalha o serviço, mandando pintar na parede dos edifícios um número provisório, para o mesmo ser substituído depois pela placa efetiva. O funcionário postal encarregado pela distribuição de cartas e jornais encontra séria dificuldade para normalizar o serviço. Ficando também prejudicado o particular que não recebeu, com regularidade, a sua correspondência. Urge uma reforma contra a reforma. [...] Reformar para melhor, vá lá! Para pior, é melhor deixar a coisa como estava. (IDEM, 17/08/1933. P 03).

A rua da Praia, atual Avenida Pessoa AntaArquivo Nirez
Uma das únicas (se não a única) foto a mostrar uma placa de rua com números. 

Qualquer alteração no cotidiano, na normalidade da rotina diária era criticada pela maioria dos periódicos da época. A mudança dos números das casas foi o proscênio de disputas quase homéricas, pois a efemeridade dos nomes e números, além de dificultar o serviço postal regular, transfigurava a identidade dos lugares. A crítica geralmente vinha de forma comparativa com administrações pretéritas, no caso dessa matéria do jornal A Rua, elogiava a forma como Godofredo Maciel tinha executado a mudança dos números das ruas, de forma “prática e efetiva”. Enquanto isso, as ruas do centro iam sendo reformadas, mas nem sempre da maneira que o governo gostaria.



¹Redator chefe e secretário do jornal A RUA. Boa parte das matérias de crítica ao governo foi escrita por ele. Na grande maioria das vezes com tom ácido e irônico.

²Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 187 e 188.

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza

Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: JUCÀ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e reverso do perfil urbano de Fortaleza. São Paulo: Anablume editora. 2 ed., 2003./Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará.

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