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Maria de Lourde da Costa Jatahy aos 15 anos. |
Nascida em 23 de março de 1909, minha avó adorava contar as histórias da nobre Fortaleza de sua infância. Ela morria de rir contando as vezes em que, montada em seu cavalo Medalhinha (ele tinha uma marca de nascença em sua testa, lembrando uma medalha) e acompanhada de sua inseparável amiga Francisquinha Valente, elas faziam questão de passar a galope pelos fundos do Colégio Militar, na Aldeota, bairro onde moravam, torcendo para os meninos do colégio chutarem alguma bola na direção dos cavalos. Quando isso acontecia, o arredio Medalhinha dava uma upa e jogava-lhe no chão de areia fofa da rua que ainda passa nos fundos do colégio. Era tudo o que ela queria, pois, imediatamente os meninos do Colégio Militar pulavam o muro do colégio e, enquanto alguns corriam para pegar o cavalo, outros se prontificavam a acudir as duas. E elas viam nessa situação o momento perfeito para flertar com os rapazes...
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Pais de Mª de Lourdes: Carlos Jatahy e D. Benvinda da Costa Jatahy |
Minha avó sempre fazia questão de frisar que ela e Francisquinha Valente eram ótimas amazonas. Entretanto, elas montavam de lado, num ginete, com as pernas fechadas e saias, como cabia às moças da época. Elas cavalgavam com roupinha de marinheiro, posto que mulheres ainda não usavam calças. Mas ela contava que havia uma outra conhecida dela, também amazona, que usava calças. Teresinha Sabóia, creio eu que era esse seu nome, tinha morado nos Estados Unidos e voltou para Fortaleza chocando a conservadora sociedade da cidade. “Meu filho, ela montava de frente, igual a homem, escanchada, de pernas abertas e vestindo calças. Um horror!”, dizia minha avó, horrorizada com a modernidade da colega.
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Bodas de Diamante dos avós paternos de Maria de Lourdes Jatahy Simões, que aparece tímida, com 15 anos de idade e pastinha cobrindo-lhe a fronte (1ª foto desta postagem). No canto inferior direito da imagem, vemos que a foto foi tirada em 24 de junho de 1924, na cidade de Fortaleza, onde Maria morava com seus pais, o casal destacado na 2ª foto desta postagem: Seu Carlos Jatahy e Dona Benvinda da Costa Jatahy. |
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Passe de bonde de 1945. Acervo Clóvis Acário Maciel |
Ela também se divertia contando que gastava o talão de passes estudantis do bonde antes do fim do mês. Sempre com sua inseparável amiga Francisquinha Valente, elas faziam questão de torrar os bilhetes logo que o recebiam, indo várias vezes até o final da linha. E, como ela bem gostava de ressaltar: “Viajava pendurada nos estribos do bonde e, sem esperar o bonde chegar no terminal, saltava antes de sua parada total”, me explicava e — ignorando suas muitas décadas de vida — demonstrava como fazia para saltar de um bonde em movimento.
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Estamos na Avenida Santos Dumont em 1940. Ao longe é possível avistar o bonde. Provavelmente seja o cruzamento com a Av. Rui Barbosa. Foto: O Cruzeiro/ Acervo Lucas |
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Rio Cocó, em 1964. |
Sempre montada no Medalhinha, minha avó saracoteava pelos quatro cantos da nobre Fortaleza. Ela gostava de ir na Mata do Cocó ver as lavadeiras com suas cantorias e suas assustadoras histórias de trancoso. Às vezes ela via essas lavadeiras passando pela Aldeota, indo ou vindo para o Cocó, sempre cantando as músicas que a impressionaram.
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Bonde prefixo 126, Benfica, lotado, em 1940. Acervo Lucas |
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Bangalôs na Aldeota em 1937. Acervo Lucas |
Minha avó teve uma vida muito tranquila. Certa feita, em viagem pela então capital federal, seu pai comprou um bilhete de loteria no Rio de Janeiro e, ao desembarcar do navio em Fortaleza, descobriu que o bilhete estava premiado. E teve sua vida transformada.
Com o dinheiro do prêmio, ele abriu uma tipografia. Também comprou uma casa de um quarteirão inteiro na já nobre Aldeota. A casa era tão grande, que tinha espaço para guarda do cavalo Medalhinha, que era muito bem cuidado pela minha avó. Ela fazia questão de picar a comida do cavalo bem miúda pois, segundo ela, o empregado da casa, o escravo liberto Nego Marcolino, não sabia cortar no tamanho correto.
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Aldeota em 1935. Acervo Ápio Pontes |
Acredito que esse dinheiro tenha alçado a família às altas rodas da sociedade fortalezense de então. Minha avó contava que um conhecido de seu pai — do qual não lembro o nome — os recebia em casa com sorvete feito numa máquina de sorvete que tinham em casa. Ela também lembrava das vezes que acompanhando o pai, ainda menina, travou contato com o coronel José Gentil, cujo solar hoje é ocupado pela reitoria da Universidade Federal do Ceará.
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Palacete do coronel Gentil, atual reitoria. |
O conforto alcançado por seus pais foi tamanho que ela e seus irmãos passaram a contar com aulas de inglês em casa. Mr. Door era o professor, nativo de país de língua inglesa (confesso que não consigo lembrar qual era o seu país de origem...). Entretanto, minha avó não estava muito disposta a sentar ao lado do docente da língua de Shakespeare. E, com isso, reclamando que ele tinha um bafo insuportável de café, ela e seus irmãos se esquivavam sempre das aulas. Um dos irmãos que lhe acompanhava na resistência contra Mr. Door era José Patápio da Costa Jatahy, homenageado em 2010, quando teve a Avenida Poeta José Jatahy batizada com seu nome.
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Avenida Santos Dumont - Aldeota, em 1957. |
A família, com a fortuna do bilhete de loteria, passou a frequentar as animadas noites do Clube Iracema, na Praça do Ferreira. Ela sempre ia com seu pai e fazia questão de, orgulhosa, dizer: “A primeira valsa meu pai sempre dançava comigo, e não com minha mãe. Meu pai dizia que eu dançava muito bem”. As noites do Iracema deviam ser realmente muito sofisticadas. Minha avó contava que sempre tinha orquestra ao vivo tocando valsas, foxtrotes, charleston e, eventualmente, tangos, a que ela se referia como argentinos. Inclusive, o ritmo portenho era um de seus grandes desgostos: “Só tem duas coisas que eu não sei dançar: o argentino e o passo”, referindo-se ao tango e ao frevo pernambucano.
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Restaurante do Clube Iracema, no Palacete Ceará. Foto dos anos 20. Arquivo Nirez |
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Um baile no Clube Iracema |
Entretanto, esse fausto foi infinito enquanto durou. Viciado em pôquer, seu pai apostou — e perdeu — tudo o que tinha construído: a tipografia, a casa, o dinheiro e, para desespero da minha avó, seu cavalo: “Eu quase morri no dia em que meu pai vendeu o Medalhinha!”, lamentava ela, décadas depois, ainda com lágrimas nos olhos.
Não sei com que seu pai trabalhava antes de criar a tipografia mas, com sua falência, passou a ser Prático da Great Western. Imagino que a família deva ter sofrido bastante nesse período de vacas magras. Lembro de — já no início da década de 90 — ter presenciado uma discussão da minha avó com a irmã caçula. Na contenda, a irmã afirmava: “Você não viveu a situação de miséria que os irmãos mais novos viveram! Você não passou fome!”.
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Lourdes e o esposo Waldemar Simões no dia do casamento, em 1925 |
É importante lembrar que esses relatos acerca da vida da minha avó são anteriores ao seu casamento, aos 16 anos de idade, em 1925. Ou seja, são fatos ocorridos entre o final dos anos 10 e a primeira metade dos anos 20, do século XX. Eventuais imprecisões são culpa unicamente minha, que só me disponho a descrevê-los hoje, em 24 de junho de 2020, exatos 96 anos depois da foto em destaque e 20 anos depois de seu falecimento, completamente baseado em seus vívidos relatos que ainda me vêm à mente.
Quando nasci, no hoje distante ano de 1972, minha avó já contava com 63 anos. Mas sempre foi muito lúcida, até o seu falecimento no ano 2000 com 91 anos de idade. Quando idosa, sua memória para fatos recentes não funcionava bem e muitas vezes fazia confusão entre coisas recentes e histórias antigas. Ao me ver estudando, frequentemente ela me perguntava se eu estava me preparando para o Exame de Admissão, mesmo que eu já tivesse mais de 20 anos de idade e estivesse estudando para alguma prova da faculdade. Se eventualmente faltava energia, lhe vinham à mente os blecautes que Fortaleza sofria à época da Segunda Grande Guerra e a necessidade de ficar em casa com tudo apagado, a fim de evitar eventuais bombardeios de aviões do Eixo sobre a capital cearense.
E ela viveu assim: contando para mim as histórias de sua juventude com todas as cores e intensidade que os fatos mereciam. Infelizmente, essas histórias ficaram no passado e, a fim de que não se percam para sempre no esquecimento, eu faço questão de expô-las nesse importante canal que é o Fortaleza Nobre.
Marconi Simões Costa.
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Marconi, que texto lindo! Lembro de você falando da sua avó. Há quantos anos não tenho noticias suas, meu amigo.
ResponderExcluirPungente!
ResponderExcluirExcelente matéria!
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