quarta-feira, 24 de abril de 2019

A expansão urbana de Fortaleza: O desinteresse da cidade pelo mar - Parte II

Vista da Praia Formosa na altura do atual Moura Brasil.O trilho levava ao porto na Praia de Iracema. Foto da 1ª metade do século XX. Acervo Carlos Augusto Rocha
Praia de Iracema em 1936. Acervo Lucas Jr
Fortaleza descobre o mar

A partir do século XX, com movimento de tomada de consciência no domínio da literatura, permitiu-se incorporação lenta e gradual das praias, notadamente com a adoção de novas práticas marítimas surgidas na Europa: os banhos de mar, as caminhadas na praia e o veraneio. A considerável faixa de praia de Fortaleza passa a ser o novo ponto de encontro da cidade, além de despertar o interesse dos veranistas mais abastados.
Este lento movimento da cidade em direção à zona costeira cresce no tempo, com a incorporação gradual e progressiva de áreas anteriormente ocupadas por populações pobres, gerando conflitos entre as camadas da sociedade fortalezense, suscitando a expulsão da classe menos abastada. Em Fortaleza constitui-se este movimento no início do século XX, com a descoberta da Praia de Iracema como área de lazer e veraneio.

Praia de Iracema em 1938
A praia ainda era dos jangadeiros.
A valorização do litoral como parte integrante da cidade é algo recente na história do desenvolvimento de Fortaleza. A relação da cidade com o litoral surge a partir da instalação do Porto nas intermediações da Praia de Iracema. Porém, a presença dos moradores mais abastados era evitada, por ser ocupada pela população de baixa renda.
Além disso, a localização da zona de meretrício nas redondezas do Porto, e a ocupação das dunas que margeiam o litoral em direção norte/nordeste por favelas foram, sem dúvida, fatores que levaram durante algum tempo ao desinteresse dos fortalezenses pelo litoral com a finalidade de aí se fixar.

Vista do Cais da Praia de Iracema, então porto de Fortaleza em 1935. Robert S. Platt
Aos poucos o imaginário social dos fortalezenses sobre o mar é modificado em virtude das descobertas de novas práticas marítimas. No Meireles são criados sítios para o tratamento da tuberculose. Uma outra prática marítima diz respeito às serenatas realizadas sobre as dunas próximas a área central da cidade.
Porém, as práticas marítimas citadas não foram capazes de possibilitar a litoralização da zona de praia de Fortaleza, pois o tratamento da tuberculose não aconteceu exclusivamente no litoral e as serenatas eram atividades pontuais de lazer.
Somente com a descoberta de novas práticas marítimas, como os banhos de mar, que o  litoral passa a ser valorizado como lugar de lazer. Este movimento de valorização do litoral muda o olhar da elite de Fortaleza em relação à zona de praia, notadamente a Praia de Iracema, que deixa de ser o lugar da simples contemplação e adquire maior importância com os banhos de mar. Este movimento definirá uma nova caracterização social, demográfica e urbanística desta zona, com o deslocamento da população e a mudança dos usos, resultante da presença de veranistas.
Com a descoberta dessas novas práticas marítimas, a Praia de Iracema passa a competir com outras áreas de lazer da cidade, como a Praça do Ferreira e o Passeio Público.
A Praia passa a ser o lugar da sociabilidade por excelência. Um paradigma de alteridade tão forte que sobrepõe a lógica da centralidade do plano em xadrez de Herbster, reconstruindo a cidade em torno de uma autorreferência do vivido social.

Praia de Iracema na década de 30. Imagens de Bangalôs de frente para o mar. Arquivo Nirez
Acervo Ângela Gurgel
Um fator determinante, que veio facilitar o deslocamento da população para aquela área foi a instalação da linha de bonde na Rua Tabajara em 1927, ligando a Praia de Iracema a área central da cidade, consolidando aquela zona de praia como área de lazer e veraneio.
Um marco do início da fixação de moradia da elite é a construção da residência “Vila Morena”, atual Estoril, do comerciante pernambucano José Magalhães Porto, marcando o início da urbanização da área. Com a chegada da elite, vinda da área central da cidade, para a realização de práticas de lazer e veraneio na Praia de Iracema, a permanência da população de baixa renda passa a ser inviável, devido à especulação imobiliária, aumentando o valor do solo naquela área, gerando expulsão da população pobre.


Acervo Ângela Gurgel
Vale destacar, que a descoberta da praia pela elite não corresponderá a uma reorientação do crescimento de Fortaleza para as zonas de praia, pois se trata simplesmente de uma política pontual de urbanização da Praia de Iracema, em resposta à demanda da população das proximidades por banhos de mar. A partir da década de 1930 a elite passa a construir Bangalôs na Praia de Iracema para desfrutar melhor os banhos de mar. Este tipo de
construção, próximo à zona de descanso das jangadas, mostra a influência da cultura europeia na cidade, expressada não somente na arquitetura, mas também nos hábitos da população.
Praia de Iracema na década de 20.  As mulheres são das famílias Caminha, Pompeu e Moreira Rocha. Arquivo Gerard Boris. Fonte: Livro Ah, Fortaleza (2006).
Acervo Ângela Gurgel
Desde o final do século XIX, a Praça do Ferreira disputava com o Passeio Público à preferência de principal espaço de lazer da classe abastada fortalezense. Até a década de 1930 o entrono da Praça do Ferreira configurava-se como um reflexo da dinâmica da própria cidade, encontrando-se em seu entorno as mais diversas funções. Além dos edifícios representativos do poder público, do comércio, dos hotéis e do setor residencial, a função lazer se manifestava através dos cinemas, cafés e clubes. Porém, com a descoberta do mar pelos moradores mais abastados, estes passam a descobrir a praia como local de lazer e de deleite visual. No que concerne este processo de ocupação da orla marítima de Fortaleza, Rocha Júnior, (1984, p. 4) afirma:

Acervo Ângela Gurgel
A Praia de Iracema, até então local de “jogo de caipira, pinga e facada de pescada” adquire novas funções urbanas. A Praia, constituída por jangadeiros com suas casas de palha, com suas areias muito limpas e repletas de coqueiros, desperta a cobiça dos urbanistas mais abastados.
Um dos primeiros foi o coronel Porto, comerciante vindo de Recife, que em 1926 inaugura o seu palacete eclético, onde hoje funciona o restaurante Estoril. Em torno da casa dos Portos, novos pequenos palacetes se levantam, formando aos poucos um ensaio de feição eclética onde se
destacam os telhados de telha francesa [...]

O interesse pela praia cresce... Praia de Iracema na década de 30.
Bangalôs na Praia de Iracema por volta de 1940, quando o mar começava a destruir as edificações à beira-mar. 
Náutico em 1929, ano de sua fundação. Arquivo Nirez
Essa afirmação evidencia que aos poucos alguns equipamentos de lazer passam a se instalar na faixa litorânea. Já em 1929, o clube Náutico Atlético Cearense tinha sua primeira sede instalada na Praia Formosa, nas imediações da Ponte Metálica. Ao mesmo tempo em que a Praia de Iracema marcava o inicio de sua trajetória como ponto de encontro e recreação da cidade.
Destacando este momento de incremento de equipamentos de lazer, destaca um antigo morador da área, o Senhor Ozarias Ferreira Lima:

Na Praia de Iracema surgiu muita coisa bonita, surgiram muitos balneários naquela época, eles eram ótimos para o fim de semana. Balneário naquela época [1944] eram os locais onde se guardava as roupas e os objetos pessoais, deixava dentro de uma caixa de madeira numerada e descia para a praia. No fim do dia ia lá tomar banho para tirar o sal do corpo, pois lá tinha várias duchas. No período da Guerra, quando o Estoril era para a diversão dos americanos, surgiram vários bares e restaurantes no entorno dele. Havia o Bar São Jorge que mesmo tendo fama de ser meio perigoso [...], atraía gente de todo canto de Fortaleza, principalmente o pessoal que morava ou trabalhava pelo Centro.



Defesa da Praia de Iracema em 1949.
Era visível que a Praia de Iracema vivia seu período áureo. A Praia passa a ser destacada na música e na literatura dado o modo como se inseriu no cotidiano da cidade, Ozarias Ferreira destaca também que:

Quebra-mar da Praia de Iracema.
As jangadas da Praia dos Amores passaram a ter que concorrer espaço na praia com os bangalôs e bares que surgiam a toda parte. Na Ponte Metálica só chegava agora navios enormes, por causa da Segunda Guerra. E quando esses navios chegavam era uma festa, pois como os navios não atracavam na ponte, os jangadeiros eram chamados para ajudar a ir pegar o pessoal que vinham nos navios. A Praia realmente atraía muita gente. A Senador Pompeu e a Barão do Rio Branco eram as ruas que mais facilitavam o acesso dos que estavam no Centro para o Mar. Pela manhã tinha os banhos na praia e as peladas, eu mesmo era do time da rua Dragão do Mar, porque o futebol já era muito popular naquela época, naquela região da Praia tinha o time do América, que era um dos grandes da cidade. A Ponte Metálica além de servir pro porto servia também pra pesca, além de ser muito bom para dar saltos no mar. Naquele tempo não havia essa história de surf por aqui não, a moda era brincar de carretilha, onde a gente pegava um bom pedaço de madeira e ficava deitado nela deslizando nas ondas. A noite tinha as serestas, que varavam a madrugada.
Tudo só começou a piorar quando surgiu os quebra mares, que arrasou com a Praia, no começo não foi tão ruim, porque tinha um quebra-mar que formava uma grande poça d’água quando a maré subia, que a gente chamava de Piscininha.

Praia de Iracema anos 50.
Praia de Iracema em 1982, vendo-se a piscininha. Gentil Barreira
Praia de Iracema nos anos 90. Foto do Livro Fortaleza, 27 Graus.
A área do Poço da Draga, destacado por ser uma área de meretrício de Fortaleza, é destacada pela senhora Maria José Ferreira Lima, como um local com pontos de lazer:

Apesar do Poço das Dragas ser esquecido ou deixado de lado por muita gente, acho que pelo fato de as cinzas das caldeiras da Light serem jogadas lá, ia muita gente, ou que morava na Barão do Rio Branco ou que trabalhava na RVC, já que estes tinham mais contato por lá, pois vendiam lenha tanto para a Light quanto para as mulheres que moravam no Curral das Puta. Esse pessoal aproveitava a maré baixa para brincar um pouco na praia, principalmente jogar futebol. A Praia do Paredão, como algumas pessoas chamavam aquela região por causa de um enorme muro construído contornando o estaleiro, nunca atraiu muita gente, mas quem queria encontrava diversão.


As Três Marias - Regina Célia, Bidu Reis e Hednar Martins na Praia de Iracema. Acervo Luciano Hortêncio
Porém, o uso da Praia de Iracema para as práticas marítimas é efêmero, pois com a transferência do Porto do Poço das Dragas para o Mucuripe, além de resultar no abandono e consequente deterioração dos armazéns das Dragas, provocou uma série de problemas ambientais, tendo a área preferencial para banho na Praia de Iracema sendo violentamente atingida pela corrente da costa, resultando na erosão da praia. A privilegiada paisagem praiana é destruída, resultando apenas pequenos trechos da praia com balneabilidade.

Praia de Iracema vendo-se um Bangalô destruído em decorrência do avanço do mar. Fonte: Arquivo Nirez
Os abastados vão buscar na periferia, notadamente a zona leste da cidade, área para lazer e moradia. A respeito das práticas marítimas e a decadência ocorridas na Praia de Iracema entre as décadas de 1940 a 1950, um ex-morador do bairro, Walter Matos, relata:

A Praia de Iracema era uma área muito dinâmica pro lazer. Havia inicialmente maioria de homens, que iam para aquela área em busca de prostitutas, era uma espécie de Passeio Público daquela época. Com o passar do tempo, as mulheres de família passaram a frequentar a Praia dos Amores, só que homens e mulheres tomavam banho em lugares distintos, era falta de respeito um homem tomar banho com a mulher da frente de todo mundo. A Praia de Iracema atraía muita gente do Centro da cidade, pois como o Poço das Dragas, que era pra ser a praia da população do Centro estava quase que todo ocupado com as atividades do Porto, não dava para tomar banho de mar. Principalmente nos finais de semana, o bonde Praia de Iracema, que saía da Praça do Ferreira e ia até a Igrejinha da Praia de Iracema, vinha lotado de gente vinda do Centro que queria passear pela praia, era moda naquela época. Esta ficando tão famosa quanto a Praça do Ferreira. Quando eu era pequeno, ia a Praia para brincar na Piscininha, um espelho de água do mar formado por um paredão de pedra que ficava próximo ao Estoril. Era tudo muito divertido.
Pegávamos um pedaço de madeira e íamos brincar de carretilha na Piscininha, deslizando na água. O ponto de encontro das crianças naquela praia era aquele lugar. Por falar em Estoril, ele tinha uma função muito diferente do que é hoje em dia. Ele servia naquela época como ponto de encontro dos marinheiros americanos no período da 2ª Guerra Mundial.
Todo mundo queira ir lá conhecer eles, pois não era todo dia que aparecia tanta gente vinda de longe com notícias sobre a Guerra, porque as notícias demoravam muito para chegar por aqui, só tínhamos o rádio para saber das novidades no mundo. Tinha gente que dizia ver submarinos e bombas dos alemães na Paria de Iracema. A Praia de Iracema era um lugar muito bom de viver, pena que durou pouco. Muita gente ficou assustada com a força do mar um tempo depois que retiraram o Porto do Poço das Dragas para colocar na Ponta do Mucuripe. As casas da Praia de Iracema que eram muito bonitas, parecendo aquelas que víamos em fotos da Europa, foram todas destruídas pelas ressacas do mar, a Piscininha sumiu e a parte de areia também.

Praia de Iracema em 1953. Livro Caravelas, jangadas e navios - Uma Historia Portuária, de Rodolfo Espínola.
Em meados da década de 50, a Praia e a área central de Fortaleza passam por intensa degradação estrutural, como a falta de pavimentação das ruas, sistema de esgotamento sanitário e coleta regular de lixo.
Essa decadência proporcionou a construção de uma imagem negativa da área. Além da perda do dinamismo recreativo, a praia de Iracema perde sua função econômica. A instalação do porto do Mucuripe resultou também na estagnação do comércio da área em frente ao núcleo central, com o deslocamento dos armazéns e depósitos para as novas docas. Era mais uma etapa no processamento da paisagem litorânea pelo qual passava a praia de
Iracema. Banhistas, clubes e restaurantes ao buscarem ouras praias, traziam de modo mais visível o processo de diferenciação espacial e a segregação residencial pelo qual passa a cidade. Sem a praia do lazer do catraieiro do porto e do prazer dos ricos, passava a ocorrer de modo mais intenso fato semelhante ao que ocorria no espaço urbano de Fortaleza, tendo a partir daquela situação a efetivação das praias dos ricos e dos pobres, distribuindo a população pelo nível de renda.

Praia de Iracema na década de 70. Foto de Nelson Bezerra.
A partir da década de 1970 a Praia de Iracema, através de movimento iniciado na Europa, passa a se fortalecer enquanto área de exaltação as artes e a boemia, com hábitos especificamente noturnos. Essa nova utilização do espaço intensifica-se  a partir dos anos 1980, por meio da instalação de variados restaurantes, dando uma dimensão mais comercial e nova dinâmica para a área, diferenciando-se do domínio residencial da década de 1950.


Primeiro dia de funcionamento do Pirata Bar em 21/11/1986.
Entre essas novas instalações o Pirata Bar, inaugurado em 1986, ganha destaque nacional, com a promoção de festas às segundas-feiras, tendo como principal atração o forró. As festas passam a ter grande divulgação, aumentando o fluxo de turistas para a Praia de Iracema.
Na década de 1990, novos equipamentos paisagísticos e de lazer da cidade, como a reforma da Ponte dos Ingleses, o calçadão e o Centro Dragão do Mar surgem no contexto de revalorização da Praia de Iracema, reconfigurando um cenário urbano com o objetivo de espetacularização com vistas ao turismo.

Nesses períodos mencionados, a área central de Fortaleza passa a amargar um expressivo abandono em suas atividades, pois estas eram voltadas para uma demanda populacional que passa a não mais frequentar a área. Com a não permanência de moradores mais abastados, devido o mesmo passar a ter uma função social voltada agora predominantemente para as atividades comerciais da classe menos abastada, se tem uma cisão entre esta área com as práticas marítimas.


Leia também a Parte I


Fontes: A cidade e o mar: considerações sobre a memória das relações entre Fortaleza e o ambiente litorâneo - Fábio de Oliveira Matos. 
DANTAS, Eustógio Wanderley. Mar à vista: estudo da maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002. 
BARROSO, Gustavo. Terra do sol: natureza e costumes do Norte. Rio de Janeiro: Benjamim Aguila, 1912.  
LINHARES, Paulo. Cidade de água e sal: por uma antropologia do litoral do Nordeste sem cana e sem açúcar. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1992.

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