Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

sábado, 26 de outubro de 2024

Boneca Eva - Do fundo do baú III

A Boneca Eva em 1985

Sucesso nos anos 80, a boneca Eva reproduzia o interior do corpo humano.
De bruços, com a cabeça repousada sobre os braços, calça jeans justíssima e longas madeixas louras, ela atraía multidões por onde passava.
Rodou por várias cidades do país (Eu lembro da Eva no estacionamento do Shopping Iguatemi e na Praça Cristo Redentor, de frente para a Igreja da Prainha) e onde quer que fosse, sua chegada era triunfal. Ninguém reclamava de enfrentar filas demoradas para vê-la nem mesmo debaixo de sol escaldante.

Eva era a aula mais divertida de biologia que qualquer criança poderia ter. Com 45 metros, tinha uma porta perto dos pés por onde as pessoas entravam direto para um corredor escuro para conhecer seus ossos, músculos e órgãos. O ponto alto era o bebê que ela carregava na barriga, já prestes a nascer. De um gravadorzinho — nem sempre acionado no momento certo do passeio —, vinham as explicações sobre os sistemas reprodutor e digestivo. Era uma intrigante experiência caminhar dentro de um corpo cheio de cores e luzes de LED.

A Boneca Eva no Estacionamento do Shopping Iguatemi, em 1984.
Acervo pessoal de Ivan Gondim

A boneca Eva era propriedade de Carlos Souza, um empresário do ramo do entretenimento que chegou a viajar com a boneca pelo Brasil por quase uma década.
A boneca foi um investimento um tanto quanto ousado que envolveu 60 homens trabalhando dia e noite durante nove meses seguidos para a sua construção.

— Não sei de ninguém com mais de 30 anos que não conheça a Eva. Ela marcou uma época — afirma o escultor Fernando Quincas de Almeida, de 63 anos, que trabalhou no projeto da boneca gigante, sucesso na década de 1980.

Com outros negócios mais importantes e mais lucrativos (ringue de patinação, por exemplo), Carlos largou a gigante no quintal de uma de suas casas por seis anos até vendê-la ao empresário Rodolfo Acri, que pagou R$ 120 mil pela carcaça da Eva.


— Quando soube da história, nem pensei duas vezes: corri até lá e comprei o que restava dela — lembra Rodolfo.

O preço foi uma bagatela perto do que custou a construção do brinquedo em 1984: Cr$ 500 milhões, valor que atualizado hoje pelo IPCA, índice do IBGE, seria de R$ 1,2 milhão.
 
— O problema foi tirar a Eva daquele lugar. Quando vi que teria que cortar o corpo dela para colocar em três carretas, cheguei a desanimar. Fiquei com medo de ter me metido na maior furada — diz Rodolfo.

O brinquedo foi dividido em 50 pedaços e subiu a serra rumo a Nova Friburgo, onde o empresário é dono do teleférico.
Antes de chegar lá no alto, Eva deu mais trabalho. Rodolfo chamou um conhecido que fazia alegorias de carnaval numa escola de samba no Rio para reformá-la, mas não gostou nada quando viu que os contornos estavam ficando avantajados demais (“Parecia uma passista. Não era o que eu queria”). Um artesão local então foi escalado para a função, que terminou um ano depois.

O empresário Rodolfo Acri posa na boca de Eva

— Ele usou materiais como vergalhão e fibra de vidro e reconstruiu toda a parte interna usando fotos como referência — conta Fátima Acri, filha de Rodolfo e a voz da nova Eva. — Nunca esqueci o dente dela com cárie. Estar aqui é reviver a minha infância.

“Olá, bem-vindo, meu nome é Eva” é a frase de apresentação ouvida logo no começo da visitação, exatamente como anos atrás. Fátima, que é formada em Direito e nunca tinha feito locução antes, treinou repetidas vezes antes de gravar a fala da boneca. 

No espaço onde fica o teleférico, uma das atrações mais famosa da cidade, logo se arrumou um espaço para a boneca Eva. Ela destoava, sim, da paisagem, mas logo passou a receber excursões das escolas da região.

Eva original dos anos 80.
Eva repaginada já funcionando em Nova Friburgo - Crédito da foto


Antes da fase de ostracismo, a boneca repousou no Playcenter, parque de diversões que ficava em São Paulo, durante cinco anos seguidos, até o início de 1989. A residência fixa na capital paulista levanta hipóteses de que Eva não era única e tinha pelo menos uma réplica.

— Exato. Eram duas Evas — revela o antigo proprietário, Carlos Souza.

É isso! Enquanto uma delas “mora” na serra fluminense, os boatos sobre o destino da boneca número dois se propagaram na internet. Há quem garanta que ela foi levada de navio para Portugal, foi atração de um zoológico e acabou virando sucata. Milhas e milhas distante da Europa, Alicia, cara e corpinho idênticos ao da Eva original, é destaque num parque em Guadalajara, no México.


Leia também:

Crédito: O Globo

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Ceará Country Club

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

O Ceará Country Clube foi fundado em 23 de abril de 1924 e tem uma história rica que remonta à colônia inglesa na cidade. Sua criação foi motivada pela necessidade de um espaço para a prática de esportes, especialmente o tênis, em um ambiente social. O terreno foi adquirido da viúva do Comendador Nogueira Accioly, Sra. Maria Teresa de Souza Accioly, em 1922, o que possibilitou a construção de um espaço dedicado ao lazer e à convivência.

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris


Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris


Situado na atual Avenida Barão de Studart, 825, Aldeota, o terreno possuía uma área privilegiada que contribuiu para sua popularidade e acesso.


Desde sua fundação, o Ceará Country Clube experimentou um crescimento significativo e uma diversificação de suas atividades. Inicialmente focado em tênis e natação, o clube expandiu suas ofertas ao longo das décadas, incorporando modalidades como futebol e basquete. Isso transformou o clube em um centro esportivo completo, atraindo uma comunidade diversificada de associados.


Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris


Importância Cultural e Social

O Ceará Country Clube não foi apenas um espaço esportivo; ele se tornou um símbolo da vida social em Fortaleza. Ao longo dos anos, o clube promoveu uma série de eventos sociais, festivais e atividades culturais que fortaleceram os laços entre os associados e a comunidade. Essa evolução refletiu as mudanças sociais e culturais da cidade, tornando o clube uma parte importante da história fortalezense.


Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Robert Maurice Gradvohl e Ivone (Rotamburg) Gradvohl em registro de 1926. 
Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Robert Maurice Gradvohl e Ivone (Rotamburg) Gradvohl em registro de 1926. 
Arquivo Charles Boris


Arquitetura e Projeto


O projeto do clube, desenvolvido pelo renomado arquiteto Sylvio Jaguaribe Eckman, foi uma referência na arquitetura de clubes e espaços de lazer no Brasil. Jaguaribe é conhecido por sua habilidade em criar ambientes que equilibram funcionalidade e estética. O design do Ceará Country Clube incluiu áreas sociais amplas, espaços esportivos variados e a valorização de áreas verdes, promovendo um ambiente agradável e integrado à natureza. Essa abordagem não só ofereceu infraestrutura adequada para a prática de esportes, mas também fomentou um espaço de convivência para os associados.

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris


Reconhecimento e Legado


Em 1947, o Ceará Country Clube foi oficialmente reconhecido como um clube desportivo, ampliando sua gama de atividades. Ele foi um dos fundadores da Federação Cearense de Tênis em 17 de novembro de 1948, juntamente com o Maguari Esporte Clube, o Ideal Clube e o Náutico Atlético Cearense. Também fundou a
 Federação Cearense de Xadrez em 15 de agosto de 1949, com os clubes Diários, Ideal, Iracema, Maguari, Náutico e AABB


Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1926. Arquivo Charles Boris

Registro de 1942. 

Durante a Segunda Guerra Mundial, o clube se tornou um ponto de encontro para soldados norte-americanos, que atraíam a atenção da sociedade local, criando uma dinâmica cultural única.

Notícias da Fortaleza Antiga:








Carnaval anos 50 no Country Clube - Carlos Juaçaba. 


Sirigaddo Country


Em 2020, o espaço do Ceará Country Clube passou por uma transformação significativa e deu lugar ao restaurante Sirigaddo Country e hoje é um restaurante da rede Sal & Brasa.


Registro de 2012


Registro de 2014

Foto Gerardo Barbosa em 2022

Atualmente temos um Restaurante Sal & Brasa no endereço



Agradecimento pelas fotos antigas: Jonathan Castro Jr


domingo, 5 de março de 2023

O dia dos mil mortos

 

"No décimo dia de dezembro de 1878, há 140 anos, Fortaleza viveu o dia mais trágico de sua história. Era o segundo dos três anos da pior estiagem sobre a qual há registros. Flagelados perambulavam pela Capital da então província. A aglomeração, a fome, as condições sanitárias criaram ambiente para a proliferação de doenças. Instaurou-se a epidemia de varíola. Em um só dia, 1.004 cadáveres foram sepultados. A data ficou marcada de forma sinistra na história da cidade como "o Dia dos Mil Mortos"."  Érico Firmo (Jornal O Povo)


Poema de Hélder Campos sobre o fatídico dia:

O DIA DOS MIL MORTOSA grande epidemia de varíola 1877/1879

Desde os mais remotos tempos

Até os dias atuais,

Convivemos com doenças,

Muitas delas bem fatais,

De grande letalidade,

Independente da idade,

Com resultados mortais.


Felizmente para todos,

Foi gigante a evolução,

Da ciência como um todo,

Para o bem do cidadão,

Que se sentiu amparado,

Algo que lá no passado,

Era outra situação.


Agora irei versejar,

Falando da epidemia,

Que devastou Fortaleza,

Matando mil num só dia,

Tempo de grande terror,

Intensa tristeza e dor,

E inacabável agonia.


Mais de cento e quarenta anos,

Do tal acontecimento,

Em nossa amada cidade,

Palco do horrível momento,

Bem triste de sua história,

Lembrança mais do que inglória,

A causar tanto lamento.


Era mil e oitocentos,

E setenta e sete o ano,

Que a nossa Terra da Luz,

Sofreu forte desengano,

Pois pesada epidemia,

A milhares atingia,

Em horripilante plano.


O estado do Ceará,

Por todos é conhecido

Como a terra da estiagem,

De um povo mais que sofrido,

Que pena com a sequidão,

No litoral ou sertão,

Em ritual dolorido.


O fenômeno da chuva,

É incomum neste lugar,

A seca forte e inclemente,

Chega aqui sem avisar,

Mora aqui, se estabelece,

E não adianta prece,

Já que veio pra ficar.


Varíola esse era o nome,

Desse mal devastador,

Também chamada bexiga,

Que causava chaga e dor,

Rapidamente matava,

Ou no mínimo prostrava.

Foi um ambiente de horror.

Operários do sanear localizam parte do cemitério histórico, onde foram enterrados os mortos pela varíola que assolou Fortaleza. Crédito: Edvard Jr

Naquele tempo a cidade,

Quase não tinha hospital.

Para tratar desse tipo,

De enfermidade fatal,

E pra onde eram levados,

Os pobres contaminados,

Dessa mazela letal.


Montaram uns lazaretos,

Leprosários conhecidos.

Hospitais improvisados,

Para esses seres sofridos.

Era pavorosa cena,

Dava realmente pena,

Ver os pobres desvalidos.


E a perigosa varíola,

Foi se intensificando,

Pela falta de cuidados,

Gente se contaminando,

Muito luto aconteceu,

Pois muita morte ocorreu,

E tudo o mais se agravando.


Rumavam pra Fortaleza,

Deste estado, a capital,

A procura de alimento,

De obterem algum sinal,

Que aliviasse o sofrer,

E que pudessem viver,

De modo mais racional.


Mais de cem mil sertanejos

Migraram pra esta cidade,

Fugindo da intempérie

Mesmo que contra a vontade,

A fome e a sede constante,

Era um mal mais que agravante

De real intensidade.


Só trinta mil habitantes,

Possuía Fortaleza,

Nesses anos mencionados

E um cenário de tristeza,

Foi aos poucos se montando,

Com os retirantes chegando,

Logo se teve a certeza.


Nossa cidade não tinha,

Nenhuma preparação,

Pra receber tanta gente,

Pois faltava condição,

De oferecer moradia,

E também vida sadia,

A toda essa multidão.


Parte desses retirantes,

Vieram a se concentrar

Lá na Praça da Estação,

Um conhecido lugar,

Desejavam atenção,

E justa alimentação,

Pois queriam trabalhar.


Só que essa aglomeração,

Foi ficando insuportável,

O acúmulo de pessoas,

Não era nada invejável,

E tudo foi piorando,

Com mais pessoas chegando

Em campo bem deplorável.


Revoltas aconteceram,

Com a carência de alimento,

O governo não podia,

Dar a todos o sustento,

Muitos roubos ocorreram,

Pilhagens se sucederam,

Num lamentável momento.


Como nada é tão ruim,

Que não possa piorar,

Uma doença horrível

Foi ali se instalar.

Um mal de efeito terrível,

Enfermidade temível,

Muita dor veio causar.


Apenas um cemitério

Naquele tempo existia,

Qualquer cristão que morresse,

Só nele se enterraria,

E foi grande o sofrimento,

Imensa dor e lamento,

Com aquilo que acontecia.


Só pra se ter uma ideia,

Dos mortos, a quantidade,

Em apenas um só dia,

Foi gigante a mortandade,

Mil e quatro sepultados,

Infelizes enterrados,

Nessa tal calamidade.


Pra tanto sepultamento

Precisaram contratar,

Coveiros e mais coveiros,

Para esse povo enterrar,

Era um macabro cenário,

Mais que tristonho calvário,

Difícil de imaginar.


Muitos litros de aguardente,

Aqueles homens bebiam,

Pra aguentar o mau-cheiro

Dos mortos que apodreciam

E devido à exposição,

Desses homens em ação,

Dezenas adoeciam.


E mesmo assim o lazareto,

Continuava a receber,

Doentes e mais doentes,

Com muitos vindo a morrer,

Nunca antes nessa cidade,

Viu-se essa fatalidade,

Dessa forma acontecer.


Era tão grande o problema

Que tiveram que apelar,

Mais lazaretos fizeram,

Para mais gente ajudar,

Pois era imensa a procura,

E gigantesca a amargura

Difícil de acreditar.


Essa seca dos três setes,

Foram anos de pavor,

Além da falta de chuva,

Esse episódio de horror,

Com tanta gente morrendo,

Tantas famílias sofrendo,

Vivenciando essa dor.


Mas agora o panorama,

Por certo é bem diferente,

Do vivido no passado

E a saúde é mais presente,

No auxílio à população,

Que precisa dessa ação,

Sobretudo o mais carente.



quinta-feira, 28 de outubro de 2021

A escrava Bonifácia - Por Gustavo Barroso

Fortaleza 1840 - Pena de Morte.


Quando o Joaquim Carpina se apeou à porta de casa no Sítio Mongubeira, além de Arronches, a escrava Bonifácia, que era pessoa de sua inteira confiança, veio para ele em pranto:

- Meu senhor, - disse por entre lágrimas e soluços: - seu Toinho morreu de mordedura de cobra! .... O homem empalideceu e entrou apressado na habitação, atirando-lhe esta pergunta:

- Onde está ele?

- Lá dentro, na camarinha,


Era uma alcova escura, com um bafio de mofo, onde mal se distinguia a rede do enfermo atravessada.

- Toinho! - chamou o pai, aproximando-se.

Silêncio. A rede imóvel.

Nada. Então, apalpou o corpo e o sentiu gelado.

- Está morto! Pobre do meu filhinho! - exclamou, e desatou a chorar convulsivamente.

A escrava de pé, encostada ao umbral da porta, soluçava.

O filho do português Joaquim Marques Vairão, mais conhecido por Joaquim Carpina, devido ao seu ofício de carpinteiro, ainda não completara quatorze anos. estudioso e dócil, era a grande esperança do pai e fazia-se amar por toda a gente. Vinha sempre passar as férias ao sítio, ora com o progenitor, ora sozinho. A escrava Bonifácia, que tomava conta da casa, gostava muito dele.

- Traga uma vela, - ordenou o português depois de algum tempo, dominando o choro.

A luz trêmula e escassa do pavio embebido em cera de carnaúba, contemplou longamente as feições do morto. Olhando o rosto lívido e chupado, imobilizado numa expressão de dor, notou algumas manchas escuras nas faces e no pescoço.

- Que foi isso? - indagou.

Bonifácia respondeu serenamente:

- Seu Toinho, no dia em que foi mordido, tinha levado uns coices de cavalo, quando metia os animais no cercado. A cobra picou o finado de volta de casa.

Chegavam os moradores do sítio e os vizinhos da redondeza do Siqueira, meio caminho de Arronches ao Maranguape. Levaram o corpo para o capiá e puseram-no sobre uma mesa, com velas ao torno. Foi quando a cabocla Ana sussurrou ao ouvido do carpinteiro Vairão:

- Sou capaz de jurar que a Bonifácia matou o menino... a mordedura de cobra é mentira! ....

Semi aturdido pela dor e ainda mais por aquela revelação inesperada, ele perguntou:

- Mas por que haveria ela de matar o meu filhinho?...

- Para que ele não lhe contasse as artes que ela fazia aqui no sítio.

- Que artes?


- É que vosmicê ignora que ela vive amancebada com o mulato Damião, que os dois vendiam de vez em quando uma terça de farinha e furtavam as suas cabras. Seu Toinho desta vez descobriu tudo e ameaçou de contar. A Bonifácia ficou muito irada, passou-lhe uma grande descompostura, agarrou-o pelo pescoço, deu-lhe uns safanões e uma coça. O menino adoeceu da surra. Levou uma porção de dias gemendo que fazia dó. Uma tarde, quando vim buscar água, ele ouviu minha voz e me chamou. Fui lá dentro e o coitadinho me pediu para passar a noite com ele, porque tinha medo de ficar só com a Bonifácia. Fiquei, e ele dormiu sossegado, mas de madrugada a malvada me mandou buscar um tição na cozinha e, quando voltei, tinha falecido. O corpo ainda estava quente... não quero a salvação da minha alma se não foi ela quem o matou!...

Desvairado, o Joaquim Carpina começou a gritar a todos os trabalhadores:

- Segurem a Bonifácia! .... Amarrem essa assassina!....

A escrava, porém, havia fugido. Então, fez selar um cavalo e galopou para a cidade de Maranguape, em busca da justiça.


O cirurgião militar Machado examinou o cadáver por fora e declarou que as manchas do rosto acusavam contusões e as nódoas do pescoço eram de unhadas, sendo certo que a morte se dera por asfixia proveniente de compressão. Não se fez autópsia. Ouviram-se quatro testemunhas. A primeira vira o menino doente, porém não dera fé das manchas devido à obscuridade da camarinha. A vítima lhe contara ter levado os coices e ter sido mordida pela cobra. À segunda, Bonifácia mandara pedir que fosse a Fortaleza participar ao Sr Vairão que o filho se achava mal dos coices apanhados e da picada da serpente; depois, declarara não mais precisar desse serviço por ter enviado outro portador com o recado. Quando essa testemunha estivera no sítio, a cabocla Ana fazia companhia à escrava. Ouvindo-lhe a voz, o menino perguntara lá de dentro: - É você, Manoel? A terceira testemunha foi a própria Ana, que repetiu o que dissera ao carpinteiro. E a quarta já vira o menino morto, tendo ajudado a lavar e vestir o corpo. A escrava declarara-lhe que a morte fora causada por mordedura de cobra e lhe mostrara num dos pés do defunto duas picadas que antes lhe pareceram feitas com alfinete do que com as presas duma jararaca.


A acusada foi presa vagando pela Estrada do Maranguape e submetida a um único interrogatório, esse mesmo diante do júri. Respondeu calmamente que não surrara nem matara o menino, que ele morrera naturalmente das consequências dos coices e da picada, que passara muitos dias doente e que ela avisara em tempo ao pai. Mais nada. A confissão do crime ninguém lhe arrancou.

O tribunal popular não quis, contudo, saber se o processo tinha falhas graves, se as testemunhas eram insuficientes, se seus depoimentos se mostravam parciais, hesitantes ou incompletos, se o exame cadavérico fora imperfeito e se a ré negava o crime. Era o ano da Graça de 1840 e tratava-se de uma escrava. Foi condenada à morte.

Fotografia da Cadeia Pública de Fortaleza em 1964 - Acervo do IPHAN.

Presa na Cadeia Pública de Fortaleza, a infeliz esperou resignadamente o desfecho de seu triste destino. Uma noite, deitada numa esteira rente ao muro do calabouço que dava para a rua, pensava na sua vida desditosa, quando ouviu para lá e para cá os passos da sentinela que rondava aquele lado do presídio. Uma luz se fez no seu espírito: - Essa parede, pensou, deve ser muito fina, para eu poder escutar esses passos. Arrancou da caliça um prego que servia para pendurar roupa e se pôs a descascar o reboco. Em poucos minutos descobriu os tijolos. Escutou. Os passos haviam cessado. Atacou os interstícios herdados de argamassa e, em menos de meia hora, um buraco pelo qual podia passar a cabeça.

Antiga rua Amélia

Rua Amélia - Atual Senador Pompeu

Registro feito de dentro da cadeia, vendo-se
o anexo da Estação Central. Anos 70.
Crédito: Eugênio Arcanjo
Silêncio e luar. O ar iodado do oceano acariciou-lhe levemente o rosto. Na noite clara, boiavam os perfumes sutis da natureza. Os oitões caiados das casas esparsas da rua Amélia pareciam de prata. O alísio brando agitava devagar a folhagem escura das ateiras. Sentada na guarita do canto da cadeia, com as pernas estiradas para fora, a sentinela dormia a sono solto, ressonando alto como um justo. Bonifácia tirou mais alguns tijolos e conseguiu sair da prisão. Espreguiçou-se com a volúpia da liberdade. Junto ao soldado, encostada à parede, a espingarda reiuna de bandoleira branca. A escrava tomou-a e, agachando-se pela sombras dos ateiros, fugiu na direção do Cemitério de São Casimiro.

No dia seguinte, a notícia alvoroçou Fortaleza. O inspetor da Cadeia de Correição participou ao general José Joaquim Coelho, residente na província, o acontecido, declarando julgar seu presídio impróprio para guardar certos criminosos, pois as paredes eram feitas de "barro e tijolo", podendo ser "arrombadas até com um prego", e pedindo providências para ser tapado o buraco.

Rebuliço nos meios oficiais. A sentinela culposa a pão e água na solitária. O inspetor da Correição recebeu do carcereiro João José Saldanha Marinho o seguinte: "Participo a Vossa Senhoria que foi arrombada a cadeia das mulheres esta meia noite pela sentenciada Bonifácia, a qual se evadiu pelo mesmo rombo que havia feito, por se achar a sentinela dormindo, e de tal modo que deixou furtar a granadeira". E os pedreiros consertando o buraco entre as chufas dos basbaques que vinham admirá-lo. E as patrulhas de linha e de permanentes a percorrer os arredores da cidade, a bater os matos, a devassar areais e praias em busca da criminosa.

Dois dias depois, a 30 de julho, alguns soldados a agarraram no caminho da Jacarecanga para o Urubu, fingindo-se de lavadeira, com uma trouxa de roupa à cabeça. Voltou à prisão e foi algemada, ficando de sentinela à vista.

No dia 21 de setembro recolheram-na ao oratório e no dia 22 marchou para o patíbulo através das ruas principais da cidade, sob o ouro do sol radioso e o dolente badalar dos sinos. O carrasco Pareça segurava a corda, o juiz Samico mostrava-se imponente sobre um corcel alazão e o escrivão, ao lado, de vez em quando berrava:

- Justiça que manda fazer o júri da capital na ré Bonifácia, escrava de Joaquim Marques Vairão e assassina do filho deste, para que sofra na forca morte natural!

Seguia-se a leitura da sentença.

Antigo Arronches
A multidão rodeava a forca no Largo do Paiol em frente da muralha verde do mar que se interpunha entre a alvura puríssima das dunas e o azul luminoso do céu. Silenciosa, calma, com as pernas enfiadas numas calças velhas, a ré subiu os degraus do cadafalso. O carrasco tapou-lhe o rosto com um lenço e a enforcou.

Por que a cabocla Ana a teria denunciado? Única testemunha que precisou os fatos não teria caluniado a outra? O segredo, acusada e acusadora levaram para o túmulo, uma na fossa comum dos enforcados do antigo cemitério da Fortaleza, onde hoje se ergue a , a outra na vala dos deserdados de Arronches ou do Maranguape.


Fonte: Revista Excelsior (1940) - Gustavo Barroso
Crédito: Antônio Neto

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