Abrigo em 1958- Nirez
Dar um “pulinho” no Abrigo Central era quase sagrado para muitas pessoas que viveram em Fortaleza até o final da década de 1960. Relembrar o “Velho Abrigo”, construído na administração do prefeito Acrísio Moreira da Rocha, em 1949, para ser um ponto de ônibus, não é muito esforço para quem passou ali muitos momentos da juventude. Isso é tão significativo, que seu Ivan Cavalcante, 70, sócio de uma loja de discos* no Abrigo Central, afirma que se a casa dele “tivesse um vão desocupado iria construir uma maquete do Abrigo Central, não do tamanho dele, que é impossível, mas uma maquete com todos os pontos, com tudo o que funcionava”.
Registro dos anos 50. Marcos Siebra
Exemplo dessa saudade é também o que nos revelou seu Pedro Moreira, 74, frequentador do Abrigo. Segundo ele, ir àquele espaço incrustado na Praça do Ferreira, era essencial para finalizar bem o dia, depois da jornada de trabalho. Seu Pedro afirmou que “o Abrigo Central era o ponto de encontro. Se você queria encontrar um amigo, você podia ficar ali à espera que aquele amigo tinha que passar”, mas, além disso, podia ainda namorar e concorrer aos sorteios de carro que aconteciam ali.
Mas o que o Abrigo tinha além de ser um ponto de espera de ônibus para que tantas pessoas o frequentassem? Casas de merenda, loja de discos, loja de selos, tabacarias, cafés, confeitaria, engraxates. Para seu Mário Cidrack Filho, 62, que, ainda criança, trabalhava com seu pai na confeitaria que levava o sobrenome da família, o Abrigo “era a referência”. Ele explica que “lá dentro do Abrigo tinha de tudo”.
Construído para ser o maior abrigo para passageiros de ônibus do norte e nordeste do Brasil, logo depois de inaugurado, o Abrigo Central ganhou apreço da população de Fortaleza. Como possuía várias casas de comércio, ir ao Abrigo para pequenas compras ou apenas para encontrar os amigos era comum.
Muitas histórias surgem ao longo das conversas quando pedimos às pessoas para voltarem no tempo e entrarem, através da memória, mais uma vez no Velho Abrigo. Uma dessas histórias foi contada por seu Mário Cidrack. Ele disse que houve uma época em que o que mais se vendia na confeitaria de seu pai era uma bolacha e nos contou como era feito esse comércio: “na época tinha aqui em Fortaleza uma bolacha chamada Jubaia, de Maranguape. E aquilo ali você comprava cem quilos dela hoje, quando fosse de noite você não tinha mais um quilo. Era uma loucura, vinha gente de todos os bairros de Fortaleza para comprar essa bolacha”.
E não era só a bolacha que fazia o sucesso do Abrigo. Lá também era possível encontrar outras delícias da culinária, como as vitaminas, sucos e sanduíches. Abacatadas, sucos de cajá, graviola, tamarindo, eram pedidos durante todo o dia nas várias casas de merenda. Mas, para o acompanhamento nada melhor que um “cai-duro” ou um “espera-me no céu”. Estes eram os nomes dos sanduíches que alimentavam os frequentadores do Abrigo. Por que esses nomes diferentes? Talvez por conta do risco que as pessoas corriam ao comê-los.
Não é possível deixarmos de fora outra sensação da época: a bananada. Ela era tão consumida no Abrigo Central que virou apelido de um dos donos de lanchonete: o Pedão da Bananada. Ele se tornou o comerciante mais conhecido do Abrigo. Além de vender bananadas, o Pedão era torcedor fanático do Ceará.
Café era algo também indispensável no Abrigo Central. Sempre, depois das merendas, ele era pedido certo, tão certo, que até mesmo as colheres que eram usadas para mexer o café viraram notícia, como nos falou o jornalista Luís Campos, 85: “O Edelberto Góis era dono de um café no Abrigo. O pessoal chegava, o cafezinho era 10 centavos, 20 centavos. Ele botava ali o açucareiro, a colherzinha e tal. Então, o pessoal, por desonestidade, tomava o café, a colherinha era uma colherinha pequenininha, barata, era de alumínio. Pegavam a colherinha, botavam no bolso e levavam pra casa. O que é que o Edelberto fez? Pegou as colherinhas, mandou para uma metalúrgica e furou as colherinhas, fez um buraco. Então o sujeito mexia, dava para mexer, mas não adiantava levar para casa. E eu fiz uma crônica sobre isto: A Colherinha do Abrigo”.
Não podemos esquecer, ainda, as personalidades que frequentavam o Abrigo: políticos, jornalistas, radialistas. Pessoas famosas que passeavam por Fortaleza também não deixavam de dar uma passadinha naquele lugar. Seu Ivan lembra de alguns artistas que foram à loja de discos: “Bienvenido Granda, cubano, Carlos Gonzaga, Alcides Gerardes, que já morreu, Ari Lobo, quando lançou o ‘Vendedor de Caranguejo’, e Anísio Silva, quando apareceu na mídia”.
Mulheres também iam ao Abrigo, mas com menor frequência que os homens. Dona Conceição Santos, 74, diz que “o Abrigo era muito movimentado, sempre tinha muita gente, mas eu só passava por lá quando ia para o centro, tomava um café e seguia. Quem ia muito mesmo era meu marido, porque lá era mais um lugar para os homens se encontrarem”. Entretanto, seu Mário lembra que “tinha muitas senhoras que compravam na confeitaria” e até algumas moças trabalhavam no box do Café Walcan.
Por tudo isso, o movimento no Abrigo Central, segundo os que lá passaram, era muito grande. Seu Oriel Oliveira, 74, lembra que “ali, quatro horas da tarde, cinco horas da tarde, ficava cheio … época de carnaval era aquele pessoal todo ali fantasiado, era aquela folia”. Seu Pedro também recorda os períodos festivos. Ele lembra que “se vendia muito artigo pra festejo, coisas que o pessoal usava pra brincar carnaval e São João”.
Além disso, outro artigo rememorado por quem vivia no Abrigo Central era o aparelho de televisão. Segundo seu Mário Cidrack, foi o pai dele quem levou essa novidade para o Abrigo: “ele comprou um aparelho televisor e colocou no centro do Abrigo Central, mandou fazer um suporte e colocou lá”. Seu Ivan também lembrou da televisão. Ele disse que o aparelho foi doado na época da Copa, para que os frequentadores do Abrigo pudessem acompanhar os jogos da seleção canarinho.
Confeitaria Cidrack
Mesmo com todas essas peculiaridades, o Abrigo foi alvo de disputas políticas. Desde meados dos anos 1950, pouco tempo depois de sua construção, a permanência daquele espaço na Praça do Ferreira começou a ser questionada. O jornalista Luís Campos, que à época escrevia para o jornal Gazeta de Notícias, defendia que o Abrigo continuasse de pé. Entretanto, em 1966, durante o governo de Murillo Borges, já no período ditatorial, o Abrigo Central, palco de tantas histórias e marcado no coração de tantas pessoas, foi ao chão.
Para seus frequentadores isso foi o fim da Praça do Ferreira, o fim do Centro. Seu Pedro diz que “se o Abrigo ainda existisse, acho que eu ainda passeava muito por lá”. Ele afirma ter apagado da memória o dia em que demoliram o Abrigo. Já seu Oriel lembra bem. Ele conta que assistiu a derrubada. Segundo ele “dinamitaram”. Seu Ivan levanta a ideia de que o centro teria acabado depois dessa demolição. Ele diz que “quando acabou o Abrigo, acabou a cidade de Fortaleza, ela apagou”.
E, dessa forma, mesmo sem mais nenhum vestígio físico do Abrigo, já que a Praça do Ferreira, quando foi reformada, em 1967, no governo de José Walter, tomou todo o espaço no qual ele era fincado, é fácil observar que ele continua bem vivo na memória dessas pessoas que dedicaram um pouco de suas vidas a matar ali o tempo que passa.
O Amigo ‘Pedão’
Quem frequentou o Abrigo Central ou mesmo quem apenas passou por Fortaleza durante as décadas de 1950 e 1960 com certeza ouviu falar em uma das personalidades mais conhecidas da cidade naquela época: o ‘Pedão da Bananada’.
Seu verdadeiro nome, difícil saber. O apelido, entretanto, não vem apenas da bananada, mas também da aparência de Pedão. Seu Pedro Moreira lembra a fisionomia do amigo: “Ele andava todo de branco. O sapato, a roupa. O Pedão era divertido. Um cara bem parecido, bem alto”.
Pedão era um dos comerciantes mais antigos do Abrigo Central e foi também um dos que mais tempo permaneceu ali. Dono de uma casa de merendas, em que se vendiam vitaminas, Pedão ficou conhecido pela bananada. Mas, outro fator contribuiu para que a fama do comerciante se espalhasse. Nas palavras de seu Pedro: “ele era um torcedor ardoroso do time do Ceará”.
Pedão da Bananada em frente ao Abrigo
Segundo seu Pedro, o box em que funcionava a casa de lanches do Pedão não era muito grande, mas era suficiente para reunir um grande número de torcedores do Ceará, que discutiam, ali, o desempenho do time nos jogos. Seu Mário Cidrack conta que a paixão de Pedão pelo time era tão grande que o contagiou: “Pedão era amigo mesmo de meu pai, ele me carregou no braço, me fez torcer Ceará. Era ele quem me levava para o estádio, porque meu pai era torcedor do Fortaleza e ele torcedor do Ceará. Então, sempre que ele podia, ele me carregava para o estádio. Aí, eu comecei a torcer Ceará por causa dele”.
Seu Mário Cidrack lembra ainda das brigas entre Pedão da Bananada e Bodinho, outra figura folclórica que tinha uma banca de revistas na Praça do Ferreira e era torcedor do Fortaleza. Segundo seu Mário, quando Bodinho entrava no Abrigo Central e se dirigia para o Box do Pedão, era confusão na certa: “O Bodinho aparecia de repente, começava aquela gritaria… Você olhava, parecia que eles iam se matar, daqui a pouco estavam brincando. Naquele tempo o pessoal sabia fazer a diferença entre a amizade esportiva e a pessoal. Eles não chegavam a ponto de chamar um de canalha, era só futebol mesmo”.
Além das brigas por futebol, outra atração do Box do Pedão foi rememorada por seu Mário: as apostas. Ele explica que era no Box do Pedão que as pessoas se juntavam para fazer apostas. Cada um escolhia um time e apostava em quem iria ganhar o próximo jogo. O dono do Box era o responsável por administrar as apostas. Ele anotava em quem as pessoas estavam apostando e pegava o dinheiro. Depois do resultado ia lá e entregava a quantia ao ganhador.
Mesmo com toda a fama que Pedão adquiriu enquanto trabalhava no Abrigo Central, o comerciante foi um dos mais prejudicados com a demolição daquele espaço. Não apenas porque era dali que ele tirava o sustento, mas também porque o Abrigo era a segunda casa de Pedão.
Os amigos contam que o fim do Abrigo foi também o fim de Pedão. Seu Ivan Cavalcante diz que “O Pedão morreu na miséria. Ele foi pro Maranhão. Quando ele voltou veio com um balcãozinho de tabacaria, muito na decadência já, de vida e de saúde. Aí arranjaram a porta do cartório pra ele ficar vendendo cigarro. Dali… fim da história dele”.*
Não há registro da data da morte de Pedão. Entretanto, na edição do Jornal O Povo, de 08 de janeiro de 1984, a carta de um leitor, chamado Waldir Ribeiro, pede que a diretoria do Ceará promova um jogo amistoso para que a renda seja revertida em ajuda para Pedão. Segundo o autor da carta, Pedão, que tanto havia ajudado ao clube, àquela época se encontrava “pobre, velho, esquecido e até desprezado pelos falsos amigos, escapando à fome vendendo cigarros em uma das ruas centrais de Fortaleza”.
Todos os que o conheceram não deixam de vincular a morte de Pedão à demolição do Abrigo. Seu Oriel afirma que “a derrubada pra ele foi como uma morte. Eu acho que ele morreu mais em consequência disso”. Entretanto, para quem frequentou o Abrigo e, principalmente, o box do Pedão da Bananada, ele continuará sendo “o tal ali do Abrigo”, como nos disse seu Pedro.
As Eleições e o Abrigo Central
O Abrigo Central, segundo quem o frequentava, foi, durante todo o seu período de existência, um espaço importante para a política local. Ali, passavam muitos políticos, já que a Assembléia Legislativa do Ceará funcionava onde hoje fica o Museu do Ceará, na Praça dos Leões, bem próximo ao espaço em que se localizava o Abrigo.
Um dos que mais passeavam pelo Abrigo, seja para tomar café ou encontrar outros políticos, era o prefeito Acrísio Moreira da Rocha, responsável pela construção do espaço. Além dele, seu Ivan recorda outros políticos que eram assíduos: “ali passou o Faustino de Albuquerque, o Cordeiro Neto, Acrísio, até o próprio Murillo Borges, Raul Barbosa”. Seu Ivan complementa afirmando que “a gente conversava com eles como a gente está conversando aqui, normal”.
Prefeito Acrísio Moreira da Rocha no Abrigo
Essa frequência de políticos no Abrigo fazia dele um lugar especial no período de eleições. Em meados da década de 1950 foi instalado no Abrigo o placar em que eram dados os resultados parciais das eleições. Seu Pedro explica como isso acontecia: “O placar era em cima do Abrigo. Tinha aquele placar e era todo tempo saindo o resultado das eleições. O pessoal ficava tudo sentado no banco da Praça e olhando pro placar. Saía 6 horas da manhã, meio-dia, 6 horas da tarde, o resultado. E o último, parece que era 8 ou era 9 horas, porque mudava todo tempo”.
Segundo seu Pedro, as pessoas ficavam sentadas nos bancos da Praça do Ferreira o dia inteiro, esperando as mudanças no número de votos, até que fosse divulgado o resultado final do pleito. Ele lembra que “quando dava um resultado que um candidato passava do outro havia toda uma manifestação”.
Essas manifestações podiam ser também de raiva. Segundo o memorialista Abelardo Montenegro, na eleição de 1954, ano em que foi instalado o placar no Abrigo Central, quatro “indivíduos” subiram no placar e o destruíram, pois o resultado estava sendo favorável para um candidato que não era o preferido dos frequentadores do Abrigo.
Além disso, segundo o memorialista Alberto Sá Galeno, outro fato que relaciona o Abrigo Central com o período das eleições é a candidatura de Mário Rosal, frequentador do Abrigo, que concorreu à prefeitura de Fortaleza em 1954. O símbolo da campanha de Mário era o facão, que deu a ele o apelido de “Velho do Facão”. Ex-funcionário da Inspetoria de Obras contra as Secas, Mário Rosal obteve cerca de 10 mil votos dos frequentadores do abrigo.
Ainda segundo o memorialista Alberto Sá Galeno, as eleições de 1954 foram marcadas também pelo comércio de votos. Ele conta, em seu livro “A Praça e o Povo” que, dentre os que desejavam comprar votos, existia um “aloucado”, que ficou conhecido como “Prefeito” que ia ao Abrigo oferecer votos em troca de sucos e sanduíches.
Por conta de todas essas manifestações, os frequentadores do Abrigo afirmam que ali era o espaço ideal para conseguir votos, por isso que tantos políticos andavam por lá, como nos diz seu Oriel: “Era o encontro que eles tinham com o povo, eles tinham esse encontro com o povo no Abrigo Central”.
Saudades do Centro, da Praça e do Abrigo Central
As conversas nos bancos da Praça do Ferreira e os encontros no Abrigo Central, característicos da época em que a cidade de Fortaleza era chamada de ‘Loura desposada do Sol’, hoje, se constituem apenas em lembranças dos que viveram ali muitos momentos de suas vidas.
Para os frequentadores do Abrigo, o principal fator que levou ao que eles acreditam ter sido o “fim” do centro da cidade foi a demolição do Abrigo Central. Segundo seu Ivan, “Fortaleza era bom demais, até essa época, porque quando mudou de lá pra cá acabou-se tudo, pois modificaram a Praça”.
A reforma da Praça do Ferreira foi feita em 1967, já no governo de José Walter Cavalcante. Segundo seu Mário, a demolição do Abrigo não era necessária para que acontecesse uma modernização da Praça do Ferreira. Para ele “bastava reformar, colocar policiamento, porque alegavam que tivesse marginais, mas não tinha essa violência que tem hoje. Se você olhar hoje a Praça do Ferreira, no lugar do Abrigo Central nunca teve nada, colocaram umas bancas de revista. Eles simplesmente tiraram do local e não construíram nada. Por bons anos ficou só o chão. Depois que transformaram numas 5 bancas de revista, sem necessidade”.
Seu Oriel também concorda com a opinião de seu Mário. Segundo ele “a Praça do Ferreira, naquela época, era mais bonita do que hoje. Era mais humana. Com aquela mudança que o José Walter fez, aquele jardim suspenso, pra mim, ali, acabou-se a Praça do Ferreira”.
Já seu Pedro afirma que a reforma feita pelo prefeito José Walter “era uma marmota, deformou a Praça”. Para ele, com a demolição do Abrigo, o centro de Fortaleza “foi totalmente descaracterizado, perdeu muito. É tanto que os próprios comerciantes tão fugindo de lá, porque não tem mais o movimento que tinha”.
Seu Ivan diz que hoje a Praça do Ferreira “está morta”. Já seu Pedro diz que é também por falta de segurança que as pessoas não tem mais interesse em ir ao centro: “eu sinto muita falta de segurança e tenho muita tristeza por isso. É tão difícil a situação da gente, que é até difícil se relacionar. Naquela época não, você não andava assustado, você andava tranquilo, roubo de carro não existia, assalto não existia… hoje a vida é difícil”.
*A Casa de discos do Abrigo Central, era de propriedade de Kleber Alves Cavalcanti (já falecido), irmão de Ivan Cavalcante. Após a queda do Abrigo, o senhor Kleber Cavalcanti teve serios problemas para se reerguer, mas com muita força de vontade e persistência, conseguiu ser funcionário por mais de 20 anos da Coelce, mas sempre notava-se a saudade que ele tinha dos tempos de comércio do antigo Abrigo.
Maravilhosa pesquisa realizada por:
* O comerciante Pedro Alves da Silva, o Pedão da bananada, morreu em 09 de dezembro de 1984.