terça-feira, 2 de abril de 2019

A expansão urbana de Fortaleza: O desinteresse da cidade pelo mar

Do ponto de vista histórico, Fortaleza teve seu crescimento urbano voltado em direção ao sertão. A faixa litorânea fortalezense passa dessa forma alguns séculos sendo ignorada pelos seus citadinos. O mar, ponto de início da colonização cearense, vem configurar-­se nos primórdios do crescimento da cidade, como um local fora de Fortaleza. Este curioso fato de rejeição do fortalezense ao mar deu-­se principalmente pela origem daqueles que chegaram. Fortaleza, até 1799 (ano do desmembramento do Ceará da Província de Pernambuco), era uma vila sem importância econômica. Destacavam-­se naquela época as vilas de Aracati, Icó, Sobral, Crato, Camocim, Acaraú e Quixeramobim. Isso se dava pelo motivo da principal atividade econômica da província ser a pecuária, com a exportação de carne, couro e animais de tração para a zona ­da ­mata nordestina. 



A Zona ­da ­mata começava a se dedicar ao cultivo da cana ­de açúcar, cabendo ao Ceará a venda dos produtos pecuários para a região. Dessa forma, é dado início a movimentação econômica interna no território cearense. Fortaleza vem crescer justamente a partir da elite oriunda do interior da província. Dessa forma, o mar passa a se configurar por muitos anos como um local esquecido, ausente de qualquer tipo de interesse do homem. Se utilizando das plantas históricas de Fortaleza, esta pesquisa vem analisar a expansão urbana da cidade, verificando as mudanças de olhares do fortalezense em relação ao mar e observando a tomada da ocupação do litoral. 



Analisando a consolidação de Fortaleza enquanto capital, Dantas (2002) afirma que a cidade nascera voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea, dado as relações no campo cultural e econômico da sociedade com o interior do Estado, configurando-­se dessa forma como uma cidade litorâneo ­interiorana. O litoral passa a ser vislumbrado pela sociedade fortalezense quando em busca de uma vida político ­econômica mais independente, a cidade apresenta-­se como ponto de exportação dos produtos produzidos no Ceará, notadamente o charque e o algodão, através do Porto, implantado em fins do século XVIII, nas intermediações da Praia do Peixe, atual Praia deIracema
A oferta de mercadorias para o exterior já era presente desde meados do século XVII nas principais cidades brasileiras, uma vez que vendiam seus produtos para a Europa e outras capitanias. 

A vila encontrava-se ainda sem infraestrutura básica para o surgimento da economia de exportação vigente em outras capitais. A ausência de um porto em Fortaleza, capaz de exportar os produtos produzidos no Ceará, levava o crescimento de outras localidades, portuárias, como Aracati e Acaraú, passando a colocar o Ceará na rota de exportação do algodão. Essa precariedade infraestrutural de Fortaleza é percebida a partir da análise da Primeira Planta da Cidade de Fortaleza, rascunhada em 1726 por Manuel Francês que apresenta a Fortaleza do início do século XVIII. Desenhada pelo capitão-­mor daquele período, a planta surge com o objetivo de apresentar à Coroa Portuguesa o domínio lusitano sobre a região. O brasão português sobre o forte e as dez cruzes espalhadas pelo desenho, com o objetivo de reforçar a dominação católica no local, vem como uma tentativa de mostrar características que favorecessem a elevação da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção à categoria de cidade. Percebem-­se nessa planta as poucas edificações presentes em Fortaleza, que contava com algumas dezenas de casas ainda não arruadas, o forte (ainda de madeira), uma igreja e um mercado. Nota-­se a provável inexistência do sobrado localizado a leste do riacho Pajeú, dado pelo fato de não haver nenhum relato que afirme a existência do mesmo e por ser um local apático à ocupação fortalezense da época. Essa construção serviria apenas como uma alusão ao crescimento de Fortaleza, proposto pelo capitão-­mor ao reinado português. 


O desinteresse pelo litoral já era percebido, dado pelas poucas edificações na área. Com a construção das linhas de vapores, que percorriam várias cidades do interior com destino à capital, surge as relações econômicas e sociais do sertão com Fortaleza. Outro fator favorecedor dessa ligação foi a construção do porto nas proximidades da Prainha (atual Praia de Iracema). Nesse sentido, Fortaleza toma um novo rumo. 


Na segunda metade do século XIX, Fortaleza toma de Aracati, responsável até então pela exportação dos produtos cearenses, o comando das relações comerciais de boa parte do Vale do Jaguaribe e Sertão Central, devido o estabelecimento das linhas de vapores diretamente para a capital. A planta da cidade de Fortaleza de 1850, organizada por Antônio Simões Ferreira de Farias, e há muito perdida, reencontrada nos dias atuais por José Liberal de Castro, vem reforçar a expansão da cidade para longe do litoral. A área litorânea mostrava uma ocupação irregular, quase espontânea, indicado no desenho de modo um tanto confuso, fato que teria motivado a contratação de Farias para organizar uma outra planta, unicamente referida aquela parte da cidade (CASTRO, 2005). 
Nota-­se também que o riacho Pajeú continuava a constituir uma barreira física à expansão para o leste, embora já estivesse aberta a rua do Norte (atual GovernadorSampaio), delineada por Paulet no começo do século. A rua Governador Sampaio passava a servir naquela época como eixo direto de um futuro crescimento de Fortaleza para o leste. 

Observando a planta de Simões percebe-se também um caminho cruzando o riacho próximo a foz. Essa estrada que vem ligar o litoral oeste do riacho Pajeú ao litoral a leste do mesmo vem a ser a estrada do Meireles (Mucuripe). Essa estrada, um simples caminho arenoso, atuais Rufino de Alencar e Monsenhor Tabosa, encontrava-­se com uma capela (Conceição da Prainha), cujas obras, iniciadas uma década antes, ainda estavam por completar. Desse ponto, a estrada continuava para o leste, atingindo o Meireles, de onde prosseguiu até o Mucuripe, desviando-­se das dunas (CASTRO, 2005). 


No detalhamento da planta de 1850, onde se destaca a Prainha, nota-­se a predominância da paisagem natural, composta por dunas e lagoas interdunares, tendo como sinal de ocupação a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o quartel da Fortaleza, a Tesouraria provincial e a Alfândega (capitania dos portos). 

O fato de a cidade instalar-­se no litoral permanecia sem contar muito na formação do imaginário social dos seus habitantes. Segundo Gustavo Barroso, o imaginário interiorano continuava a se legitimar por toda Fortaleza, até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar, faziam referência a presença do homem do sertão e de seus utensílios.

As zonas de praia em Fortaleza caracterizam-­se nesse período como área de escoamento dos esgotos da cidade, vindo a ser ocupada somente em fins do século XIX, com o surgimento das favelas, devido ao aumento do contingente de imigrante pobres do sertão. 



Com Fortaleza apontando como centro político-econômico do Estado, ela passa a despertar o interesse da elite cearense para a fixação de moradia. A urbanização de Fortaleza é também favorecida pela vinda dessa elite, pois com ela surge a necessidade de melhorias infraestruturais e de serviços na capital. 

Percebe-­se o incremento de equipamentos urbanos em Fortaleza, como a construção de um novo cemitério, a criação da Academia Francesa, a iluminação a gás carbono, entre outros. Surge também a Planta Topográfica de Fortaleza e Subúrbios, de autoria do engenheiro Adolfo Herbster. Integrante da diretoria de obras de Pernambuco, Herbster é cedido ao Governo Provincial do Ceará em 1855, sendo contratado pela municipalidade fortalezense. Dois anos depois, sendo solicitado para a elaboração de plantas da cidade. O urbanista traça um plano urbanístico de desenvolvimento para a cidade, dado pela necessidade de expansão àquela época, devida o aumento de sua população, que passa de uma população estimada em 1500 habitantes em 1800, para 16000 habitantes em 1863 e a 21872 em 1872. 


A referida planta possui um traçado xadrez com grandes boulervards, imitando o modelo parisiense implantado pelo Barão de Haussman, e já idealizado para as ruas da capital cearense cinquenta anos antes de Herbster, por Silva Paulet
Além de retratar a cidade, Herbster propôs sua expansão, elaborando cintas de avenidas, circulando o espaço urbano habitado, configurados através dos boulervards do Imperador, Duque de Caxias (logo prolongada para leste), e da Conceição (atual Avenida Dom Manuel), que comporia as vias de acesso à cidade, estabelecendo um modelo secção de vias urbanas em voga até os dias atuais. Dessa forma, percebe-­se que Herbster desprezou o arruamento proposto por Simões de Farias em 1850, evitando cortar o Pajeú em trechos centrais, já ocupados por residências. 


A proposta de expansão de Fortaleza por Herbster fez-se, portanto, pela continuação da Avenida Duque de Caxias, atual Avenida Heráclito Graça. Essa solução visava contornar o riacho cruzando pela Avenida Dom Manuel e suas paralelas, em trechos já distantes da foz. 

Essa nova proposta de expansão da cidade para o sul e para o leste, reforçava o desinteresse de fixação de moradia na faixa de praia pela classe abastada. Nesse período, algumas das mais importantes edificações da cidade foram se instalando próximo ao Forte de Nossa Senhora da Assunção. O Passeio Público, a Santa Casa de Misericórdia, a Penitenciária e a Estação da Estrada de Ferro terminaram por formar uma barreira entre a cidade e o mar, afirmando o desinteresse de uma possível urbanização do litoral. O acesso à praia tornava-­se mais difícil, já que somente o Passeio Público tinha suas vistas voltadas para o mar. É importante ressaltar que mesmo com o Passeio Público estando voltado em direção ao mar, isso não leva a crer numa possível tomada de consciência da sociedade para o mar, já que o andar em que se encontrava mais próximo da praia era reservado aos pobres e miseráveis (o Passeio Público possuía três andares representados pelas classes sociais da época). 




O desinteresse dado pela faixa praiana fortalezense resultava na distribuição de serviços insalubres instalados próximos à zona costeira, como o velho Paiol da Pólvora, o Gasômetro, dos tempos da iluminação a gás (1867), a Santa Casa de Misericórdia, bem como o depósito de lixo da cidade. O espaço entre o mar e essas edificações, passou a ser ocupado pelo comércio de exportação, próximo ao desembarcadouro e o Arraial Moura Brasil, formado pela população sertaneja foragida da seca. 



Nesse contexto, é criado o Código de Posturas, vindo em confluência com as preocupações de ordem higienistas e urbanísticas que tinham por objetivo salvaguardar o decoro, a moral e os bons costumes dados à explosão demográfica decorrente do êxodo rural naquele período. Essa legislação reforçava o desinteresse pela zona de praia, ao afirmar, por exemplo, a regulamentação de que os dejetos fecais não poderiam ser despejados nas ruas, mas sim na Praia do Porto das Jangadas, denominação antiga da Praia de Iracema

Tornava-se evidente o desinteresse do litoral por parte da elite da cidade, de natureza interiorana. Mesmo com os discursos médicos afirmando dispor o litoral fortalezense de excelentes condições climáticas para o tratamento de doenças respiratórias, os abastados ainda não se voltavam para o mar.



Fontes: A cidade e o mar: considerações sobre a memória das relações entre Fortaleza e o ambiente litorâneo - Fábio de Oliveira Matos. 
DANTAS, Eustógio Wanderley. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 
BARROSO, Gustavo. Terra do sol: natureza e costumes do Norte. Rio de Janeiro: Benjamim Aguila, 1912.  
LINHARES, Paulo. Cidade de água e sal: por uma antropologia do litoral do Nordeste sem cana e sem açúcar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1992.

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