segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Crônica O telefone

O telefone chegou ao Brasil em 1877. O primeiro aparelho foi fabricado nas oficinas da Western and Brazilian Telegraph Company, especialmente para D. Pedro II. Foi instalado no Palácio Imperial, no Rio de Janeiro. Dois anos mais tarde, em 15 de novembro de 1879, era feita a primeira concessão para estabelecimento de uma rede telefônica no Brasil. Quem ganhou a concessão foi Charles Paul Mackie. Mais um ano, e estava formada a primeira companhia telefônica nacional, a Telephone Company of Brazil, criada em 13 de outubro de 1880. Em 1883, a cidade já tinha cinco estações de mil assinantes. A primeira linha interurbana também é de 1883. Ligava o Rio de Janeiro a Petrópolis. A novidade logo se espalhou para o resto do País. A primeira concessão para outros estados foi realizada em 18 de março de 1882. Foram atendidas as cidades de São Paulo, Campinas, Florianópolis, Ouro Preto, Curitiba e Fortaleza
 
"Tem dia que amanheço com vontade de escrever, conversar, contar histórias hilariantes de quando eu era bem jovem e também algumas até depois de adulto bem entrado nos "junhos". Este tal de computador em muito colabora para isto. Por falar em computador, lembrei-me da internet, que coisa boa, fantástica! No meu tempo de jovem não havia nada disto, para se escrever era no lápis ou na máquina de escrever. lepo, lepo, lepo...
Vocês bem sabem, a comunicação era feita através de telegramas, cartas e até recados, era tudo muito demorado, mas já havia naquele tempo os tataravôs dos internautas. Era o "correspondente", a gente se correspondia com moças do Rio de Janeiro, de São Paulo, do Rio G. do Sul, e de muitas outras plagas, era "chique". Acredite, este vai e vem de cartas deu até casamento... Eu mesmo conheço um caso. Telefone, pelo menos do meu conhecimento só prestava mesmo o local. Lembro-me que havia aqui em Fortaleza uma empresa estrangeira, parece que seu nome era "International" (ITT)*, que fazia ligações nacionais e internacionais. Certo dia, recebemos um telegrama via "Western" (companhia estrangeira de telegramas), de meu tio Neige, irmão de minha mãe que morava em Belo Horizonte "avisando" que ia telefonar dia tal, hora tal via ITT. Dia e hora aprazados, fomos lá, o papai, a mamãe e eu, para o posto da ITT lá na rua Castro e Silva, após quase uma hora de espera, por fim a porta se abriu e um jovem alourado meteu a cabeça para a sala de espera e respeitosamente disse:

-Mr. Júlio e senhora, cabine nº 1, "please" !
Eu achei aquilo muito bonito, ave Maria!

Lá se foram, entraram na cabine e aí começou a gritaria. Primeiro minha mãe, depois o papai. Eu quase fiquei preocupado... Por fim saíram, agradeceram ao "gringo" e já na calçada, meu pai parou e perguntou:

-Você entendeu alguma coisa?
-Quase tudo...E você?
-É... Entendi que ele vem em janeiro.
- Em fevereiro, Júlio!

Na nossa casa, ali na rua Tereza Cristina tinha telefone, era uma extensão da beneficiadora de sal, Usina União. De minha mãe lá pra casa, o nº era 4424. Tempos depois meu pai comprou um telefone para nossa residência, seu número, 8677. Aí estava, pelo menos para mim, se iniciando uma era de "contatos imediatos" com namoradas e amigos, se incluído ai os ''trotes", alguns famosos.

O tempo passou e quando eu já morava na Avenida do Imperador, certo dia recebi um telefonema de uma jovem, de voz muito meiga, dizendo ela que realmente não me conhecia e que havia "pescado" meu nome de um caderno de "disparate" de uma amiga, por que havia me achado interessante. Caderno de "disparate" para quem não sabe, era um caderno onde a proprietária do mesmo pedia para seus amigos e amigas respondessem ali, mil e umas perguntas feitas ao longo de inúmeras páginas, algumas até indiscretas para a época. Ser convidado para responder um caderno de "disparate" era uma verdadeira lisonja. E conversa vai conversa vem, estes telefonemas duraram muitos dias, o fato é que ela nunca me forneceu o número do telefone dela, sempre dando desculpas esfarrapadas que o pai ou os irmãos podia atender e isto podia complicar. Naquela época Fortaleza já possuía alguns "point" mais ou menos chiques: as tertúlias do Maguari aos domingos, as do Náutico durante as férias, dia de quarta feira. 

Fachada do Bar do Anísio. Acervo Roberto Aurélio
Na Beira-mar recém-criada, tinha os bares, o Bem, o bar do Anísio, o Baiuca, do meu amigo Nilbio Portela. Além destes, contávamos ainda com o Lido, restaurante muito chique e o Tony's, bar e sorveteria da moda. As praias eram a do Náutico, a "piscininha" da praia de Iracema e a do Lido. Pois bem, um belo dia esta jovem que se dizia chamar-se Suely telefonou-me e disse que ia sair com umas amigas para a casa de uma colega que estava aniversariando, e de lá iriam dar uma esticada até o Anísio, e perguntou se eu não queria ir até lá para nos conhecermos. Estranhei um pouco, porque moça sair assim de turma era raro, mas a "liberdade" estava começando. Fui. Lá encontrei meu amigo Ferraz. Estava só, sentei-me com ele e pedi uma dose de cuba libre, e logo passei a relatar o motivo de minha presença ali. Não demorou muito chegou um grupo de moças e ocupou uma mesa não muito longe da nossa. Aí o Ferraz disse:

- Não olhe agora, mas na mesa logo ali ao lado acaba de chegar umas seis moças.
-Que tal elas são?
- Não dá pra ver, mas são pessoas de "linha".

Logo começaram a nos observar e a rir, no que nós correspondíamos. Não demorou uma delas levantou-se, e o Ferraz observou:

- Lá vem ela!
Dei uma olhada de relance e logo fiz a análise: não era nada daquilo que ela falou, embora tivesse um rosto simpático. Era determinada. Acercou-se de nós e atacou:

-Qual de vocês dois é o Clóvis?
Meu companheiro adiantou-se e disse:
- Eu sou o Ferraz.
E mais rápido do que imediatamente eu me apresentei:
- Eu sou o Paulo.

A jovem pediu desculpas e foi se afastando, quando o Ferraz que era bastante enxerido, disse:

- Se você quiser mudo de nome... Ela se deu calada por resposta.

Depois ela ainda ligou umas duas ou três vezes, justifiquei minha falta ao encontro e disse que ia viajar para o sertão onde ia passar as férias. Foi a última vez que conversamos.

Depois desta e de outras mais, eu prefiro ficar sonhando como o Nelson Gonçalves em Escultura:

"Cansado de tanto amar, 

Eu quis um dia criar
Na minha imaginação, 

Uma mulher diferente,
De olhar e voz envolvente 

Que atingisse a perfeição.

Comecei a esculturar 

No meu sonho singular 
Essa mulher fantasia.
Dei-lhe o nome de Dulcinéia, 

A malícia de Frinéia,
E a pureza de Maria,

Em Gioconda fui buscar
O sorriso e o olhar,
Em Du Barry o glamour. 

E para maior beleza
Dei-lhe o porte de nobreza
De madame Pompadour.

E assim de retalho em retalho
Terminei o seu trabalho, 

O meu sonho de escultor 
E quando cheguei ao fim 
Tinha diante de mim,
Você, só você meu amor".

Conselho de amigo experiente: nunca arrisque encontros respaldados na descrição que a pessoa faz de si mesma, ou na imagem que você formou da pessoa a ser encontrada. É melhor ver para depois marcar o encontro.

Clóvis Acário Maciel





*Firma americana International Telephone & Telegraph (ITT).

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Bar do Anísio

Anísio fazia as vezes de garçom, cozinheiro,
cobrador, jogador de cartas e, principalmente, pai. Além dos cinco filhos biológicos, assumiu a paternidade de um sem número de jovens que iam diariamente ao bar, o qual também era a casa de Anísio, em busca de um espaço acolhedor e libertário.

Eu reconheço pela praia. Se eu for andando pela praia, eu sou capaz de saber: o Anísio era ali. Mas, se eu for olhando pelos prédios, eu não sei.
Fausto Nilo

 
Eu vejo aquele pé de oiti e é a minha referência. Lembro-me muito bem de que a gente sentava no Anísio e o pé de oiti estava um pouco à esquerda. Pé de oiti grande que ainda está lá.
Flávio Torres




É exatamente... Hoje, tem o Edifício Trapiche no lugar onde era o Restaurante Trapiche. Se você estiver olhando para o mar, ele ficava logo à esquerda desse prédio.
Guto Benevides

No estacionamento do Edifício Scala. A entrada do estacionamento era a entrada da casa. É tanto que tem uma árvore na frente que é a história da gente.
Nísia Muniz (filha de Anísio)

Sabe onde tem o Scala? Era por ali. Tem um transformador grande da Coelce. Era ali colado na casa dele.
Rodger Rogério




Era o ano de 1958. A cidade de Fortaleza começava a deixar antigos costumes para tornar-se grande, ampliando as fronteiras do Centro em direção ao mar. O Porto do Mucuripe comemorava o quinto aniversário da atracação do navio Vapor Bahia – a primeira de muitas. O Iate Clube completava quatro anos de vida e festas. Iniciava-se um período de movimentação na Beira-Mar. A região, antes vista com preconceito, povoada por pescadores e prostitutas, passou a ser visitada pela alta sociedade, que se hospedava em pequenas casinhas na areia durante as férias.



Foi nessa Beira-Mar em construção, mistura de casas de veraneio e jangadas, que a família Muniz escolheu morar. No final da década de 1950, Anísio Muniz de Souza e a esposa, Maria Augusta Pessoa Muniz (dona Augusta), tinham quatro filhos. Nísia, caçula na época, tinha apenas dois anos e uma recente coqueluche. Para que a menina ficasse boa logo, a prescrição do médico foi categórica: pelo menos um banho de mar ao dia. Anísio passou a visitar diariamente o irmão Cristovão, que morava na Beira-Mar havia algum tempo, como desculpa para acelerar a cura da filha.

As idas, porém, tornaram-se cansativas. Sair do bairro Parque Araxá para ir à praia era quase uma viagem diária. Anísio ainda trabalhava como ascensorista do Edifício Diogo, o que tornava a viagem mais longa: da casa no Parque Araxá à Beira-Mar, da Beira-Mar ao Centro, do Centro à casa novamente. Todo o percurso sem carro. Mas Nísia
melhorava aos pouquinhos e deixar de levá-la para banhar-se no mar não era alternativa. Os pais decidiram, então, mudar-se para uma casa próxima à de Cristovão e morar na beira da praia.



Em pouco tempo, a coqueluche deixou o corpo de Nísia, e a vida no novo bairro tornou-se prazerosa para a família. O mar perto de casa, a maresia entrando sem pedir licença, vizinhos que se convertiam em amigos. Entre eles, donos daquelas casas de veraneio. Homens que durante a semana também frequentavam o Edifício Diogo a negócios.

– Bom dia, seu Anísio. Vou pro terceiro andar. O senhor está morando na Beira-Mar agora, né? Eu costumo passar as férias lá, com minha família! O que faz falta é um lugarzinho bom para comer por ali, viu? A sua esposa cozinha bem, não é? Já ouvi maravilhas da comida dela! Por que vocês não começam a vender uns salgadinhos por ali? Garanto que eu e muitos amigos iríamos! Vou ficando por aqui, Anísio. Bom dia!


Dona Augusta, que adorava cozinhar e o fazia com maestria, gostou da ideia. A venda de alguns pratos certamente ajudaria na renda familiar. Começou fazendo croquete. A cabeça de lagosta, dispensada pelos pescadores que só aproveitavam a cauda, servia maravilhosamente para rechear o salgadinho feito com esmero por Augusta. Tapioca,
café e água de coco também compunham o cardápio da cozinheira.
Os amigos do Edifício Diogo passaram a visitar o Anísio. Sentavam-se na varanda da casa e deliciavam-se com os quitutes de dona Augusta. 



Um dia, entre uma mordida e outra na tapioca com manteiga, o amigo Valdir Peixoto pediu: 

“Anísio, bota uma cervejinha quando a gente vier aqui”

O pedido era pertinente. O movimento estava crescendo e gerando até certo lucro para a família, que agora contava com uma nova integrante: Maria da Graça, a caçula. Vender cerveja com certeza atrairia mais clientela ao local. Havia apenas um empecilho: a família não tinha uma geladeira apropriada para colocar a bebida.

– Não tem problema! Eu compro a geladeira e trago os amigos. – disse Valdir.
Em 1961, junto com a pequena Graça, nascia o bar e restaurante O Anísio – Peixada – popularmente conhecido como Bar do Anísio. Algumas mesas de madeira na varanda da casa, com chão de tijolo vermelho. Era ali que os amigos se reuniam para conversar, comer e agora beber uma cervejinha gelada, com vista privilegiada para o mar.




O início dos anos 1960 foi também o início da gestão de Parsifal Barroso. Durante o mandato do governador do Ceará (1960-1963), o arquiteto Hélio Modesto foi contratado para elaborar o Plano Diretor de Fortaleza. Nele, estava prevista a construção de um sistema viário que conectaria as diversas regiões da cidade. O projeto não teve continuidade, a não ser pela pavimentação da Avenida Beira-Mar. Responsável por ligar a região do Mucuripe à Barra do Ceará, a via foi construida com investimentos dos setores público e privado.
Assim, iniciava-se a urbanização da Beira-Mar, que mudaria por completo a paisagem e a história da cidade. O imenso areal, cheio de casinhas de taipa, foi ocupado por máquinas e trabalhadores. A obra, feita em etapas, durou cerca de cinco anos. A avenida foi inaugurada
em 1965, convidando os fortalezenses a colorirem a beira da praia com seus fuscas.





Bar que também era casa

O Bar do Anísio ficava na parte da frente da casa. Na cozinha, dona Augusta fazia delícias gastronômicas para os fregueses e também as refeições da família. “Da cozinha pra frente, era o bar. Para trás, era a casa. Mas a nossa casa era tudo, porque a gente vivia mais no bar do que na casa”, rememora Nísia.


Os limites de público e privado eram nebulosos, quase inexistentes. Se para Nísia e os demais filhos de Anísio o bar também era a casa, para os frequentadores assíduos não era muito diferente. A sensação era a de estar em casa.



A intimidade com os donos era tanta que, muitas vezes, Anísio ia dormir e deixava o bar aberto. Em vez de expulsar a garotada, dava boa noite, pedia para separarem as cervejas que bebessem no canto e voltassem no dia seguinte para pagar. “Ele deixava o cadeado, a gente fechava o bar e no outro dia ia lá pagar”, lembra Flávio.

"Se um passasse mal, dormia por lá, sabe? Eles botavam uma rede nos coqueiros lá do outro lado. Aquele que capotava dormia e acordava de manhã com o Sol na cara." (risos) (Annuzia)
 

Sempre que alguém bebia além da conta, Anísio e Augusta cuidavam para que ninguém voltasse para casa dirigindo. Por isso, no quintal dos fundos, tinha uma rede preparada para receber quem precisasse dormir um pouquinho antes de pegar no carro. Alguns grupos tinham certa prioridade em relação aos demais. Fausto, Flávio, Rodger, Augusto, Annuzia, Maria Zélia e Marisa eram alguns dos jovens que sempre teriam vaga na redinha.



Tinham uns que a mamãe e o papai adotavam. Quando estava bêbado, ela
pegava a chave (do carro), guardava e não deixava sair de jeito nenhum. Não
eram fregueses, era gente da família. É tanto que todo mundo chamava ela (Augusta) de mãezona, de tia.
(Nísia)


As histórias que aconteceram ali são inúmeras. Muitas se perderam no tempo e na memória dos que viveram o bar. Outras, porém, permanecem guardadas na lembrança, inesquecíveis. Como o dia em que Rodger provou do chá de zabumba, grande novidade na época que
prometia alucinações.
 

Um dia, chegou um grupo de rapazes mais jovens no bar, comentando sobre a bebida. “Eu fiquei mangando deles: ‘Isso faz nada, rapaz! Adianta nada! Aí (eles disseram:) ‘Pois bebe!’. Aí eu bebi um bocado”, conta Rodger. Flávio recorda que, às três horas da manhã, neguim (como chama carinhosamente o amigo Rodger) atravessou a rua e foi para o lado da praia – em frente ao Bar do Anísio e ao lado do pé de oiti – experimentar o tal do chá.



Aí pronto. Não tinha quem fizesse ele voltar pra rua. O neguim lá sozinho, abraçado com esse pé de oiti. (risos) E não vinha, não vinha. O Rodger, com medo, disse que a rua era um buraco. Agarrado no pé de oiti e a gente arrastando. Um negócio doido essa zabumba. (Flávio)
(muitos risos) Não foi bem assim. Eu fiquei louco, completamente louco. Eu queria atravessar a rua, mas não conseguia, porque a rua ficou como se fosse água, ondulando. Os carros vinham e eu dizia que não conseguia passar com a rua ondulando daquele jeito. Eu não me agarrei ao pé de oiti, mas fiquei sentado do lado. (risos) (Rodger)

Rodger permaneceu do outro lado da rua até o dia clarear e ele se sentir “com forças” para deixar a companhia da árvore e atravessar a avenida. O pé de oiti era um grande (talvez o maior) espectador das noitadas do Anísio. Testemunha de todas as histórias do bar. A árvore
acompanhou o início de tudo, permaneceu de pé após a pavimentação da Beira-Mar e segue ali até hoje, guardando para si todas as histórias que presenciou.
 


Antes mesmo de Anísio mudar-se para o Mucuripe, a árvore já existia no mesmo local: em frente ao que se tornaria o bar, na fronteira da avenida com a praia. A diferença é que, antes de a família chegar à Beira-Mar, o oitizeiro ficava dentro de um terreno baldio rodeado de
lixo. Durante o calçamento da avenida, em 1960, esse pequeno monturo e diversas árvores também foram removidos – menos o oiti.

Ainda bem. Porque ela era muito linda. Linda, linda. A copa dela parecia um cabelo. O vento batia e ela se movia. É a única árvore que ficou ali. Lá em casa, tudo era ali (no oiti). Tomava-se café, botava-se a mesa lá. Aquele pé de oiti, se falasse, contava toda a história de tudo, de tudo! (Nísia)



Crédito: Livro Bar do Anísio - Casa de Liberdades de Isabela Bosi - 2012

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

O Pajeú vai despejar no...Poço da Draga

"O Riacho Pajeú, já nomeado Marajaik (devido a existência das palmeiras que ali cresciam), ou riacho das palmeiras, durante a invasão Holandesa, foi posteriormente chamado de Ipojuca e Riacho da Telha, antes de ser batizado com seu nome atual. Mesmo a grafia do nome atual mudou, de Pajehú, no início do século XIX para a moderna forma adotada nos primórdios do século XX.

Hoje o nome do riacho não aparece nas representações cartográficas de maior circulação, como guias turísticos ou mesmo o Google Maps. No Plano Diretor de Fortaleza apenas alguns trechos curtos do riacho são marcados e nomeados, ficando a maior parcela do curso d’água desassistida das leis. Também o curto trecho do Parque Pajeú vem assistindo à mudança de seu nome próprio. Há alguns anos, com a adoção do espaço pela Câmara dos Dirigentes Logistas, passou a ser mais popularmente conhecida como Praça da CDL."   (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)


Sempre que chove, alguns pontos da cidade vira um rio, mas o que muitas pessoas não imaginam, é que um riacho encontra-se sufocado, desmatado, impermeabilizado e em boa parte, enterrado em um jazigo de concreto. Aterraram o riacho Pajeú e hoje, a natureza só está cobrando o que é seu de direito!

“Cobertos e esquecidos, antigos cursos d’água ainda correm através da cidade, enterrados em grandes tubulações, canais primários de um sistema de drenagem subterrâneo. Seu ruído abafado pode ser ouvido sob as ruas após uma chuva pesada; eles são invisíveis, mas sua contribuição potencial às enchentes à jusante não é, todavia, diminuída, e sim, aumentada.”(Spirn, 1995)

"Em um dia de forte chuva, as memórias da cidade são ativadas. Memórias de rios, de várzeas, de mato, dos terrenos baldios e dos alagados… Aquilo que parecia uma simples lembrança distante de um córrego inofensivo, rebaixado, contido e invisibilizado, ganha com a pressão da chuva a fúria titânica de uma enxurrada.


 

O rio subterrâneo do inconsciente vence as forças que o aprisionaram num porão de concreto e irrompe na superfície. O rio recalcado retorna na forma de doença – a água podre do Pajeú é regurgitada dos bueiros, as bocas de lobo vomitam o rio e as ruas são tomadas pela enchente, lixo, ratos, baratas e toda a fauna que lhe restou.

E como acontece a cada forte chuva, reaparecem junto com o riacho as mesmas imagens de carros boiando, de ônibus-anfíbios, pessoas ilhadas em altas calçadas…"  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)





Em 1918, começaram a canalizar o rio para "ajudar" no crescimento da cidade. Esse crescimento sem limites e sem um bom planejamento, atingiu o espaço do manancial. Na administração de Lúcio Alcântara, 3.360,00 metros do Pajeú foi canalizado e seu leito modificado, seu curso desviado e sua fauna e flora perdidos. O que vemos hoje, em nada lembra o rio que observamos no mapa (primeira imagem), que abastecia a pequena vila que crescia próxima a sua margem. Como legado de sua gestão, Lúcio Alcântara entrega a 1ª etapa do Parque Pajeú, entre a rua Pinto Madeira e a Avenida DomManuel. As obras realizadas compreendiam a canalização do tipo canal aberto em pedra arrumada e canal fechado em concreto armado, o que equivale à cerca de 70% da extensão das margens do corpo hídrico.




O texto, encontrado em: FORTALEZA: Administração Lúcio Alcântara (março 1979/maio 1982), avalia ainda o resultado das obras e o "benefício" atingido, especialmente na Zona Central:

 […] notadamente nas áreas próximas ao Parque Cidade da criança, e da zona de comércio atacadista da avenida Conde D’Eu. Repercussão expressiva é o efeito obtido para a humanização da Zona Central, através da realização da obra de drenagem, integrada à implantação do Parque Pajeú e às reformas do Bosque do Paço Municipal. Altamente beneficiadas foram, também, as áreas marginais à Avenida Heráclito Graça, no trecho entre a Avenida Barão de Studart e a Rua João Cordeiro, e as áreas marginais à Rua João Carvalho, entre a Avenida Barão de Studart e Barão de Aracati. (FORTALEZA, 1982)

E comemora que infere-se ser da ordem de 31.775 habitantes a população diretamente beneficiada por esta realização, sendo a superfície drenada através destas obras de 456,70 hectares.




Os desvios do leito original que estranhamente parecem ser tão difíceis de precisar ficam esclarecidos nesse trecho:

 No trecho compreendido entre a avenida Dom Manuel e o Paço Municipal, as obras de canalização do Riacho foram feitas parte em canal aberto, de menor vazão, sobre o leito original e parte numa variante desse percurso original, em canal fechado que se desenvolveu sob trechos das Ruas 25 de Março e Costa Barros. […] (FORTALEZA, 1982)

O texto indica também que o Riacho foi desviado de seu leito original para a Avenida Alberto Nepomuceno, desenvolvendo-se em canal fechado a partir do ponto em que atinge essa Avenida até o mar, no Poço da Draga



Diante de tudo que já foi dito, não podemos deixar de mencionar o caso do Edifício Pajeú (notem a homenagem😟), da Firma Carneiro e Gentil, atual prédio do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, inaugurado em 1949 com pompas e bênçãos. Pois bem, os proprietários  já haviam canalizado o riacho em seu lote (enterrando o rio sob bela lápide do edifício), fato lamentado pelo Engenheiro civil e sanitário Alcy Leitão em matéria no Jornal O Nordeste (LEITÃO, 1955), não pelo rio em si, mas porque tais intervenções impossibilitariam, como ficou muito claro nos dias correntes, a limpeza do fundo de vale, incorrendo em obstruções ainda mais problemáticas por não terem sido os canais calculados para a “medida justa” e resultando em alagamentos.

Com o crescimento da cidade para a Aldeota, o riacho foi sendo, como previa Leitão, sepultado em cada lote individual.

E o riacho vai sumindo gradativamente ...


No  Poço da Draga fica a desembocadura do riacho no mar: uma área alagadiça drenada por vários anéis de concreto, donde uma réstia de mangue permanece.
"Dezenas de documentos cartográficos desde o século XVII até o início do século XX apresentam claramente o traçado do riacho Pajeú. São mapas de engenheiros holandeses, franceses, portugueses, ingleses…são cartas de navegação, levantamentos para fins de exploração de minérios, localizações exatas para fins de defesas, plantas para planejamento, planos para execução de portos, projetos para expansão urbana."  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)



"Até os primeiros anos do século passado, os documentos mostram claramente o ponto em que o corpo d’água, hoje canalizado e escondido, faz uma inflexão à esquerda, após a quadra onde hoje se encontra edificado o Mercado Central, passando em frente ao Fortede Nossa Senhora da Assunção e depois correndo em direção norte até a foz. É de se notar que nos mapas mais antigos o Forte era banhado pelo oceano e que a área onde se encontram hoje tanto a INACE quanto a comunidade do Poço da Draga foram conquistadas do mar durante algumas décadas.


Por outro lado, os mapas da segunda metade do século passado tratam de não representar o percurso completo do riacho, que já estava canalizado, e, em alguns pontos, subterrâneo. Eles silenciam o riacho em prol do desenvolvimento urbano. Assim, gradativamente o Pajeú desaparece nos mapas recentes. Desaparece das imagens dos mapas. Desaparece do imaginário. O riacho que até além de 1850 era essencial a manutenção da vida na cidade, durante o século passado vai sendo convertido em uma cloaca máxima."  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)





"Já há algum tempo, alguns peritos, principalmente dos órgãos públicos e escritórios de planejamento, relatam uma certa controvérsia a respeito do trajeto e da localização da foz do riacho Pajeú. Essa controvérsia se deveria a falta de documentação para fundamentar qualquer alegação precisa em posse do Estado ou Município. Outros peritos ou intelectuais específicos vêm defender, com base num “rastro de vegetação”, a existência de um braço do Pajeú à direita da Av.Alberto Nepomuceno, de forma contrária a toda a documentação cartográfica ainda existente.





Se aceitarmos que o riacho mudou seu curso, podemos indagar que força geológica silenciosa e extraordinária poderia alterar a inflexão do riacho drasticamente em algumas décadas: segundo a teoria do Antropoceno, a era geológica atual seria caracterizada pelas modificações talvez irreversíveis que o homem provoca ao meio. (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)

A INACE possui mapas antigos que apontam do estuário do Pajeú. É possível observar  a canalização que mudou o curso dessa foz para a continuação da Av. Alberto Nepomuceno, mais de cem metros à direita do trajeto natural do leito do riacho, bem no centro da planta da indústria e condizente com o mapa de drenagem da cidade de 1992. O "outro braço" do rio passa dentro da comunidade do Poço da Draga,  a 500 metros do leito original e escoa para o mar, por baixo de um dos galpões da empresa.
O riacho mudou-se completamente para o território da comunidade, baseado nesse novo discurso de verdade, ignorando quase quatro séculos de documentos.


Créditos: Cecília Andrade (Arquiteta e urbanista, mestranda em Artes pelo PPGArtes – UFC), Anne Whistorn Spirn - O Jardim de Granito. A natureza no desenho da cidade.
Tradução de Paulo Renato Mesquita Pellegrino. São Paulo: Edusp, 1995, Livro O Siara na rota dos Neerlandeses, de J. Terto de Amorim. Disponível
AQUI.