domingo, 19 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes


Fortaleza nos anos 30. Acervo de Carlos Augusto Rocha

Praça do Cristo Redentor com a rua Rufino de Alencar
ao fundo. Foto dos anos 20. 
O Sr. Governador da cidade deveria lançar as suas vistas para a Rua Rufino de Alencar, mais conhecida por Ladeira da Prainha. Por ali ainda não se passou o fio de pedra. Nem sequer o chefe da edilidade teve a boa vontade de mandar acertar o calçamento pontiagudo daquela via pública. Parece que o mesmo tem contrato com alguma fábrica de calçados. Os pisos dos passeios têm aspectos de uma escada. Uma verdadeira “montanha russa”....Cheia de altos e baixos. Os transeuntes vencem, de ida e volta aquele trajeto com maior sacrifício. Ora, a Rua Rufino fica situada no centro da cidade, ao lado do palácio Arquiepiscopal. Não se compreende, portanto, o abandono em que o tem deixado o Mairé da cidade. Além da falta de estética, logo no começo da Rua, no bifurcamento da Praça da Sé com a Rua São José, levanta-se um grande areal. Se o Sr. Prefeito tem olhos para ver a Praça do Ferreira, parece se descuidar do resto da nossa capital. (Jornal A Rua, 27/10/1933 p. 03).

Rua Major Facundo, 1930. Arquivo Nirez
Na década de 30 (se bem que hoje não é tão diferente assim....), esse “descuido”, ou negligência com os demais logradouros da cidade não era por acaso. A remodelação da capital, ao contrário do que pensavam alguns jornais citadinos, não se devia à falta de planejamento urbano, mas justamente o oposto. Existia um planejamento que beneficiava uma parte da cidade, tendo em vista principalmente o desenvolvimento do comércio e dos chamados bairros “aristocráticos”. A urbanização do Centro expressava interesses de dirigentes políticos, e de setores da classe capitalista. Não se tratava de um processo caótico e desordenado, mas de uma lógica que tinha como prioridade atender a demanda do Capital, seja ele ligado ao comércio, construção civil, transporte, importação e exportação. Não podemos entender o processo de urbanização de Fortaleza, se não considerarmos o papel que exerceu a necessidade de acumulação de capital, refletindo até na prioridade de reformar, equipar e sanear alguns bairros, em detrimento do abandono de outros.

Imposto sobre os meios fios. Jornal A Razão 11 de junho de 1929
A urbanização de Fortaleza foi resultado de um campo de disputas, de uma luta entre os diversos setores sociais. No caso do governo, estava claro que se tratava de um projeto, pois na época foi criado até um imposto sobre os meios fios, e quem não pagasse no prazo, acarretaria multa. Portanto, o governo crivava fontes de rendas voltadas, exclusivamente, para a construção de ruas. Mas as obras nem sempre correspondiam às expectativas, e às vezes eram motivos de chacotas na imprensa.

Rua Guilherme Rocha, final da década de 30.

Jornal A Razão de
25 de Fev de 1938
Por toda a parte observa-se uma falha no trabalho. Ora, é um bueiro, ora é um arremate mal feito, deixando, as vistas do público, o aspecto do desmantelo prefeitural. O paralelepípedo que estão sentando é tão áspero que tem a aparência do antigo calçamento. Corre até uma pilheria a respeito. Um paraense ironizando o trabalho, disse que aquilo não era paralelepípedo, mas cearenselepípedo. Ontem, ao passarmos pela Rua Dr. Pedro Borges, verificamos que o concreto, que se está fazendo, naquele trecho, nas mediações da Padaria Italiana, é trabalho de tapiação, pois que o concreto é sentado sobre uma camada de areia. Pelo menos, é o que se nota nas extremidades. De modo que a espessura da massa é diminuta, não correspondendo ao que ficou estipulado da firma empreiteira com nossa edilidade. (IDEM, 10/11/1933 p. 01).

À medida que a remodelação da cidade ocorria, as críticas na imprensa acompanhavam nas mesmas dimensões. Todavia, também existiam elogios sobre o aspecto estético da cidade, no sentido de uma urbe moderna, bela, nos parâmetros da “civilização europeia”. Os adjetivos sempre salientavam os equipamentos modernos, a arquitetura dos prédios, o desenvolvimento do comércio, a suntuosidade das sedes administrativas, os recursos de transporte e iluminação, todos apresentados como indispensável e essencial de um estereótipo de cidade moderna. Não obstante, mesmo os periódicos que teciam críticas “cauterizantes” à administração de Raimundo Girão, faziam reverência a Fortaleza como símbolo da modernidade.

Jornal A Razão de 10 de Nov de 1937
Jornal A Razão

É empolgante. Possui prédios colossais como o “Hospital de Santo Antônio dos Pobres”. O cinema como não há igual no sul do Estado; o prédio dos Correios e Telégraphos; o luxuoso Palacete Benevides; sedes da Associação Comercial e da União Artística; a igreja matriz; estação da R.V.C.; Usina C. I. D. A. O; Villa Margarida, Prefeitura, e outros. Duas lindas avenidas. Iluminação elétrica de primeira ordem. (O NORDESTE, 17/03/1934 p. 06).

Jornal A Razão de 10 de Março de 1938
Jornal A Razão
Trata-se de mais um dos paradoxos da modernidade. A elite que pertence ao local não deseja representá-lo como arcaico, prosaico, ou obsoleto. A modernidade adquire tanto um sentido denotativo, de expressão material das ruas e prédios da cidade, do novo suplantando o velho, como uma acepção conotativa, onde a população sintetiza valores “eurocêntricos”, desejando adquirir costumes e culturas de outro padrão societal. O moderno era almejado como um horizonte a ser seguido, ao qual toda a população citadina deveria se adaptar sem nenhuma denegação. Portanto, além de uma pavimentação nova e esteticamente bonita, a capital precisaria ter um sistema de transporte urbano novo e eficiente. A “mobilidade urbana”, para usarmos uma expressão hodierna, foi um dos problemas da modernização de Fortaleza, protagonizando lutas titânicas entre a prefeitura e a Light¹, empresa que exercia o monopólio do transporte na época. Uma dessas lutas ocorreu devido à reforma da Praça do Ferreira, e a prefeitura, no caso, criou um decreto para retirar os trilhos da Ligth, pois estaria atrapalhando a tal reforma e, segundo o prefeito, também estava causando congestionamento no local.

Rua Major Facundo no final da década de 30.

Jornal A Razão de 1931
Isto é o cúmulo. E falta de senso político. O chefe do executivo municipal deve convir que os trilhos da Light não podem ser removidos de um momento para o outro, e ao sabor de um desejo pessoal, da Praça do Ferreira para outro qualquer ponto da cidade. Quanto a rescisão do contrato, é pilheria que não vale a pena nem falar. Nós não temos alcance para capital de tão arrojada empresa. Salvo se desejamos voltar aos antigos bondes de burro.... (A RUA, 29/08/1933 p. 03).

O jornal A Rua, como o veículo que fazia oposição aberta ao prefeito sai em defesa da empresa, alegando arbitrariedade por parte de Raimundo Girão, que tinha ameaçado romper o contrato com a Light, caso ela não retirasse os trilhos da Praça do Ferreira. Porém, a problemática era muito mais complexa, tratava-se, além da questão da referida praça, uma discussão sobre o monopólio dos transportes urbanos. Era uma estrutura arcaica, para um capitalismo que “necessitava de concorrência”. Sem falar que a cidade estava se expandindo, a população aumentando, os subúrbios crescendo, e alargando a distância dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. O transporte não poderia ficar fora do projeto de modernização do Estado. Neste sentido, a intervenção do Estado no sistema de transporte se tornara inevitável. O que poderia variar seriam os aspectos dessa intervenção.

A última nota da prefeitura proibindo que viajem mais de 4 passageiros nos bondes da Light, não traz nenhum benefício a população. Ao contrário, acarreta prejuízos. As classes pobres não se utilizam dos ônibus, já pelo preço, que é mais caro, como também porque eles reclamam um traje mais descente. Resulta daí que o número de veículos, em determinadas horas do dia, é insuficiente para lotar os passageiros, e estes ficam naturalmente prejudicados com a nova invenção da prefeitura. Se tal providência é posta em prática com o objetivo de ferir a companhia inglesa, vá lá, nada temos a ver com isso. Acreditamos, porém, que não há de ser com esses processos que a municipalidade consiga que a Light retire os seus trilhos da Praça do Ferreira. (IDEM, 31/10/1933 p 01).

Existiam na época dois tipos de transporte que atendiam a maioria da população, os bondes e os auto-ônibus. Os bondes representavam o passado, o velho, com suas instalações antigas, serviço precário, com excessivas reclamações dos habitantes da urbe. Já os auto-ônibus, surgiram como o moderno, mais novo, mais flexível, visto que não necessitava de trilhos fixos para se locomover. Mais rapidez no transporte do trabalhador para o seu serviço, refletindo as necessidades de uma cidade que crescia e se desenvolvia.
A contenda com a Light figurava, além da questão do monopólio dos bondes, a necessidade de substituir um transporte obsoleto por um mais moderno. Por isso, acreditamos que Raimundo Girão restringiu os números de passageiros dos bondes, com o seu intuito de diminuir a quantidade de lucro da empresa, e incentivar a propagação do auto-ônibus, uma vez que a Ligth detinha o monopólio dos bondes, mas não dos auto-ônibus. Raimundo Girão também estava consciente da difícil fase que passava a empresa inglesa, pois a maioria dos países ainda estava, de maneira lenta, se recuperando da crise de 1929, e a Light não era “imune” a essa situação.

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul
Ônibus Ford - V8, ano 1936, carroceria de madeira,
fabricado em Fortaleza.
Pensará a municipalidade que Fortaleza é um ótimo campo de exploração para os serviços de transporte a cargo da empresa inglesa? Jornais de Londres anunciam, conforme estamos informados, exatamente o contrário. Dizem que as ações (debêntures) da Light, cujo valor nominal é de 100, estão sendo cotadas na bolsa da capital inglesa ao preço de 24,5. A notícia, a ter o fundamento que á mesma atribuímos, demonstra eloquentemente que a companhia estrangeira não está disposta a agravar uma situação já precária. Se a prefeitura quer tirar os trilhos da Praça do Ferreira sem ônus para empresa, deve fazê-lo. Sobrecarregando a companhia de maiores despesas é que não vai, salvo medidas vexatórias que de certo não hão de ser lá muito aconselháveis....(IBIDEM, 07/11/1933 p 01).

Fortaleza em 1930
Os auto-ônibus na Guilherme Rocha
Diante do texto do jornal, é quase certo que o prefeito sabia exatamente como andava a companhia, o que justificava ainda mais as suas medidas antilucrativas para com a empresa. Além do mais, o próprio jornal já modificou o seu discurso, edulcorando um pouco a linguagem, pois, “se a prefeitura que tirar os trilhos da Praça do Ferreira deve fazê-lo”, mas sem acarretar um “ônus” para empresa. Porém, era provavelmente esse ônus o alvo de Raimundo Girão. A Light passou muito tempo sem investir em equipamentos novos e renovação da frota, sem falar que “trilhos” não combinavam com o projeto urbanístico do governo. A relação de tensão da prefeitura com a companhia era bem mais complexa do que se supunham os periódicos da época, pois representavam dois projetos antagônicos, em várias dimensões: monopólio/concorrência; bondes/auto-ônibus; trilhos/pavimentação em concreto; e todas essas contradições tinham como pano de fundo o projeto de modernização do Estado. O que convergisse para o desenvolvimento do projeto seria mantido, ao mesmo tempo em que, os obstáculos seriam “extirpados” do meio do caminho da “modernidade”.

Capital cearense na década de 30. Arquivo Nirez
¹ “Concessionária do serviço de luz, força e viação elétrica no município de Fortaleza, a The Ceará Tramway, Light and Power C, Ltda, tem seu escritório na Rua Barão do Rio Branco nº 844. Tem como gerente o Cel. Francis Reginald Hull, e sub-gerente o Sr. João Batista de Paula. A extensão atual de sua linha é de 20 kms, tendo 38 bondes no tráfego, e 11 auto-ônibus. O número de passageiros transportados, nos bondes, no último ano 16.800.000, em ônibus 2. 160.000. Tem 7.200 consumidores de luz, e 480 de força”. Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 257


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Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

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