Comunidade do Poço da Draga em 1964. Acervo O Nordeste |
O Poço da Draga se localiza nas proximidades da foz do riacho Pajeú, na orla marítima fortalezense, histórica pela formação portuária. Originalmente composta por uma colônia de pescadores, os primeiros habitantes se firmaram na região por volta de 1906 com a construção de um pequeno porto à beira do mar no local. Segundo informações de interlocutores, a Colônia de Pescadores Z-18 se formou em torno da região inicialmente por volta de 1906 devido à construção da Ponte Metálica, o píer improvisado que servia de ancoradouro de embarcações, embarque e desembarque de passageiros e fluxo de mercadorias. Este porto improvisado foi chamado de Ponte Metálica e tinha estrutura de ferro, servindo de ponto para ancoragem de embarcações. Conforme data esta manchete de jornal, a ponte tinha estrutura especializada para o trânsito marítimo daquele período:
Essa estrutura da ponte ainda está presente atualmente. Serve de lazer para alguns moradores do Poço da Draga. Também atrai atenção de alguns visitantes que frequentam o local, principalmente os interessados em apreciar a paisagem e fazer incursões ao mar por meio de saltos. Contudo, a deterioração da ponte, que não foi mais reformada desde a desativação do porto, é notável. Vale ressaltar que a outra ponte construída, a Ponte dos Ingleses, fica próxima da “ponte velha”, a Metálica, distanciando-se dela apenas alguns metros.
Poço da Draga em 1974. Acervo Delberg Ponce de Leon |
Com a instalação do Porto do Mucuripe, em 1950, a região do Poço da Draga, que incluía as duas pontes, foi abandonada pelos investimentos no setor portuário. Porém, o local passaria a ter outros focos de obras. Inclusive o nome do espaço se deve a este período anterior à construção do Porto do Mucuripe. Em história presente em algumas das muitas narrativas de moradores antigos, é possível entender que o “poço” é devido à profundidade do mar próximo à ponte que servia de ancoradouro de embarcações naquele período inicial de ocupação da região e a “draga” é o instrumento de sucção de areia e dejetos marítimos presentes nos tempos em que o porto funcionava no local.
Poço da Draga na década de 70. |
Eu já ajudava a carregar os peixes e as coisas dos barcos aqui [no Poço da Draga quando era porto]. Depois que mudaram o porto para o Mucuripe, a gente ia tudo pra lá de caminhão. O sindicato [dos portuários] ainda era aqui quando o porto de lá foi inaugurado. Vinha o chefe do sindicato aqui e fazia a chamada para a gente ir trabalhar. Nós íamos tudo num caminhão, que vinha buscar a gente aqui e levar pra lá. Aumentou muito a quantidade de mercadorias quando o porto foi pra lá, nem se compara. Aqui era pouquinha coisa. Eu era menino “véio” quando ia pra lá, achava era bom ir em cima do caminhão. Passeava até chegar ao cais. Quando voltava pra cá ainda ia era jogar futebol na praia (Sr. Clóvis, em 06/02/2014).
No período em que estava diariamente envolvido na empreitada de ir até o Porto do Mucuripe para trabalhar, Clóvis passeava pelo local de moradia geralmente nos finais de tarde. O pôr-do-sol visto da Ponte Metálica, atesta ele, é inigualável em beleza: “a satisfação de morar aqui desde quando eu era novo é ver essa lindeza de sol caindo no mar todo dia... quando você olha pra um negócio desses esquece até dos problemas que tem no trabalho”.
Antigo Porto e casinhas no Poço da Draga na década de 20. Acervo Carlos Juacaba |
O senso estético aliado ao lazer da região está compreendido como marca registrada do Poço da Draga, destaca Francisca. A pedagoga, cujos pais vieram para a região antes mesmo dela nascer, guarda várias memórias do local anteriormente. “A vida pacífica daqui chamava a atenção antigamente, tudo era tranquilo, as crianças brincavam na rua até tarde, não tinha esse perigo todo que existe hoje em dia”, ela compara. Francisca recorda que, mesmo acometida por uma grave enfermidade durante boa parte de sua infância, costumava ir à praia quando podia e se admirava sempre com a beleza da região. “Era tudo menos complexo do que é hoje, a gente podia andar por aqui sem se preocupar se podíamos estar atrapalhando algo”, analisa ela ao afirmar que antigamente não havia interesses de governantes em promover modificações urbanísticas na região para deixar o ambiente “apropriado aos turistas” como ocorre atualmente.
Praia do Poço da Draga em 1980. Acervo Celso de Oliveira Silva |
Ao comparar as habitações do passado e do presente no Poço da Draga, Rosa se emociona. “As casas antigamente eram pequenas, na beira do mar”, enfatiza a vendedora. Rosa também afirma que devido às intervenções na região motivadas pela instalação de um estaleiro e especulações constantes em remover habitações de moradores para fomentar a transformação da área em local de construção de embarcações, as casas do Poço da Draga foram se modificando com o decorrer do tempo. Por ter nascido no local, ela pôde acompanhar de perto as mudanças na paisagem. Alguns aspectos de sua própria trajetória de vida se entrelaçam com as modificações espaciais que ela observa:
Nasci no Poço, meus pais também moram aqui. A gente morava na beira da praia numas casinhas de madeira, tinha colônia, mas depois que essa Indústria Naval que fica aqui nos fundos, nesse estaleiro, conseguiu tirar, indenizar as pessoas, muitas foram para outros cantos, acabou a colônia de pescadores. Quem pôde comprou a casa aqui, porque a gente que mora lá perto da praia, aqui era como se fosse a Aldeota, né? Só morava aqui quem tinha mais condições, então meu pai conseguiu comprar uma casa aqui e a gente mudou pra cá, mudou só de cantinho, mas continuou na mesma comunidade. Eu tinha uns dois ou três anos quando a gente saiu da beira da praia e veio pra cá, minha mãe ficou morta de feliz, o sonho dela era morar aqui porque lá quando a maré enchia a água passava por debaixo da casa. Eu não tenho muita recordação disso, pois eu era pequena; aqui era uma casa velha que meu pai comprou e fez uma mercearia, era a única que tinha, depois foram surgindo outros comércios; quando eu casei, ele me deu aqui para eu morar, porque aí acabou o comércio, mas ele ainda mora na mesma casa (passa duas casas da minha). Desde que eu já era menina eu via as casas de taipa, de madeira, que aqui era areia, eram palafitas, de madeira, com o tempo foi que as pessoas foram remodelando as suas casas, mas aqui quando era colônia de pescadores há 100 anos aqui era areia da praia e palafita (Rosa, em 04/11/2014).
Poço da Draga na década de 70. |
Construção da Ponte dos Ingleses. Site Poço da Draga |
A alusão de Rosa à “Aldeota” se refere às ruas principais hoje presentes no Poço da Draga, mais valorizadas que as demais. Aldeota é um bairro de classe média alta, conhecido popularmente por ser foco de investimentos dos governantes e centro monetário da capital cearense. Assim, em divisão interna no Poço da Draga, a “Aldeota” do Poço são as duas ruas principais, mais valorizadas que o restante dos logradouros, inclusive os imóveis à beira da praia que foram retirados com a construção do estaleiro.
Relembrar um passado longínquo com habitações diferentes das atuais pode não ser um exercício apenas de nostalgia. Pelo contrário, é possível contemplar aspectos dificultosos nesse período anterior. Rosa afirma que no período em que o Poço da Draga era constituído basicamente por palafitas e casas de taipa havia problemas de abastecimento de água para os moradores. “Não havia água para nós, só tinha a água empoçada nas ruas, só no lamaçal quando chovia”, lamenta. Até hoje sem saneamento, o Poço da Draga sofria anteriormente também por não possuir água encanada para os moradores. Clóvis relaciona essa ausência de água antigamente com o descaso constante dos governantes, independente do tempo. “Nunca nenhum político fez nada por nós!”, reclama ele. E complementa afirmando que “até a água foi os próprios moradores que conseguiram junto à CAGECE”.
Fotografia tirada por Amelia Earhart. Vemos o Poço da Draga, a Sefaz e a antiga Igreja de São José. |
Comerciante no Poço da Draga desde meados dos anos 1970, Valdir relembra a escassez de água como condição que desiludia muitas pessoas sobre a permanência no local. Abastecidos pelo manguezal anexo à foz do rio Pajeú, em água muitas vezes insalubre, Valdir conta que “o povo do Poço da Draga já se achava excluído desde essa época, até que se juntaram e fizeram um amontoado de gente pra ir até a Prefeitura pegar o direito de ter o que beber”. Este movimento de organização dos moradores para obter água encanada ocorreu somente no final dos anos 1980, devido basicamente a formação da Associação dos Moradores do Poço da Draga (AMPODRA, instituída em 1980). Hoje, o comerciante espera que a mesma vontade coletiva que angariou recursos para implantar o abastecimento de água se efetive na consolidação do saneamento básico das ruas. Ele indaga, que “se você perguntar para a maioria das pessoas que moram aqui o que elas mais querem, elas vão te dizer: esgoto! É muito ruim morar num canto em que os becos são como valas de porcarias correndo para o mangue”.
Poço da Draga em 1937. Vemos ao fundo, a Light, o Gasômetro e a Santa Casa. ano 1937 |
Valdir é proprietário de uma pequena mercearia no Poço da Draga. Vê movimento diário de pessoas nas ruas do aglomerado urbano. Sabe que as condições dos moradores já mudaram bastante para o que eram no passado. Como exemplo de alguém que viveu situações difíceis nas ruas encharcadas de lama, ele destaca a ferrovia que cruza o Poço da Draga como aspecto de deterioração de um passado que poderia ser mais promissor aos dias atuais. Da realização de transporte de mercadorias a uma velha plataforma desativada em frente ao seu comércio, “a linha do trem”, para Valdir, é sinônimo de que “algo errado” aconteceu àquele lugar. “A gente se sente inútil hoje em dia pela história que isso aqui tem [apontando para o trilho], aqui era pra ser um local importante, valorizado, amado por toda a cidade, mas o que a gente vê é que ninguém quer saber de nós”. Valdir deseja que a história antiga do Poço da Draga conjunta à da capital cearense poderia ser um alicerce para que a permanência dos moradores em condições sanitárias minimamente satisfatórias fosse garantida pelos órgãos estatais de governança.
Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.
Isadora, dona de casa aposentada, se pergunta diariamente sobre quando deixará de ver fluxos de dejetos, sem limpeza prévia, indo diretamente ao mangue anexo ao Poço da Draga. Isadora mora desde criança nas proximidades do mangue e não se conforma com a situação inóspita que vive. Ela relembra o passado em que “tinha menos gente aqui, o riacho era mais limpo e mais fácil seria do governo colocar os canos” (sic). Viúva de um marido estivador, Isadora mora há muitos anos com dois netos em sua residência que habita desde a juventude, herdada de seu pai e hoje reformulada. Próxima ao mangue, sua habitação foi modificada com ajuda de uma amizade pessoal de um de seus filhos com um agente de obras da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF). A ampliação do teto da residência e a subida do chão evitaram constantes alagamentos que ela sofria no período de chuvas fortes. Com a intensidade da água invadindo a casa¹, ela constantemente tinha que colocar móveis em suspenso e dormir em redes improvisadas por sobre as camas. Para Isadora, a mudança de sua casa é decorrente de um processo maior de modificações em todo o espaço que também abriga as residências de seus vizinhos. “Do mangue limpo ao sujo, da rua velha encharcada ao calçamento que traz água pra dentro de casa, tudo cheio de gente aqui hoje em dia, as coisas tinham que mudar”, diz a aposentada. É interessante notar o destaque dela para as transformações ocorridas no Poço da Draga como uma perspectiva de aprendizado acumulado:
Quem nunca viu os barquinhos saindo daqui de casa [antigamente]? Era só pescaria animada. Armavam os barcos aqui mesmo, perto do riacho. Hoje tá tudo cheio de gente amontoada numas casas de papelão lá [no mangue]. Se continuar assim, não tem político que dê jeito aqui mesmo, vão achar mais fácil tirar a gente daqui. Eles [os políticos] confundem tudo, acham que o povo que mora aqui é tudo igual. Mas o que aconteceu era pra todo mundo ter cuidado, não ter deixado sujar tudo aqui... Queria ver se eles tivessem deixado tudo bonito se a gente ia ter medo de enchente hoje em dia! Duvido! Eles deixaram tudo se acabar, de propósito. A gente ainda luta, corre atrás, mas é difícil, sabe? Tudo tá diferente aqui, eles querem que fique pior para nós mesmos pedir pra sair (Isadora, em 14/02/2014).
Lido Mar II já concluído no Poço da Draga. Acervo Joanna Dell'Eva |
Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.
A desesperança de Isadora quanto aos governantes parece se adequar a uma vontade mais ampla deles de que os moradores do Poço da Draga saiam do local onde vivem. Um dos principais aprendizados do depoimento dela (aliado um pouco aos discursos de Valdir e Rosa) é que a não-execução de obras pode ser indício proposital para que, como afirma Francisca, “cada um faça só pra si mesmo” e assim se “perca o senso de coletivo”. O que se percebe, historicamente, no passado desses interlocutores diante do espaço onde moram é que os indicativos de mudanças para melhorias das condições de subsistência e higiene (buscar água e esgoto) estiveram sempre à parte dos interesses dos gestores públicos. As próprias pessoas é que tiveram que lutar para se ter água independente da iniciativa dos agentes de governança.
Poço da Draga na década de 70. Vila de pescadores. Site oficial Poço da Draga |
Francisca destaca o processo precário de pavimentação das ruas do Poço da Draga como mais um exemplo de não-assistência direta e explícita dos órgãos governamentais que são encarregados do planejamento urbano.
Com o fim gradativo da colônia de pescadores e a ampliação de construções nas habitações mediante muitas vezes às invasões de novos moradores em áreas adjacentes ao Poço da Draga, a diversidade de pessoas no local se tornou foco de inquietações principalmente nos moradores mais antigos. Vale ressaltar que o Poço da Draga se consolidou como local de habitação não só por meio da colônia de pescadores, mas também por ser um ambiente fornecedor de mão de obra portuária. Nesse sentido, é possível verificar o caráter urbano do espaço desde a sua fundação. Nunca se tratou de uma aldeia de pescadores com autossuficiência numa prática comunitária de subsistência somente a partir da pesca. As construções da ponte e da ferrovia indicam que os moradores do Poço da Draga sempre estiveram vinculados a cadeias produtivas e comerciais de escala maior do que a da “comunidade”.
¹As queixas recorrentes de alguns moradores do Poço da Draga com inundações de suas residências se devem a, principalmente, dois eixos de fatos ocorridos na região: a instalação recente de habitações na área do mangue, obstaculizando o fluxo de águas pluviais, que antes iam do mangue em direção ao mar; e a instalação do estaleiro por tomada de parte do terreno do mangue que dá acesso ao mar, pela Indústria Naval do Ceará (INACE), em meados dos anos 1970.
Crédito: ADERALDO, Mozart Soriano. 1993. História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza, CE: Edições UFC./Edson Alencar Collares de Bessa - O Poço da Draga e a construção do aquário/Arquivo Nirez/Site Comunidade Poço da Draga/ Jornal O Povo/Acervo pessoal
Excelente documento histórico.
ResponderExcluirlinda materia,deveria ser mais divulgada.
ResponderExcluirSe você tem preocupações, eu sou otimista, mas a equipe pode ser muito valiosa - e eu tomo como verdade com completamente os funcionários dar-lhe usando sua perspectiva honesta ...
ResponderExcluirNo texto fala que a ponte dos ingleses ligaria a terra firme à uma ilha, distante 900m. Onde seria essa ilha e qual seu nome?
ResponderExcluirBela história deveria se mais difulgado.
ResponderExcluirAlguém sabe sobre a história da mãe Jovina líder espiritual no que morou no poço da draga ?
ResponderExcluirEla era umbandista
Ótimo lê sobre essa época, meu pai, avó e tios trabalharam no porto da draga e depois o porto foi para o mucuripe, tenho uma família portuária, sou orgulhoso de ser portuário.
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