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Acervo Assis Lima |
Um dos primeiros a fincar residência no lugar posteriormente conhecido como
Benfica, foi o português-açoriano
João Antônio do Amaral. As escassas fontes
“contam” ser ele comerciante, natural do arquipélago de
Açores, depois habitante da aldeia de Benfica, atual bairro de
Lisboa.
Viera fugido de perseguição religiosa? Estaria sendo ameaçado por credores? Teria tido uma desilusão amorosa? Desconhecidas são as razões da migração extemporânea deste patrício para terras fortalezenses.
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Grupo Escolar do Benfica em 1960 - Isabel Goulard |
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Foto de 1976. Alunos deixando o então Colégio Paulo VI. Nesse local já funcionou o Matadouro Modelo. Em frente a lagoa do Taupe, aterrada para o surgimento do bairro Benfica. Acervo Lucas |
O fato é que o Benfica de
Portugal e o Benfica de
Fortaleza têm histórias muito parecidas. O de Portugal era uma aldeia de camponeses da região
Saloia. No século XV, foi promovida à sede de julgado do Termo de Lisboa, contando com dois juízes privativos. Algumas ordens religiosas se instalaram no local, sendo as mais importantes as
Irmandades de Nossa Senhora do Amparo,
Santo António e
São Sebastião. No século XVIII, a região começa a atrair pessoas de classes abastadas. Seduzidas pela beleza da paisagem; ali se instalam em quintas, muitas das quais integram hoje o patrimônio histórico lisboeta.
Com o nosso
Benfica não foi diferente. Em Fortaleza
Belle-Époque, o historiador
Sebastião Rogério Ponte enfoca o processo do embelezamento da capital cearense, ocorrido a partir dos fins do século XIX, nos moldes das reformas do
Rio de Janeiro e de outras cidades da época, por sua vez inspiradas no remodelamento de
Paris, promovido por
Haussmann entre 1852 e 1870.
Enriquecida com o comércio de algodão e cera de carnaúba, a cidade sofreu reformas que disciplinaram os espaços públicos: praças e passeios foram remodelados, surgiram equipamentos e prédios com arquitetura rebuscada onde predominavam elementos neoclássicos e art nouveau. Sobrados e casarões proliferaram nas outrora ruas
Formosa,
da Palma,
da Amélia,
das Trincheiras... No entanto, poucas décadas depois acabaria a lua de mel das elites com o
Centro. Começa então a debandada para o
Benfica,
Jacarecanga,
Aldeota, lugares considerados salubres e aprazíveis, longe da algazarra e da inconveniência dos mendigos, vendedores ambulantes, pedintes e outros tipos indesejáveis, segundo a ótica da elite fortalezense.
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Benfica - Avenida da Universidade. Acervo Assis Lima |
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Notícias da Fortaleza antiga |
Como já informado, em fins do século XIX, João Antônio do Amaral
“fundeou” aqui em Fortaleza sua chácara, dando-lhe o nome do bairro lusitano. Transportar nomes de
Portugal para o
Brasil era prática comum entre os
“portugas”. Talvez uma forma de amenizar as saudades da terra que deixaram pra trás, de se reinventarem em seus banzos e delírios colonizadores. No
Ceará, temos muitos exemplos: os municípios de
Crato;
Sobral;
Viçosa; os antigos
Monte-Mor, o Velho (atual
Pacajus) e Monte-Mor, o
Novo da América (
Baturité);
Soure (
Caucaia); e outros que me escaparam à memória. Temos ainda as localidades de
Espinho (em
Limoeiro do Norte) e
Arronches (atual bairro de
Parangaba, em Fortaleza).
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Notícias da Fortaleza antiga |
Em meio ao mangueiral oriundo de mudas trazidas talvez de
Goa, talvez de
Cochim – no sonhado e achado caminho das
Índias –, João Amaral fincou sua chácara, demarcando seu
“bem-ficar”*. Tinha o projeto de construir ali um templo consagrado à senhora dos Remédios, mas seus anos findaram antes. A tarefa acabou sendo executada por sua esposa,
Maria Correia do Amaral, zelosa no cumprimento do desejo do marido.
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Bonde prefixo 126, Benfica, lotado em 1940. Acervo Lucas |
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Igreja N. S. dos Remédios |
João Nogueira, em
Fortaleza Velha, não faz menção à chácara de João Antônio nem ao Benfica português. Nos capítulos em que escreve sobre o
Benfica, ressalta que a elite fortalezense queria um lugar para “bem-ficar”, atribuindo a isso a origem do nome do bairro. O fato é que a região, ocupada desde fins do século XIX – inicialmente por poucas chácaras –, experimentou rápido crescimento. Num processo similar ao da grande maioria dos municípios cearenses, o bairro Benfica teve em uma igreja – no caso, a de
Nossa Senhora dos Remédios – a principal referência aglutinadora. No entorno do templo foram se construindo moradias, surgindo novas ruas, vielas, caminhos. Tanto que nas primeiras décadas do século XX o bairro já estava bem povoado. No
Boulevard Visconde de Cauipe, hoje
avenida da Universidade, palacetes, sobrados e casarões de variados estilos arquitetônicos competiam em beleza e imponência. O memorialista
Vanius Meton Gadelha Vieira nos conta em
Ideal Clube – História de uma sociedade que nas vizinhanças da
Igreja Nossa Senhora dos Remédios localizava-se o ponto terminal da linha de
bondes do Benfica, no fim da avenida Visconde de Cauipe, atual Avenida da Universidade. A partir deste trecho, começava o
Caminho de Arronches, atual bairro de Parangaba, onde passava boi, boiada e tanta coisa mais nos rumos da serra e do sertão. Posteriormente pavimentado, esse caminho passou a se chamar
“estrada de concreto”, denominada em 1930 de
avenida João Pessoa.
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Cartão postal do Benfica no início do Seculo XX. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz |
Os bondes desaguavam em frente à
igreja dos Remédios, de onde voltariam para o ponto principal na
Praça do Ferreira. Em
Coisas que o tempo levou,
Raimundo de Menezes nos conta que o último bonde – uma espécie de corujão ainda puxado a burros – saía do
Benfica para a Praça do Ferreira às 21h30m. Quase não havia passageiros nesse horário. Os muares é que decidiam pela hora da partida, alertados pelas batidas do relógio da
Intendência, localizado nas cercanias da
coluna da hora, sua rival instalada na Praça do Ferreira em 1932. A essa altura, os dois funcionários do coletivo – boleieiro ou condutor e ajudante – dormiam o sono dos justos. Depois dos bondes puxados a burro, vieram os elétricos e, finalmente, as linhas de ônibus. Inicialmente somente circulavam no Centro, estendendo-se posteriormente ao
Benfica e ao vizinho bairro do
Prado, onde hoje se localiza o
Estádio Presidente Vargas.
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Casa de cultura Francesa no Benfica. Acervo MAUC. Foto do início dos anos 60 |
A década de ouro do Benfica parece ter sido a de 1930. Chácaras com quintais ensombrados por filas de mangueiras, jardins magníficos e ruas pavimentadas compunham um cenário bucólico e tranquilo, tão caro à elite da época. A senhora
Beatriz Filomeno Gomes, em entrevista concedida ao
Diário do Nordeste, destaca que o Benfica era
“o bairro mais rico de Fortaleza”. Essa época áurea correspondeu com a presença da família
Gentil no bairro. A partir do palacete que deu origem ao atual prédio da
Reitoria, o domínio desse clã consolidou-se a ponto de criar um enclave dentro dos limites do Benfica – a
Gentilândia. Os limites não oficiais desse sítio são as atuais avenidas dos
Expedicionários,
13 de maio, da Universidade e
Eduardo Girão. A partir do
palacete José Gentil foram construídas vilas de casas para aluguel, além de outros casarões.
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Final da linha do Bonde do Benfica e o início da Avenida João Pessoa. Acervo Carlos Augusto |
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Avenida da Universidade vendo-se ao longe o bonde Benfica |
O “feudo” dos Gentis tinha identidade muito bem delineada, a ponto de demarcar local no imaginário da população. Além das mansões e palacetes, tinham clube social e time – o
Gentilândia Atlético Clube. Fundado em 1934, chegou a disputar o campeonato da
Associação Desportiva Cearense, competindo em pé de igualdade com os grandes da época. No
Clube Social Gentilândia aconteciam festas dançantes, matinês e piqueniques à sombra das frondosas mangueiras. Na atualidade, muita gente ainda considera Benfica e Gentilândia bairros diferentes. Oficial, porém, só a nomeação da praça principal do Benfica, que preserva original campinho onde os peladeiros de plantão são obrigados a driblar as mangueiras majestosamente fincadas no campo.
Outras famílias da elite fortalezense da época também se fixaram e escolheram o bairro para fincar suas mansões. Mas nem só de glamour vivia o Benfica. Casas geminadas, bem mais modestas, iam preenchendo as ruas com suas portas avarandadas, janelas e gradis. Por vezes uma entrada lateral espremia um jardim singelo: pés de jasmim-de-leite, rosa-prata, boa-noite. Nos tacos de terrenos menos disputados, vulneráveis a alagamentos ou na beirada dos caminhos iam multiplicando-se casinhas modestas, amparadas umas nas outras em solidário cinturão de cores desmaiadas. Feirantes, lavadeiras, engraxates, cambistas, ambulantes vão demarcando seu lugar no bairro, criando enclaves, sítios, territórios alguns dos quais ainda sobrevivem.
Continua...
*A origem da toponímia do bairro português tem diferentes versões circulantes na tradição oral. Reconto aqui a do cronista Fernão Lopes, anotada no livro Crónica de El-Rei D. Pedro I: Maria Rousada vivia na aldeia de Benfica. Era casada, mas antes do matrimônio, o marido a “rousara” – termo correspondente a estuprara –, vindo daí o apelido “rousada”. Apesar da violência sofrida inicialmente, consta no relato de Fernão Lopes que Maria e o agressor, agora marido, viviam em harmonia – o casal e os vários filhos que tiveram. O crime de estupro, no entanto, era motivo de condenação à morte no Portugal da época. Mesmo tendo o agressor desposado sua vítima, não o isentava de tal punição. Mas como nunca tinha havido denúncia alguma, o marido de Maria ficara impune.Anos se passaram. O assunto era quase sepultado, quando um dia o Rei, em visita a aldeia, ao ouvir o nome da tal mulher ficou curioso e perguntou o motivo do apelido. Os aldeões contaram-lhe a história e imediatamente o soberano exigiu que a lei fosse cumprida, ordenando o enforcamento do esposo da Maria Rousada. A mulher e os filhos rogaram em vão por clemência. Chegado o dia da execução, foi grande a comoção de Maria e seus rebentos, carpindo dolorosamente em cortejo ao condenado. O chororô foi tanto que chocou alguns membros da comitiva real; chegaram a insinuar que o Rei teria sido rigoroso demais. Condoeram-se pela mulher, comentando o quanto ela ficara mal. O Rei não apreciou ser contestado (como todo rei), e em resposta disse: “BEM FICA!”. Arranjou um casamento para Maria Rousada e deu-lhe um dote considerável, de modo que ela e seus filhos “bem ficaram”. E a partir desse evento, o lugar passou a ser conhecido pelas palavras proferidas pelo soberano: “BEM FICA”.
Benfica / Arlene Holanda.- Fortaleza: Secultfor, 2015. (Coleção Pajeú)
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