domingo, 2 de dezembro de 2018

Os Jardins de Fortaleza II

Nos jardins de Fortaleza, os cata-ventos estavam geralmente associados a caixas d’água metálicas, adquiridas provavelmente de países europeus como parte do rico universo de edificações, instalações, equipamentos e componentes arquiteturais importados em massa por países latino-americanos em processo de urbanização a partir do século XIX. Esses reservatórios d’água “destinavam-se à irrigação dos jardins públicos por gravidade” e “formavam binário com cata-ventos destinados a elevar a água das cacimbas adjac
entes”. (T. Lindsay Baker - 2012, p. 120).
 

Nos Estados Unidos, embora predominantes no contexto rural, cata-ventos eram instalados em áreas urbanas em várias partes do país, já que governos locais financiavam a escavação de poços e a construção de moinhos para uso público. Cavalos e mulas usados em meios de transporte anteriores à era do automóvel demandavam consumo regular de água, de modo que “próximos aos poços construíam-se cochos de concreto, madeira ou aço com lados de altura apropriada para os animais beberem confortavelmente”. (Cf. ibidem, p. 120).

Esse sistema foi registrado no país a partir do final do século XIX e desapareceu após a década de 1920, com a era do veículo automotor. As imagens que o autor T. Lindsay Baker fornece de distritos urbanos dos Estados Unidos - Kansas City, no Kansas, e Ruskin e Farnam, em Nebraska - mostram poços e moinhos semelhantes às cacimbas e cata-ventos de Fortaleza, mas nenhum deles instalado em jardins. Tais ilustrações - entre outras de San Diego, na Califórnia, e Canyon, no Texas - retratam cochos, carroças, vias sem pavimentação e áreas livres cobertas por terra, sem tratamento paisagístico, indicando que os moinhos bombeavam água para os animais ou para a população, mas não para a irrigação de jardins públicos.


Em Fortaleza, a exemplo do que ocorria em áreas urbanas dos Estados Unidos, a municipalidade era responsável pela instalação e manutenção de cata-ventos em logradouros públicos, segundo consta na seção de finanças municipais sob a rubrica “conservação de cataventos e motores” no Anuário Estatístico do Estado do Ceará relativo aos anos de 1922, 1923 e 1924.

No entanto, no começo do século, ao comentar a seca de 1900, Raimundo Girão afirma que, àquela época, Fortaleza revelava uma “simplicidade provinciana de praças ainda sem jardins, antes monótonos quadros de pastagem do gado à solta”. Naquele tempo, a cidade contava com o Passeio Público, mas ainda não haviam sido ajardinadas as praças do Ferreira e Marquês do Herval, o que veio a ocorrer entre 1902 e 1903.
 


Sobre a Praça do Ferreira, diz Gustavo Barroso (1888-1959) que, durante a seca de 1877-1879, foi aberta em seu centro uma cacimba em pedra lioz para provisão d’água, ao lado da qual se instalou “um chafariz do sistema que os franceses denominavam fontaine Wallace”. Essa peça parece ter sido substituída posteriormente, já que, na época de seu ajardinamento, em 1902, a praça dispunha de cata-vento e caixa-d’água e bacias para irrigação, conforme postagem anterior.

Até então, a Praça do Ferreira era um antigo areal chamado Feira Nova com um “cacimbão no centro”, ponto de parada dos comboios vindos do interior, a que se mostrariam úteis “as mongubeiras e as castanholas floridas, enchendo o solo da frescura das sombras doces e dos frutos gostosos”, bem como a água da cacimba, em palavras de Raimundo de Menezes (1903-1984).

É possível que cacimbas perfuradas para obtenção d’água doce tenham sido aproveitadas quando do ajardinamento de praças, dotadas de cata-ventos e reservatórios. Segundo Liberal de Castro, escavavam-se cacimbas de uso público no ponto central das praças, que, uma vez “ajardinadas, ganhavam caixas-d’água e cataventos, instalações usadas na elevação e na rega dos jardins”.



Contudo, segundo iconografia da época, a Praça General Tibúrcio, ajardinada entre 1913 e 1914, não tinha cata-vento, de modo que desconhecemos quais teriam sido as soluções adotadas para sua irrigação. Por sua vez, a Praça José de Alencar (hoje Waldemar Falcão, que não deve ser confundida com a atual José de Alencar, antiga Marquês do Herval), embora não ajardinada, era dotada de um cata-vento e de um reservatório, além de um chafariz.


Dessa maneira, supomos que a água bombeada pudesse servir para o consumo dos moradores ou dos animais que trafegavam na cidade anteriormente à popularização do automóvel ou vinham do Sertão - nesse último caso, assemelhando-se ao que ocorria em localidades urbanas dos Estados Unidos.
A partir dos anos 1930, a iconografia urbana da capital cearense, nela incluindo-se as fotos do Álbum de Fortaleza, de 1931, mostra que os logradouros urbanos não mais possuíam cata-ventos. Naquela época, a cidade já dispunha do novo serviço de abastecimento d’água, o qual compreendia captação, adução por tubulação, armazenamento em duas caixas d’água localizadas na Praça Visconde de Pelotas e rede de distribuição.

Esses reservatórios eram remanescentes da década de 1910, pois coube ao governador Antônio Pinto Nogueira Accioly (1896-1900, 1904-1912) iniciar as obras do sistema de abastecimento d’água, o qual foi inaugurado somente posteriormente, na gestão estadual de José Moreira da Rocha (1924-1928).62 O novo serviço, todavia, tinha “capacidade de abastecimento parcial à população”.



Fotos daquela época indicam que, se por um lado os cata-ventos já haviam desaparecido das praças ajardinadas, sua existência resistia nos quintais das casas, pois ainda deviam desempenhar importante papel no fornecimento d’água para o consumo doméstico. Segundo Emy Falcão Maia Neto, em 1927, os cata-ventos continuavam sendo anunciados pelas funilarias, sinalizando que faziam “circular água aonde a rede ainda não chegava ou como uma fonte alternativa para fugir dos preços cobrados”.


Naquela década, após a reforma completa que lhe foi imputada, em 1925, no governo do prefeito Godofredo Maciel (1924-1928), a Praça do Ferreira, que antes possuía cata-vento e caixa-d’água, aparece destituída de ambos em fotos da época. Tais imagens ainda deixam ver a presença de fícus-benjamim  no contorno da praça, exemplificando o plantio de espécies arbóreas resistentes, conforme postado anteriormente.


O desaparecimento do sistema de irrigação por moinho eólico também se verifica na Praça José de Alencar. Em 1929, em seu espaço central, antes ocupado por pavilhão, cata-vento e reservatório d’água, foi instalada a escultura do escritor que nomeia o logradouro.


Portanto, admitimos que os anúncios veiculados pelo jornal O Povo entre 1928 e 1930 e antes referidos ofereciam, de fato, cata-ventos usados, tendo particulares como possíveis interessados. Esse é um marco cronológico razoável para o seu desaparecimento dos jardins públicos da cidade, ainda que permanecessem nas propriedades privadas.


Leia também a Parte I

Créditos: Aline de Figueirôa Silva (Arquiteta e urbanista) - Artigo: À procura d'água: cata-ventos americanos nos jardins de Fortaleza, Folha do Litoral de 1918, Jornal A Lucta de 1922, Jornal A Razão de 1931, Jornal A Ordem de 1930, Revista do Instituto do Ceará de 1899, Arquivo Nirez, Arquivo Fortaleza Nobre e Museu da Imagem e do Som.