“Aos
poucos, os atos mais tocantes e piedosos da Semana Santa, vão desaparecendo,
consequências dos Concílios Ecumênicos Vaticanos I e II. Lembro-me, menino de calças curtas ainda, na
católica Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, com elevada devoção, assistia,
juntamente com outros moleques do meu tempo, a chamada “Procissão do Encontro”.
O velho Fabrício, sineiro
da diocese, agarrava-se às cordas que pendiam dos gigantescos sinos de bronze,
e, em dobrados graves e solenes, promovia a divulgação da saída do préstito do
Senhor Bom Jesus dos Passos, que, no dia anterior, havia “fugido” para a Capela da Santa Casa, como que simbolizando a retirada do Cristo, para a sombria
solidão do Horto das Oliveiras.
Em igual tempo, da Igreja do Rosário, construída em 1730 pela comunidade negra, partia a imagem de Nossa Senhora das Dores, que minha falecida avó, Martinha Maciel e outras consanguíneas
da irmandade, haviam vestido com um manto de cor violácea. Essa estátua
chamava-me deveras a atenção, porque tinha o coração trespassado por um alfanje
de prata.
Naquela época, eu não
entendia bem, o que aquilo tudo significava, por mais que vovó, com toda a
paciência desse mundo, me explicasse dizendo tratar-se de "uma espada de
dor".
Desta forma, ambos os
cortejos, oriundos de lugares opostos, com acompanhamentos, a se perderem de
vista, convergiam para o Paço Arquiepiscopal, onde as estampas se encontravam,
ficando uma em frente da outra: Mãe e Filho.
O andor do Senhor Bom
Jesus dos Passos era enorme e bastante pesado. Vestia uma túnica roxa bordada
em ouro, e, na cabeça, prendendo os longos cabelos em cachos, via-se uma coroa
cheia de espinhos agudos. A face, exprimindo dores atrozes, estava banhada em
sangue.
Uma enorme cruz negra
contrapesava sobre os seus ombros. Nos quatro cantos da padiola de jacarandá,
carregada nada mais, nada menos, por oito homens, sobressaiam enormes ramos de
alecrins aromáticos. O percurso desta escultura, durante toda a comitiva
pomposa, sempre se dava mais longo que o outro, visto que teria de visitar os
"Sete Passos".
Foto colhida da janela do andar superior do Hotel Bitu, de Bartolomeu de Oliveira. Arquivo Nirez
Ao lado, belíssimo Cartão Postal da então Praça D. Pedro (Caio Prado). Ao fundo, o famoso Hotel Bitú.
O Primeiro deles,
conhecido como a “Oração no Horto”, por muitos anos aconteceu no
"hall" do Hotel Bitú, na Praça Dom Pedro II. Em cada um desses
"Passos", o coro do Seminário, constituído por vozes mistas de
soprano, contralto, tenor e baixo, detinham-se e entoavam o "Stabat Mater Dolorosa”.
A pregação, seguida da
bênção do Santo Lenho, constituía-se no ponto terminal daquela festividade. E
recordo-me que o discurso -, por sinal longo e às vezes enfadonho -, acabava
pronunciado por um orador sacro de renome, que geralmente vinha de São Paulo ou
do Rio de Janeiro. Guardo nitidamente na minha memória, o exórdio de um
daqueles vaticínios: "O vos omnes qui transitis per viam, atendite et
videti si est dolor sicut dolos meus...".
O cerimonial da Semana
Santa iniciava exatamente quarenta dias após a páscoa, às nove horas em ponto,
sem nenhum tipo de atraso e, terminava no Domingo de Ramos, quase ao meio dia.
Realmente, sete dias inteiros, com um conjunto típico de formalidades bonitas
de ser visto, notadamente a chamada Missa Pontifical, celebrada pelo então
arcebispo metropolitano, Dom Manoel da Silva Gomes.
Toda a corporação de
sacerdotes, regular e secular, freiras, os irmãos da opa (capas roxas e golas
vermelhas, sem mangas, com aberturas por onde se enfiavam os braços) e o povo,
em geral, recebiam das mãos daquele Antífice, os ramos bentos ornamentados de
flores e papel de seda colorido.
A seguir, vinha a
"Quarta-feira de Trevas". Às dezenove horas, a velha Sé, apinhada de
gente, acompanhava o Oficio das Trevas, O conjunto vocal do Seminário da Prainha, dirigido pelo jovem padre Joaquim Horta (Lazarista) trauteava, em
"cantochão" essencialmente monódico o “De Lamentatione Jeremiae Prophetae”.
Seminário da Prainha
Em paralelo, um irmão da
ordem ia apagando, uma a uma, as treze velas que se encontravam acesas num
grande castiçal preto, em forma de triângulo. De repente, todas as luzes da
Catedral se extinguiam e, a derradeira, simbolizando o Cristo, se via, então, retirada
acesa daquele candelabro e conduzida, em meio à escuridão, para detrás do
altar.
Durante o "Pater Noster", rezado pelo
Arcebispo e igualmente pelos seminaristas, os fieis, ao som dos tímpanos,
provocavam uma série de ruídos ensurdecedores, batendo no soalho, cadeiras e
livros evocando os bulícios provocados pela tragédia do Calvário.
Quinta-feira, a benção dos
Santos Óleos. A cura da Sé, Monsenhor Luís Rocha e todos os vigários das mais
diversas paróquias de Fortaleza sopravam suavemente sobre os vasos que
continham o “óleo” dos catecúmenos, tendo, antes, feito três inclinações
respeitosas, pronunciando as seguintes palavras: "Ave Sanctum óleum", aumentando de voz, à medida que iam se
aproximando do sólio pontifical.
Eu achava muita graça dos
padres velhinhos, vozes trêmulas e vacilantes, quase não conseguiam inclinar-se
para pronunciarem aquelas invocações. À tarde, normalmente a Sé se enchia de
gente para a cerimônia do lava pés. Muitos se acotovelavam para ficarem perto
dos doze mendigos e observar se o Celebrante beijava, mesmo, os pés dos
pedintes e folgazões que representavam os apóstolos.
Nesse tom de momentos
imperdíveis, solenes com a Quinta-feira, eram também a Sexta–feira, com a
procissão do Senhor Morto, o sábado da Aleluia, com as descobertas dos Santos e
o Domingo da Ressurreição com o Pontifical Soleníssimo e, com a entrada
majestosa do Senhor Arcebispo, sob os acordes de "Ecce Sacerdos Magnus".
Deixo aqui -, senhoras e
senhores, Ad Perpetuam Rei Memoriam -, um pequeno e resumido quadro
do muito que acontecia na Semana Santa, das missas realizadas em latim, das procissões, das quermesses, enfim, dos
meus idos de garoto e, evidentemente, da Fortaleza querida (terra de minha
falecida avó Martinha Maciel) dos meus eternos sonhos de adolescente."
Aparecido Raimundo de Souza
De Vila Velha Espírito Santo ES.