domingo, 9 de junho de 2019

Arquitetura Neoclássica em Fortaleza - Parte II

Fortaleza no início do Século XIX

Ao longo do século XVIII, a pequena vila foi crescendo, a passos vagarosos. Em 1799, a capitania do Ceará, até então subalterna a de Pernambuco, por Carta-Régia, desmembrou-se desta, conforme atesta Girão (1974, p. 65) com a transcrição a seguir:


Considerando os inconvenientes que se seguem, tanto ao meu Real Serviço como ao bem dos povos, da inteira dependência em que os governos e as capitanias do Siará e da Paraíba se acham do Governador Geral da Capitania de Pernambuco, que pela distância em que reside não pode dar com prontidão as providências necessárias para a melhor economia ulterior daquelas capitanias, - ordenou S. Majestade a separação, com o Decreto de 17 de janeiro de 1799.


Essa separação trouxe enormes vantagens para a vila de Fortaleza, uma vez que o descaso da administração com a capitanias do Siará e da Paraíba eram evidentes. A rigor, Pernambuco quase nada investiu na região a despeito dos insistentes pedidos dos diversos capitães-mores que a capitania teve. Com exceção da parte relativa à defesa, ainda vinculada à Pernambuco, todo o resto da administração, incluindo a arrecadação tributária, ficou atrelado diretamente à Coroa.


A partir daí, uma série de melhoramentos passaram ser executados, dando à vila um aspecto mais adequado aos interesses metropolitanos.
Sem estabelecer critérios meritórios ou estabelecer quem foram os seus executores, foram criados mecanismos como a Junta da Real Fazenda, as Casas de inspeção de Algodão, a organização do Corpo de Milicianos, a instalação de Laboratórios de refinação de salitre, a reforma no Forte de Nossa Senhora da Assunção, a instalação da Alfândega (1810), a criação do serviço de Correios (1812) etc. Nessa época, segundo alguns historiadores, Fortaleza ainda era uma tímida vila, conforme atesta a descrição do inglês Henry Koster, que visitando a vila, em 1809, afirmou:


A vila de Fortaleza do Ceará é edificada sobre terra arenosa, em formato quadrangular, com quatro ruas, partindo da praça e mais outra, bem longa, do lado norte desse quadrado, correndo paralelamente, mas sem conexão. As casas têm apenas o pavimento térreo e as ruas não possuem calçamento; mas, em algumas residências há uma calçada de tijolos diante. Tem três igrejas, o Palácio do Governador, a Casa da Câmara e prisão, a Alfândega e Tesouraria. Os moradores devem ser uns mil e duzentos. (KOSTER, apud GIRÃO, 1974, p.61)



Como se pode notar, tecnicamente ainda faltava muito para a vila atingir o status de cidade. Entretanto, como medida política, já com o Brasil independente, D. Pedro I, Imperador, elevou-a a categoria de cidade, em decreto Imperial, de 17 de março de 1823, com o nome de Fortaleza de Nova Bragança a despeito de o povo preferir o nome de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, nome pela qual se afeiçoara e que, em desobediência ao Imperador, continuou a chamá-la.
Um pouco antes desse fato ocorrer, uma importante reforma urbana começou a se processar, na gestão do Governador Sampaio, capitaneada pelo Tenente-Coronel do Real Corpo de Engenheiros Antônio José da Silva Paulet (1778-1837), autor do primeiro plano urbanístico de Fortaleza, importante para os destinos da cidade (ainda como vila, em 1812) e altamente ressonante para o seu crescimento, por configurar as linhas mestras espaciais que nortearão a reforma de Adolfo Herbster, em 1875, e que se transformarão no futuro bairro Centro. A ideia central do seu plano urbanístico foi baseada num sistema de traçado em xadrez. A importância dessa reforma foi relatada por Raimundo Girão como um marco que alterou o destino espacial que a urbe ia seguindo.



Com efeito, comparando-se aquele quadro de ruazinhas mal retificadas e edificadas, de que nos fala Koster, com a regularidade dos alinhamentos que se seguiram à interferência do Ajudante de Ordens de Sampaio, não se poderá deixar de reconhecer que o seu plano, a um só tempo de remodelação e ampliação, tirou, providencialmente, da desordem para uma orientação lógica a pequena capital, exatamente na fase de ressurgimento, que ela ensaiava desde o tempo de Bernardo Manuel de Vasconcelos. A tendência era o povoado acompanhar a tortuosidade do centrismo pajeú. Submisso às voltas da ravina é que ela continuaria a aumentar. Foi, portanto, indispensável que a visão de Silva Paulet e o poder de vontade dos administradores municipais que lhe sucederam, tirasse aquele povo do seu torpor, obrigando-o a uma ordem nova das coisas. Corrigindo na sua planta, quanto possível, os erros existentes, o esclarecido engenheiro desprezou o sentido velho do crescimento da vila e, de modo resoluto, puxou-o para o estilo quadrangular, que a tanto se prestava a natureza relativamente plana do terreno. (GIRÃO, 1974, p. 75).


Ao contrário de muitas cidades-metrópoles no Brasil, onde o seu Centro Antigo (ou Velho) possui contornos e desenhos indefinidos, ou pelo menos disformes, por acompanhar fluxos de rios ou de caminhos. A cidade de Fortaleza manteve em sua essência o traçado xadrez, de tal forma que permite seguir em linha reta facilmente de leste a oeste e de norte a sul, com poucos desvios ou inclinações.
Afora essa questão do traçado, outro fator que a paciência e o arrojo humano superaram foi a ideia de que o solo da cidade, por ser extremamente arenoso, impossibilitava edificar construções com mais de um andar. Por conseguinte e entrelaçados a isso, aos poucos, com um traçado mais bem definido, foram surgindo grandes sobrados, espalhados pelas principais ruas da cidade, pertencentes a famílias poderosas financeira e politicamente, em contraste com residências mais humildes. É o que revela Girão (1974, p. 78):

Com as construções desses sobrados, rasgava-se o preconceito de que o terreno da cidade não suportava edificações de mais de um andar. Até então as casas se enfileiravam monotonamente justapostas, estreitas e achatadas, construídas de taipa - madeira amarrada a cipós, com enxameio de barro - mostrando duas águas sós, de telha vã caindo para trás e para a frente, em beira e bica ou beira e sub-beira, paredes lisas, raras com platibandas ou frontões, sem arabescos decorativos, sem frisos, sem colunatas, sem azulejos, sem coisa alguma que acusasse o menor gosto arquitetural. O resto, a maior parte, eram tugúrios de palhas, mocambos míseros, dispersos à toa, onde, no mais extremo desconforto, a pobreza fragilmente se resguardava da soalheira, naquele ardente lençol de areias brancas, que em compensação espelhavam doces luares argentinos, fazendo noitadas deliciosas e românticas (...).


A revelação acima demonstra, de antemão, os contrastes socioeconômicos que acompanharam a evolução da cidade e que se aprofundarão ainda mais com o seu desenvolvimento, durante o século XIX. Também se percebe que não há estilo arquitetônico definido nem alguma arte, sequer embutida, mas um amontoado de improvisações que iam se sucedendo umas às outras.

Fortaleza redesenhada por Adolfo Herbster

Adolfo Herbster (1826-1893) foi um importante engenheiro e arquiteto que, vindo de Pernambuco, se radicou no Ceará. Realizou uma vasta obra nas áreas de engenharia, planejamento e construção, desde obras hidráulicas a estradas e pontes.
Herbster acabou por conduzir a cidade a um aformoseamento que se configurara na virada do século XIX para XX e, no entender do historiador e professor da Universidade Federal do Ceará, Sebastião Rocha Ponte¹, a Fortaleza Belle Époque.

A Belle Époque, o Neoclássico e o Ecletismo no bairro Centro: entre o glamour e o désenchantement


O que podia ser considerado uma época de glamour, de encanto para uns, não tinha o mesmo significado para outros, daí o uso do termo désenchantement (desencanto), pois a grande maioria da população da cidade ficou excluída de um melhor nível vida, mesmo que também tenha usufruído muito das benesses que o mundo ocidental vivenciava naquela ocasião.

As transformações que o bairro Centro vivera demonstram uma sede de investimentos imobiliários, tecnológicos, comerciais e administrativos, tendo como essência e inspiração os modelos importados: francês, na elegância e no cotidiano; inglês, no progresso técnico; positivista, na organização estrutural; romântico, na literatura.
Costuma-se definir o termo Belle Époque como um período de pouco mais de trinta anos que, iniciando-se por volta de 1880, prolonga-se até a Guerra de 1914, sendo essa, logicamente, não uma delimitação matemática.



Essa febre de Belle Époque, afetou o Ceará. O caráter exportador de Fortaleza do século XIX fez com que o algodão consolidasse a importância de Fortaleza na economia regional. As implicações sociais e cotidianas desse afrancesamento vinculado à Belle Époque e seu apogeu serão desdobradas a seguir, com análises sobre o processo que acabou por deixar transparecer o clima nostálgico que marcou o bairro Centro e à cidade de Fortaleza como um todo.



A Fortaleza da Belle Époque absorveu as transformações do período, embora que em menor proporção, dadas as condições socioeconômicas de seu contexto. Entretanto, não deixou de representar, para a sua história, um momento importantíssimo, pois a cidade incorporou todos os sabores e dissabores das transformações. Sobre esse quadro geral, Celeste Cordeiro afirma que:


Nosso Estado, ao seu jeito, viveu intensamente todo esse processo: políticos e partidos, tribuna, imprensa, crescente circulação de ideias, agrupamentos intelectuais, preocupação com a educação... Todo o burburinho transformador não só ecoou aqui, como teve daqui uma contribuição importante, a qual pode ser avaliada por uma série de variáveis: a quantidade de jornais circulando em Fortaleza e no Ceará como um todo, bastante representativos das diversas tendências ideológicas (liberais, católicos, maçons, republicanos etc.), políticos de estatura nacional (...), intelectuais engajados (...), movimentos intelectuais atualizados com o pensamento europeu como a Academia Francesa. (CORDEIRO, 2004, p. 135).

É esse quadro que amolda as condições estruturais em que o bairro Centro irá se configurar, ou seja, como um espaço nobre. Com as reformas urbanas que foram sendo propostas e/ou realizadas, estes espaços cada vez mais foram sendo elitizados, seja por uma casta poderosa política e economicamente, seja por outra, intelectual, à primeira vinculada. O centro passou então por transformações que atendiam aos interesses desses grupos.


¹Sebastião da Rocha Ponte é  autor da obra Fortaleza Belle Époque: reformas urbanas e controle social: 1860-1930. (Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha/Multigraf Editora LTDA, 1993). Obra que se tornou referência para os estudos sobre Fortaleza de fins do século XIX e inícios do século XX.


Leia a Parte I AQUI



Fontes: Arquitetura Neoclássica e Cotidiano Social do Centro Histórico de Fortaleza - Gilberto Abreu.
CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. In: Uma nova história do Ceará. Org. Simone de Souza; Adelaide Gonçalves ... [et al]. 3. ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. 2. ed. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil. 1979.
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle époque: reformas urbanas e controle social: 1860-1930. 2. ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999.
PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: Uma nova história do Ceará. Org. Simone de Souza; Adelaide Gonçalves ... [et al]. 3. ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.


Um comentário:

  1. Passado Histórico,muito bem explicitado! Nossa Fortaleza,cuja História serve para estudiosos estudantes! Eu sabia, que era subordinada a Pernambuco! Mas quando Capitania hereditaria! Antônio Cardoso de Barros nada fez! Malogro!

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