Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Anos 60
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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domingo, 17 de agosto de 2014

O transporte coletivo em Fortaleza - Entre 1945 e 1960 (Parte IV)




Os tramways de Fortaleza foram paralisados numa segunda-feira, 18 de maio de 1947, enquanto o capitão Josias* procurava solução para a crise da companhia inglesa junto com as autoridades no Rio de Janeiro. Findo o prazo de cinco dias, a empresa anunciou o prolongamento da suspensão dos bondes por mais alguns dias. Depois, publicou que precisaria de três meses para concluir os reparos na usina.

No final do mês de maio, as esperanças de que os bondes elétricos voltassem ao tráfego pareciam sepultadas, uma vez que o Ministro da Agricultura recomendara como prioridade manter-se o serviço de luz e força para a indústria de Fortaleza. Segundo o capitão Josias, isso só seria viável se a Light se dedicasse exclusivamente a ele.

Além disso, havia a forte possibilidade de ser suspensa a intervenção federal, legando a companhia à própria sorte. Por isso, o capitão Josias começou a montar uma engenharia de recuperação mínima. Visitou a embaixada inglesa, acertando a importação de um novo motor para substituir as caldeiras de força danificadas. Marcou audiência com o Presidente Dutra (Foto ao lado) para pedir-lhe uma subvenção e transformar a Light numa empresa de economia mista, com a participação de brasileiros e britânicos. Finalmente, calculou faturar mais de 800 mil cruzeiros com a venda dos trilhos aos ferro-velhos de Fortaleza, criando receitas para quitar as obrigações com os trabalhadores do tráfego.

Sem que as autoridades ensaiassem qualquer desfecho, durante junho e julho de 1947, os trabalhos para a recuperação do material da usina prosseguiam em Fortaleza


Nesse tempo, quem mais sofreu com a situação foram motorneiros e condutores. Há mais de um mês sem trabalhar, prejudicados pela postura titubeante do Governo e da direção da empresa, eles recebiam metade dos salários, sem perspectivas de retorno aos volantes ou de afastamento da Light para se engajarem em outra ocupação. Logo eles se reuniram no sindicato, lançando manifestos e apelando para a solidariedade das “demais classes 
cearenses no movimento que empreendem para serem tratados de maneira mais condigna”

A publicação das queixas nos jornais gerou réplicas da gerência da empresa, que argumentava que os salários de no mínimo Cr$ 12,20 eram mais elevados que o mínimo industrial da cidade.

Em 30 de julho, tanto patrões quanto trabalhadores já não acreditavam na retomada dos bondes elétricos, mas parecia certo que a Light arcaria com os custos das demissões ou ofereceria qualquer tipo de indenização aos empregados. Em entrevista à Gazeta de Notícias, o presidente do sindicato, seu Otávio Sebastião da Silva, desmentiu uma afirmação do capitão Josias de que fizera um acordo no qual os trabalhadores aceitariam receber somente 70% ou 75% das suas rescisões de contrato. Segundo ele, os operários “não desejavam indenização e sim trabalho, o que [significava] dizer que [poderiam] ser admitidos pela Companhia em qualquer serviço”.

De fato, os bondes não voltaram às ruas e o provisório se tornou definitivo. E não houve recolocação de pessoal no quadro da empresa. Ao voltar do Rio de Janeiro, o capitão Josias anunciou a demissão dos 311 operários do tráfego.

Sem emprego e com o dinheiro da indenização – que chegaria a cerca de Cr$ 3 milhões, eles pretenderam montar uma empresa de ônibus, como que antecipando o legado do transporte da Light à cidade. Seria a primeira empresa desse tipo montada exclusivamente por trabalhadores no Brasil



Se houve quem sentisse a falta dos bondes, foram poucos os argumentos defendendo sua superioridade em relação aos ônibus. Os defensores dos tramways não negavam o “estado lastimável em que se encontram os veículos da Ceará Light, que, em sua grande maioria, rodam ininterruptamente desde 1913, encontrando-se assim num estado de extremo desgaste”. Construíam um discurso benevolente, porque, na ameaça de vê-los fora de circulação, era possível declinar de algumas exigências. 


Bonde de tração animal passando entre o Colégio Jesus Maria José e a Igreja do Pequeno Grande. - Foto do Álbum Boris. - Arquivo Nirez

Espera-se na linha o veículo [bonde elétrico]. A demora não é deste mundo, porém, logo que o mesmo se aproxima, todos ficam satisfeitos na certeza que o pobre animal, embora cansado, conduzirá os passageiros aos pontos destinados.


Antigo bonde de tração animal

Os bondes estavam no afeto popular como símbolos da cidade antiga, que ainda ensaiava seus passos na modernidade. Representavam quase uma resistência silenciosa às tecnologias do segundo pós-guerra

Estou decepcionado, Vicente Roque, com o fato de vê-lo colocado na fila dos que não querem mais bondes na nossa velha cidade. Admira-se que você, um cronista popular, nascido no século XIX e amante das coisas velhas, das modinhas ao violão e das serenatas, das coisas, enfim, que o nosso tempo levou, não queira mais bondes, porque estes 
são velhos e desengonçados.


Bonde de tração animal puxados por burros,
implantado em 1880 em Fortaleza. Foto: Acervo Nirez

E se a suspensão do tráfego de bondes e a encampação da Light pela Prefeitura não foram alternativas às demandas das ruas, certamente responderam aos problemas internos da própria companhia, cuidadosamente esquadrinhados pelo capitão Josias Ferreira Gomes. Nesse sentido, foram evidências da superação do antigo modelo de exploração do transporte, tanto do ponto de vista da reordenação econômica dos serviços públicos quanto das novas relações entre os poderes públicos e sociedade depois do Estado Novo e das construções culturais de progresso. 

Em 01 de junho de 1946, é Decretada, pelo Governo Federal, a intervenção na Ceará Light, sendo nomeado interventor, o capitão Josias Ferreira Gomes. Fonte: Cronologia Ilustrada de Fortaleza - Roteiro para um turismo histórico e cultural - 2005 Autor: Miguel Angelo de Azevedo - Nirez 

O Fim dos bondes anunciado pelo Jornal Correio do Ceará, clique e leia:


Créditos: Patricia Menezes (Mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará). Dissertação: FORTALEZA DE ÔNIBUS: Quebra- quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960


sexta-feira, 14 de março de 2014

Fortaleza dos bailes e dos Clubes


No final dos anos 70 a cidade de Fortaleza fervilhava aos sons de inúmeras novidades oriundas da produção da chamada indústria cultural e das culturas de massa. Alguns vindos literalmente ‘de fora’ e outros considerados ‘locais’ e ainda não inseridos no contexto maior de comercialização internacional.

Era o caso, por exemplo, do rock, que aportava com força pela musicalidade de Led Zeppelin, Black Sabbath, Ramones e Sex Pistols, entre outros. Já o predomínio do local se matizava nas inúmeras gravações de forró, bem representados em grupos como Trio Nordestino, Três do Nordeste, Luís Gonzaga, Jackson do Pandeiro e tantos outros.

Estudos sobre o rock em Fortaleza dão conta de uma trajetória iniciada ainda na década de 1950 e um predomínio hegemônico do forró, motivo pelo qual se apontaria, até meados dos anos 90, a dificuldade de ‘explosão’ dessa manifestação em Fortaleza, bem como do surgimento e consolidação de bandas e espaços destinados a essas manifestações.


Acervo Portal Messejana

Entretanto, o rock praticado em Fortaleza era ‘regionalizado’, com bandas (ou grupos de bailes) como Os Faraós, Os Belgas, Os Diferentes ou, um pouco depois, O Peso, que seguiam linhas melódicas mais leves e pouco ligadas às perspectivas mais ‘transgressivas’:





Na década de 50, o rock era tocado por grupos de baile — o mais conhecido era Ivanildo e seu conjunto — que animavam as festas de clubes sociais como o Náutico, Líbano e Maguary ... Na década de 60, com a explosão do rock em todo o mundo, esses grupos tocavam os sucessos do momento, além de músicas brasileiras, mambo, bolero e rumba. O grande destaque era Os Faraós, banda de Luizinho (foto do blog do cantor) que ainda hoje toca em festas... 

Outro destaque era Os Belgas, cujo guitarrista Júlio Sena era o maior sucesso. Tanto um como o outro tinha em seu repertório, basicamente sucessos dos Beatles e as versões de Renato e seus Blue Caps. Também vale lembrar d’os Diferentes, que a exemplo dos demais tocava música dos outros, mas a diferença estava no fato de cantarem músicas próprias e fazerem arranjos diferentes para músicas dos outros ... Nos anos 70, destacou-se Luís Carlos Porto, vocalista da banda O Peso, que talvez seja a única banda cearense de rock a ter tido projeção nacional ... No final da década surgiu a banda Posh, fazendo um rock mais para o pop.


Assim, a manifestação nos anos 70 se encontrava na encruzilhada dessas diferentes formas de apreciar e curtir o rock, parecendo ter havido uma apropriação dupla da manifestação:

A primeira, do ponto de vista estético-político, com o surgimento de bandas ‘mais radicais’, com mensagens politizadas e fazendo parte de um ‘movimento’ que atentava contra os pressupostos anteriores do próprio rock e da cultura de massas,— o punk. A segunda, do ponto de vista dessas manifestações na própria cidade de Fortaleza, e de setores de sua sociedade antes relegados ao ‘silêncio’.

Trata-se de uma complexa articulação de manifestações, intenções, padrões estéticos, éticos e práticas de incorporação musical, que dão origem a uma forma inusitada de vivência da cidade e da própria música, que sai dos clubes de elite como o Náutico, Líbano e ou Maguary e passa aos pequenos clubes de periferia, tais como o Apache Clube, o Mênfis Clube do Antônio Bezerra, o Keops Clube, o Detroit, ou ainda o Grêmio recreativo do Conjunto José Walter, entre tantos outros.

É claro que a essa ‘transposição geo-estética’ (ou ‘deslocamento geo-estético’) correspondia uma apropriação de outros setores sociais presentes na cidade de Fortaleza, e, além disso, marcava de forma definitiva a emergência de novos atores sócio-históricos: os jovens pobres.

Situados nas periferias da então pequena cidade de Fortaleza, eles passam a se manifestar de forma muito mais presente e frequente, e, além disso, essa manifestação se dá em um campo particular, próprio, singular e inovador: o campo da arte e do lazer.

Assim, os inúmeros bailes que surgem na cidade são mais do que simples diversão e assumem a conotação de manifestação juvenil, que dentro de uma trajetória própria, em pouco tempo, guardando a sua característica histórica de transmutação, assumiria uma outra e mais radical forma de se manifestar, como veremos adiante.

Os inúmeros bailes geram práticas de sociabilidade, de compreensão estética, ética e musical que são instauradoras de ‘territórios existenciais’ e possuem suas sutilezas e perspectivas próprias. Vejamos como Flor, à época ainda menina, passa a experimentar o que ocorria:

Eu não sei quando é que a coisa virou movimento punk, porque isso vem de um outro movimento. Eu tinha 12 ou 13 anos, conheci essa menina, a Guacira, ela curtia rock e tinha uns festivais de rock que aconteciam no Apache, no Mênfis Clube do Antônio Bezerra, no Keops Clube, lá no Detroit, várias casas de subúrbio, shows de rock com playback. Era Led Zeppelin, Black Sabbath, Pink Floyd, Kiss, heavy metal. E aí começou uma reunião aqui na Praça do Ferreira. Eu estudava no Anchieta e gazeava aula, ficava no meio dessa galera porque eu gostava de banda e curtia essas coisas. E aí a gente começou a se reunir pra ouvir esses sons, e tinha concursos de dança...

Como se pode perceber na lembrança de Flor, iniciava-se na cidade a produção de pequenas festas nos clubes de subúrbio. Nessas festas, uma das estratégias para envolver os grupos eram competições de rock ao som dos conjuntos por eles preferidos:

Sempre nos finais de semana uma leva de fãs gravitava pelos clubes suburbanos atrás de diversão. ‘Competições’ eram travadas entre as diversas turmas. A Turma do Baby do Bairro do Monte Castelo, do Conjunto José Walter, do Parque Araxá entre outras, disputava quem agitava mais parecido com seus ídolos (Robert Plant, Ramones), com direitos a guitarras artesanais, feitas de madeira ou papelão e até troféus para as turmas vencedoras.

Além disso, outro aspecto que se deve considerar é a apropriação da cidade de forma itinerante, não fixa, feita de forma ‘errante’, em deslocamentos pela diversidade de cada bairro ou clube, ou ainda das diversas ‘turmas’ envolvidas:

Essa coisa do rock não era fixa não, o cara fazia um evento e divulgava, uma semana num bairro, outra semana em outro totalmente diferente ou distante. Acho que era isso que perpetuava a adrenalina. De repente o cara já tem a adrenalina lá em cima, aí faz um evento hoje aqui, no outro final de semana não é mais aqui, é lá...

A novidade dessa experiência juvenil que tomava o lazer em suas mãos, articulava os diversos bairros da cidade, se grupalizava a partir de afinidades, identificava grupos distantes e/ou rivais, estabelecia uma rede de relações, de espaços, constituía sua vivência com base em desejos e prazeres dos quais não se dissociava, e, que em breve se tornariam a referência de suas próprias vidas de forma completa.


Os bailes nos quais as diversas sonoridades eram experimentadas em partes específicas para cada estilo musical eram uma prática comum na Fortaleza do final dos anos 70 e dos anos 80. Assim, os amantes de cada tipo de música tinham uma parte específica das festas para se deleitarem, e a elas recorriam nos mais diversos cantos da cidade.

Não há ‘oferta’ de bailes específicos, ou seja, de festas com a predominância de uma única manifestação musical, que só aparece, ou se torna forte, predominante, em meados dos anos 90. Talvez isso indique o pequeno número de frequentadores dos estilos que depois comporiam o underground em Fortaleza, juntando-os numa estratégia de produção, venda e consumo que atendia naquele momento suas expectativas e possibilidades; ou talvez fosse reflexo de uma outra compreensão de diversão. O certo é que essa junção contribuía na formação dos grupos pelo convívio com a diferença, no nascedouro de muitas dessas manifestações como é o caso do rock,do punk, do próprio hip-hop e até do forró, que durante algum tempo frequentam os mesmos pequenos clubes nesses ‘bailes mistos’.

Essa mistura inicial nos pequenos clubes da periferia da cidade criou em Fortaleza uma proximidade entre os diversos grupos que posteriormente se identificam com este ou aquele estilo musical, e, ao mesmo tempo, nesse relacional se identificavam entre si como iguais–diferentes, essencialmente compondo um mesmo campo: o de oposição à sociedade excludente, aspecto que posteriormente será incorporado às suas letras, manifestos, músicas e práticas.



Nesses bailes, nos pequenos clubes dos muitos (e à época distantes) bairros da cidade, integrantes dos diversos grupos se encontravam e aprendiam a se identificar e respeitar:

Inter Dance, no Monte Castelo, era um point dos punks, e em 85, 86, 87 o break estava em ascensão, era de certa forma uma novidade. Lá, o pessoal tinha a festa de rock, punk, e tinha o pessoal que dançava o break, se congregava lá. Aí, alguns deles migraram para o Conjunto Ceará.


Texto de Francisco José Gomes Damasceno 
(As cidades da juventude em Fortaleza)


Aproveito o ensejo para falar do Conjunto Musical Big Brasa.


O Conjunto nasceu em Messejana, em 1967. Foi um marco para a música dos Anos 60 em Fortaleza. Participou de programas de televisão, acompanhou artistas do Ceará, de renome nacional, como Ednardo, Belchior e muitos outros. Foi considerada uma das melhores bandas musicais da época em Fortaleza.
Os integrantes fundadores foram: Lucius, Severino, João Ribeiro, Adalberto, Edson e Luís Antônio Alencar.


Crédito do vídeo: Portal Messejana

"O embrião do conjunto musical Big Brasa foi em nossa casa, na Rua José Hipólito, 698, em Messejana. Durante toda a existência do grupo e de minha vida musical a sede sempre foi a mesma. O local onde foi realizado o primeiro ensaio do grupo foi por algum tempo meu quarto, que dividia com o Carló. Tinha as paredes todas pintadas, com desenhos coloridos, feitos com tinta a óleo. Nele desenhávamos de tudo. Guitarras, pistas de corrida e até mesmo o famoso personagem “Amigo da Onça”, este feito pelo Carló. Até um dia desses, em uma das reformas que fiz em nossa casa, vimos as marcas das pinturas que ainda estão lá, agora encobertas por um tipo de revestimento. Aquele ambiente era nosso mundo. O violão sempre ficava disponível, em cima de uma cama ou cadeira, para facilitar o seu rápido acesso. Tudo o que era de equipamento nós montávamos empilhados, de modo a formar uma “parede de som”. Sem intenção, nós projetávamos o que iria acontecer em um futuro breve.



É importante dizer que nos anos 60 as diversões da vida noturna de Fortaleza se caracterizavam por bailes em clubes, diferentemente do que ocorre hoje em dia, com os mega-shows em casa de espetáculos de grande porte. Quem viveu os “Anos Dourados” certamente tem saudades das festas desse período.



Quem não se lembra dos preparativos que fazíamos para ir a alguma festa e de como os conjuntos musicais eram mais valorizados? E dos festivais, sempre muito frequentados, as paqueras, a dança colada? Para nós músicos não era muito fácil, pois na maioria das vezes estávamos trabalhando nos finais de semana. Em nosso caso, quando o Big Brasa tinha folga nos contratos, saíamos de Messejana para nos divertir um pouco em algum clube. Entretanto, antes de nossa turma completar dezoito anos e poder dirigir, tínhamos que chamar um carro de praça, normalmente uma rural, para que nos conduzisse até o clube e voltasse na madrugada para nos trazer de volta para Messejana.

Para se ter uma ideia do que rolava nas noites de Fortaleza, segue uma relação dos clubes que existiam na época, em ordem alfabética, nos quais o Big Brasa atuou, por várias vezes.




O Balneário Clube de Messejana, a Sociedade Bairro de Fátima, o Clube de Regatas Barra do Ceará. Mais adiante o Iracema, o Líbano, o Iate Clube de Fortaleza, o Ideal Clube, o Náutico Atlético Cearense, o América Futebol Clube, o CRA - Clube Recreativo da Aerolândia, a COFEBA (Colônia de Férias dos Funcionários do Bento Alves), o Recreio dos Funcionários, o Clube General Sampaio, o Vila União, o Massapeense, a Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB), o Clube dos Diários, o Clube do Jornal O POVO (Messejana), o Clube da Caixa Econômica, o Maguari e o Memphis Clube, de Antônio Bezerra.

João Ribeiro da Silva Neto

Do livro "O Big Brasa e minha vida musical" (1999)






sexta-feira, 28 de junho de 2013

O Cinema de Arte do Cine Diogo





Era sábado. Exibição do Cinema de Arte do Diogo. O filme em questão: um surrealista de Luís Buñuel (Foto ao lado). De repente, diante dos espectadores, no filme projetado, inexplicavelmente surge uma galinha em primeiro plano – se tratando de um filme surrealista, isso não é de surpreender tanto. Um casal de namorados que assistia ao filme, ansioso para entender as tramas de Buñuel, começa a cochichar, tentando entender o significado existente no aparecimento da galinha. De repente, Augusto Pontes, que estava sentado em uma das poltronas da fileira atrás da que se encontrava o casal, se impacienta com o colóquio e, com uma voz lúgubre diz: “Isto não é uma galinha, é um símbolo”. Os jovens silenciam-se assustados diante da interrupção do diálogo cinematográfico comum nas salas de cinema. 
Olham para trás e, de repente, parecem compreender tudo. 
Cenas adiante, a tal da galinha que havia despertado interesse discursivo do jovem casal de namorados aparece novamente. Neste momento, a jovem moça cutuca o namorado e, num ato de demonstração de entendimento da obra cinematográfica, diz: “Olha aí, o símbolo!”. E, novamente, começa o burburinho intelectual diante do filme, agora contextualizado com uma nova forma de visualizá-lo. Posto irritado, Augusto, faz “fervilhar” ainda mais a confusão epistemológica dizendo: “Agora não é símbolo, é só uma galinha.” ¹
O cotidiano vivido dentro – e fora – do cinema pode parecer cena de filme. A atitude de frequentar o Cinema de Arte (CA) representava certa distinção social e para se fazer inserir no universo pertencente a este grupo, era necessário a utilização de certos preceitos, como por exemplo, o de discutir e entender cinema filosoficamente. É essencial ao grupo que frequentava o CA demonstrar o caráter intelectual que representava ser um frequentador das sessões de arte.


Sala de exibição do Cine Diogo - Arquivo Ary Bezerra Leite

Se, nas salas de cinema comercial, não se exige do público um conhecimento cinematográfico mais amplo, na sessão de arte do Cine Diogo, se tratando de um espaço exibidor no qual é possível ter acesso a um cinema de autor e a ciclos de filmes clássicos, não é suficiente somente assistir ao filme, mas, saber a que experiência estético/filosófica ele está vinculado. E isso se dava no ato de discussão pós-filme, bem como no status de cinéfilo ou de entendido de cinema. Esse status era comumente representado entre a juventude que frequentava o Cinema de Arte que, no ato de assistir a filmes alternativos se diferenciavam dos jovens “menos politizados” da cidade. A narrativa que vimos acima exemplifica a necessidade de exprimir conhecimento e de se fazer parte do universo marcado pela fruição de uma mídia de massa alternativa. 


Panorama da cidade vendo-se o prédio do Cine Diogo - Acervo Carlos Juaçaba

O Cinema de Arte do Cine Diogo surgiu a partir de uma iniciativa de sócios do Clube de Cinema de Fortaleza (CCF), entre eles, Tavares da Silva e Frota Neto, além de Darcy Costa, que pensaram que Fortaleza deveria ter um circuito de exibições cinematográficas que fosse semelhante ao Cine Paissandu², no Rio de Janeiro – comercial, porém com exibições de filmes de autor, alternativos às exibições convencionais das salas de cinema existentes na cidade. O objetivo seria também incluir a juventude no circuito de exibição “de arte”, pois o Clube de Cinema de Fortaleza não era tão frequentado pela mocidade da época. 
O conveniente agora, para a concretização do projeto, seria procurar alguma casa de cinema que aceitasse exibir filmes alternativos – também ditos “de arte”. Após um longo período de negociações entre Darcy Costa e o Grupo Severiano Ribeiro, o entusiasta cultural, usando de sua influência conferida pelo reconhecimento no setor comercial consegue autorização do grupo exibidor para realizar exibições cinematográficas, em uma única sessão, 
aos sábados, às 10h da manhã. 
Nos dias de sábados à tarde, o CCF realizava uma reunião com sua diretoria – o Clube tinha uma formação social institucionalizada, com estatuto, diretor, secretário, tesoureiro, etc. 
Quando foi comunicado o consentimento das exibições, muitos não acreditaram que seria 
possível que alguém fosse ao cinema no centro da cidade, no sábado de manhã. E já na 
primeira sessão, o cinema lotou. As notas também incentivavam a presença do espectador – 

principalmente de jovens – nas sessões de arte, exaltando-as:


"Ontem, o Cine Diogo foi bastante concorrido na sua sessão de 10 horas dedicada ao CINEMA DE ARTE. Muitos jovens presentes e isso é um bom sinal, pois onde há jovem, há probabilidades do movimento crescer. Amanhã o Cine Familiar³ apresenta nas duas sessões noturnas dedicadas ao CINEMA DE ARTE, a fita de Anselmo DuarteO Pagador de Promessas(Foto ao lado), premiado em Canes. Espera-se o comparecimento em massa dos admiradores da arte de Lumière, tão bem equacionada pelos diretores do CINEMANOVO."
(AUTO, Francisco. Gazeta de Notícias. 5 de março de 1967).


Cine Familiar - Arquivo Nirez

Sala de exibição do Cine Familiar

"Depois de um longo período de interrupção, voltou ontem às 10 horas a funcionar o CINEMA DE ARTE, promoção do Clube de Cinema de Fortaleza em colaboração com a Empresa Luiz Severiano Ribeiro. Como etapa preliminar, o CA vai funcionar no Cine Diogo. Para iniciar essa segunda fase, a qual esperamos que não venha a sofrer nova interrupção, foi apresentado “A Noite”, segundo filme da trilogia de Michelangelo Antonioni sobre o tédio reinante nas altas esferas sociais da burguesia contemporânea. Os filmes selecionados para o CINEMA DE ARTE que funcionará nas manhãs de sábado no Cine Diogo, obedecem a um rigoroso critério seletivo e já podemos assegurar para o próximo sábado uma película inédita e considerada pela imprensa do Rio de Janeiro como a melhor do ano passado." 
(Antônio Girão Barroso. Gazeta de Notícias. 5 de março de 1967).


Edifício Diogo, na Rua Barão do Rio Branco - Arquivo Nirez

Durante o período de um ano – o corrente ano de 1967 – o Cinema de Arte do Cine Diogo exibiu 44 filmes, sendo retratados em jornais em notas pré-exibição ou em críticas após as exibições. Por vezes, era retratado nas colunas a presença dos espectadores e o êxito 
alcançado pela iniciativa cinematográfica. 
Podemos entender, entretanto, que o Cinema de Arte do Diogo tratava-se também de um cineclube, tendo apenas algumas características que o diferenciavam do Clube de Cinema de Fortaleza, que eram, em primeiro lugar e, principalmente, o fato do consumo cinematográfico se dá em uma atitude capitalista. O consumo, enquanto fruição cultural, nesse caso, necessitava de uma disponibilização financeira do espectador. No Clube, assistir filme era gratuito, bastava interessar-se em participar. Poderia haver assiduidade ou não. 
Outra distinção entre as duas iniciativas culturais era o fato do CA do Diogo não requerer filiação social. Para participar das sessões do Clube não era necessário ser filiado. 
Entretanto, para ter voz e voto dentro da entidade, associar-se era fundamental. 
Outra característica das exibições em cineclubes e ausente nas sessões de arte do Cine Diogo eram os debates pós-exibições, que aconteciam em espaços  fora do cinema não engajando o público em um todo, sendo uma atitude isolada a grupos mais politizados. 

A prática social de ir ao Cinema de Arte do Diogo não se limitava apenas à sala de cinema e aos corredores do prédio exibidor. O ciclo de convivência extrapolava o ambiente cinematográfico e partia para as ruas. O espaço cedido pelo Grupo Severiano Ribeiro não permitia a realização de debates após os filmes, pois logo após a exibição, os espectadores deveriam desocupar a sala para a realização da nova sessão de cinema, agora do circuito comercial habitual da sala exibidora. Os “cinéfilos engajados” discutiam, então, em espaços da cidade. Lanchonetes, bares, lojas ou clubes tornavam-se espaço de convivência e "extensão” da obra cinematográfica. 
Dessa forma, a prática de ver cinema de arte provocou novas práticas sociais em novos espaços, no caso, a ocupação de outros lugares:

“Quando acabava a exibição dos filmes, não podíamos ter discussão dentro do cinema, pois tinha hora para vagar o cinema. A empresa tinha que limpar a sala para ter a primeira sessão da tarde, a vesperal, e agora, comercial. As pessoas iam, então, para essa lanchonete em frente – lá tinha um chope ou uma coisa assim – ou iam para o Clube dos Advogados, meio quarteirão depois. Aí iam comer a feijoada do Clube. Nosso ‘Cine Paissandu’ era no meio da rua, dia de sábado, em baixo do Sol cearense. Então, esse período foi essencial.” 
(Augusto César Costa, em entrevista concedida no dia 22 de abril de 2009).


O Clube dos Advogados, local de reunião dos cinéfilos.

A experiência do Cinema de Arte do Cine Diogo teve importante influência no cotidiano da cidade de Fortaleza e incutiu uma cultura cinematográfica ao público diverso cearense. Talvez fosse uma atitude isolada, reservada a pequenos grupos sociais – sabemos, contudo, que as sessões de arte lotavam o Cine Diogo, que dispunha de 995 poltronas – porém, parte da juventude universitária e secundarista frequentou as sessões de cinema:

“O Cinema de Arte estava sendo um catalisador de pessoas e idéias, de convergência de interesses. Acontece a Casa Amarela e o Cinema de Arte do Center Um, cria do Clube de Cinema. Aí já é a migração da cidade, do centro para os bairros. Esvaziar a cidade, esparramada. Nós somos umas das poucas cidades do mundo que não temos referência do centro da cidade, que não vive o centro.” 
(Augusto César Costa, em entrevista concedida no dia 22 de abril de 2009).


 Casa Amarela - Arquivo O Povo

Center Um - Arquivo O Povo

O Cinema de Arte do Cine Diogo pulsou em Fortaleza até o ano de 1972. Neste ano, a 
programação de televisão já era comumente abordada nos jornais. Sua grade era divulgada e comentada e o cinema perdeu o espaço de crítica nas páginas jornalísticas, restando apenas a 
divulgação dos principais filmes que estavam sendo exibidos na cidade.


Cíntia Mapurunga
(recém-graduada em Comunicação Social, com habilitação 
em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza)

 (13220 bytes)¹Os dados dessa história foram narrados por Augusto César Costa, mas aparece em 
várias lembranças dos cinéfilos da época. Augusto Pontes, publicitário, músico e pensador, funcionou como uma espécie de “guru” da geração dos anos 60. Faleceu no dia 15 de maio de 2009.

 (13220 bytes)² No final dos anos 60, tempo de ditadura militar, amantes de cinema, intelectuais e estudantes cultuavam “filmes de arte”, em sessões noturnas (22h30 e 0h30, às quintas, sextas e sábados), no Cine Paissandu, situado no bairro do Flamengo/Rio de Janeiro. Os frequentadores mais assíduos representavam o que passou a se chamar de 
Geração Paissandu”, superlotando fielmente a grande sala para, entre um e outro debate político, assistir, idolatrar e discutir filmes de diretores como Godard, Glauber Rocha, Bergman, o neo-realismo italiano, ViscontiAlain Resnais, Eisenstein, Bresson, Pasolini, entre quase todos os outros diretores de filmes alternativos. A 
Geração Paissandu era formada por estudantes, jornalistas e profissionais ligados às áreas artísticas e também por jovens advogados, bancários, químicos, comerciários e por qualquer pessoa com um mínimo de gosto pela arte e com certa necessidade de exprimir-se. Podemos dizer que nem todos eram os considerados cult, mas todos gostariam de o ser.

 (13220 bytes)³ O Cine Familiar também dedicava-se à exibição de filmes de arte, tendo surgido em 1966, sob iniciativa de Tarcísio Tavares e Maurílio Arraes, localizado no bairro de Otávio Bonfim. O Cine Familiar não se localizava, portanto, no “olho” das salas exibições cinematográficas fortalezenses, que era o centro da cidade. A imprensa retratava semanalmente as duas sessões de Cinema de Arte existentes em Fortaleza, a do Cine Diogo e a do Cine Familiar.

Leia também: O Culto ao Cinema na Fortaleza dos anos 60 


Fonte: O culto ao Cinema de Arte na geração de sessenta em Fortaleza

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O culto ao cinema na Fortaleza dos anos 60



Arquivo Nirez

Em uma cidade onde o ponto de convergência das pessoas era o centro urbano, o cinema era uma das principais fonte de cultura e lazer. A realidade de Fortaleza, de certa maneira, impunha o convívio social centralizado, de forma que tudo acontecia no centro da cidade. Lojas, mercado, igrejas, restaurantes, espaços de lazer, bancos e órgãos públicos eram encontrados, quadra-a-quadra, nesse espaço de convergência citadina. 


O Palácio do Governo na Praça dos Leões

As lembranças pontuam o depoimento dos integrantes da geração que vivenciou a época. O
jornalista Augusto César Costa relata que “Tudo acontecia no centro da cidade. A cidade viva no centro. Ali você tinha o Palácio do Governo, a Assembléia Legislativa, o Fórum, a Faculdade de Direito – que era a faculdade mais importante da época –, o Theatro José de Alencar. Então, a vida social de Fortaleza estava toda no centro da cidade.” (Augusto César Costa, em entrevista concedida no dia 22 de abril de 2009).



Arquivo Nirez 

O arquiteto e compositor Fausto Nilo retrata que o centro da cidade simboliza o ponto de convergência da cidade, ressaltando a importância da praça nesta característica urbana:

“As pessoas que moravam nas áreas periféricas chegavam de ônibus, tinha um limite, e parte dos ônibus paravam na Praça do Ferreira e tinha o Abrigo Central: uma coberta de concreto e embaixo tinha engraxate, venda de bilhetes de loterias, lanchonetes, era um ágora. E naquele tempo não tinha essa degradação, esse declínio que tem hoje. As lojas eram tudo chique. Não tinha shopping, era tudo ali. Era convergente. As pessoas da Aldeota iam comprar lá, trabalhavam lá, os escritórios eram lá, os bancos era lá, tudo era lá.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).



Abrigo Central 

O escritor e dramaturgo José Mapurunga elucida também a respeito da importância do centro na história da cidade:

“Você imagina uma cidade sem shopping center, sem supermercado. Se você quisesse comprar alguma coisa, ia ao centro. Existia também, no ponto de vista comercial, uma relação de confiança entre o dono da mercearia e o cliente. Havia as cadernetas e você poderia comprar fiado e o comerciante anotava nela, para que o cliente fosse pagar depois, como acontece ainda em algumas cidade do interior. O centro era também principal ponto de lazer da cidade. A Praça do Ferreira, o ponto de encontro”. (José Mapurunga, entrevista concedida no dia 5 de maio de 2009)

É natural, portanto, que encontremos a forma de lazer moderno mais comum na década de 1960 localizada especialmente no centro da cidade, onde havia a maior concentração de casas de cinema da época¹



Acervo Jornal O Povo

Num período em que a televisão ainda não tinha se consolidado como forma de lazer doméstico predileto, os shopping centers ainda não existiam e não tínhamos também as iniciativas de construção de centros culturais. As formas de lazer sociais e culturais eram muito restritas. Fixavam-se apenas na praia aos finais de semana, no futebol – principalmente para os rapazes –, nas quermesses e nos cinemas. As classes mais abastadas poderiam usufruir, ainda, de clubes sociais privados, como o Náutico Atlético Cearense.


Praia dos Diários - Anos 60

“Vamos pegar aí a vida de um garoto com 16, 17 anos de idade. Tinha as paróquias e as comunidades se faziam em torno delas. A Igreja também era um ponto convergente da cidade, ponto de encontro. Tinha a missa de domingo e as pessoas se encontravam. Então, essas pessoas tinham dois níveis de gravitação de convergência. Tinha o de todos, que era a Praça do Ferreira e tinha os particulares em seu bairro, que era a igreja, que ficava rodeada por uma praça. E o que é que acontecia aí? Cada época do ano, cada paróquia tinha sua quermesse. Era onde os garotos de classe média que não frequentavam os clubes da cidade encontravam as garotas. Era na escola, nas quermesses, na praia e no cinema. Esses eram o ponto de intercâmbio, de poder se encontrar. Os lazeres na cidade eram esses e para os garotos tinham também o futebol. E aqui-acolá íamos a uma tertúlia.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).

Acervo Jornal O Povo 

Com um caráter representativo de progresso e modernidade, o cinema converteu-se 
em lazer amplamente frequentado, sendo um importante ponto de encontro da juventude na 
década de 1960. 

“Muitos de nós saíamos da escola ou da faculdade e íamos ao cinema no sábado. 
Aos domingos, como era de costume: praia de manhã, cinema à tarde. O cinema também era o programa preferido para sair com a namorada. A sala escura criava um ‘clima’. Como tínhamos pouco dinheiro, geralmente já marcávamos dentro da sala, para não termos que pagar o ingresso da moça". (José Mapurunga, entrevista concedida em 5 de maio de 2009).

O interesse da população pelo cinema era representado frequentemente em colunas de jornais que tratavam, em específico, da sétima arte. O jornal Gazeta de Notícias e O Povo
tinham páginas inteiras reservadas à divulgação e à crítica cinematográfica, além de notas 
sobre a programação semanal ou diária das casas de cinema, dispostas aleatoriamente no 
decorrer do veículo. 

De acordo com José Mapurunga, a juventude que frequentava o cinema em Fortaleza,
em especial as sessões de arte, é caracterizada pelo figurino que vestiam, pelo que liam e pelo
que conversavam. O cinéfilo dos anos 60 vestia-se como “proletariado”, reflexo de uma visão política que aproxima-se das camadas sociais mais populares, proporcionado pelos filmes e pelos livros que compunham o repertório de construção visual e intelectual do espectador da época.

 A geração de sessenta em Fortaleza, embora também assistisse a filmes norte-americanos que impunha o gosto pelo rock 'n' roll e o uso da minissaia pelas mulheres, também
era influenciada pelo cinema europeu, que explicitava a revolução sexual, onde mulheres
também poderiam vestir-se da mesma maneira como apenas homens se vestiam antes,
adotando agora o uso da calças jeans e camisa. E assim o faziam. Como opção musical,
tinham a música popular brasileira como preferência, devido a popularização e disseminação desta nesse período e de sua ligação com a brasilidade, também buscada nas produções
cinematográficas brasileiras.

Entretanto, é importante atentar que o esteriótipo visual com que vestiu-se a geração de sessenta não era unânime. Podíamos encontrar a juventude vestida de jeans, camiseta
branca e sandália franciscana, figurino característico da época, mas não devemos nos fechar
nessa única concepção.

Abrigo Central 

Isso também se aplica ao mito do livro embaixo do braço. Era comum à geração cinéfila de sessenta em Fortaleza, a cultura de usar sempre um livro embaixo do braço, representado aquilo que estava lendo. Poderia ser Marx, Tolstoi, Freud, Lênin; algo de caráter valorativo e que simbolizasse um status de intelectualidade.
Entretanto, o arquiteto Fausto Nilo, frequentador assíduo do cinema na cidade de Fortaleza,
afirma esse não ser um hábito praticado frequentemente por ele, mas afirma a existência deste fato e relata:

“Eu tinha um primo que era meu companheiro de formação. Eu morei na casa dele. 
As curiosidades eram juntas. A gente via muito cinema. Aí, parava num sebo na Rua Guilherme Rocha e tinha um livro pra vender que era assim: ‘A interpretação dos 
sonhos, Freud’. Aí eu olhava pra ele e dizia: ‘Cara, é aquele Freud. Se lembra daquele filme que o cara falou?’. Aí a gente comprou o livro e a gente lia coisas desse tipo, mas não tínhamos interlocutores. A gente lia aquilo só nós e ficava tentando fechar esse mosaico. Então, o CCF e esses jovens intelectuais que foram se identificando na cidade, eles foram ajudando a criar uma teia de sustentação intelectual uns dos outros. E a linguagem era essa: se encontrar no cinema, se ver de longe, depois se conhecer, alguém apresentar e a partir daí, se afeiçoar às características uns dos outros. Era comum desses jovens ler (ou parecer que lia) livros de formação política e intelectual, como Sartre, Marx, Freud. Tinha isso de vê-los sempre com um livro embaixo do braço.” (Fausto Nilo, em entrevista concedida no dia 6 de maio de 2009).

Abrigo Central 

A década de 1960 – era associado, no Brasil, a um momento de intenso desenvolvimento econômico e de efervescência cultural, com proliferação de tendências e manifestações no campo das artes e em outros setores de produção de bens simbólicos. Estes aspectos eram comumente reportados nos periódicos cearenses.

Além de representar uma forma de diversão pura e simples, o cinema funcionou naquele contexto histórico, sobretudo, como um veículo por excelência, de disseminação de ideologia e mensagens ligadas aos mais diversos propósitos. É um tipo de lazer sedutor, que logo se universalizou na preferência do público. E em meio a essa trajetória ditatorial que vivíamos em nosso país, o cinema inseriu-se como aglutinador de grupos, catalisador de pessoas e idéias, lugar onde havia a convergência de interesses. Isso se dava não somente no ato de ir ao cinema, mas nas convivências pré e pós exibições do filme, nos salões de espera das casas de cinema, nas filas para entrar nos filmes e nos bares, lanchonetes e restaurantes da cidade.

Cine Diogo

No momento no qual dispomos de um já consolidado circuito cinematográfico comercial variado surge em Fortaleza o Cinema de Arte do Cine Diogo – melhor dizendo, ressurge² – como uma opção diferenciada de cinema que, a exemplo de outras experiências
vivenciadas no país, exibiria filmes não identificados com o circuito comercial convencional
que normalmente ocupava a programação do Cine Diogo. A ideia surge com objetivo de que
os filmes alternativos³ produzidos na França, Itália, Grécia, Japão, Inglaterra, Estados Unidos, etc., pudessem atrair também um espectador mais jovem.

Cíntia Mapurunga
(recém-graduada em Comunicação Social, com habilitação 
em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza)

Continua...

 (13220 bytes)¹No início dos anos 1950, a cidade contava com dezoito salas de exibição localizadas não só no centro da cidade, mas também em bairros e zonas periféricas, numa clara demonstração do nível de importância que essa forma de lazer assumia no cotidiano fortalezense nos vários segmentos da população. (PONTES, Albertina 
Mirtes de Freitas. A cidade dos clubes: modernidade e “glamour” na Fortaleza de 1950-1970. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2005, p.45). Encontramos registrados em jornais da década de 60, o anúncio constante de seis casa de cinema: Cine São Luiz, Cine Diogo, Cine Moderno, Cine Jangada – pertencentes ao Grupo Severiano Ribeiro, que construiu um “império” de exibições cinematográficas no Brasil –, CineArt, Cine Samburá e Cine Familiar – este também com um circuito de Cinema de Arte. O Clube de Cinema de Fortaleza também tinha sua programação semanal divulgada nos jornais estudados.

 (13220 bytes)²O Cinema de Arte do Cine Diogo surge em 1963. Em 1967, o Cinema de Arte estava ressurgindo, no dia 4 de março, após um longo período de paralisação. 

 (13220 bytes)³ Aquilo que não se afina com valores e métodos convencionais ou tradicionalmente conhecidos. O convencional em questão é o cinema comercial hollywoodiano. 

Fonte: O culto ao Cinema de Arte na geração de sessenta em Fortaleza 

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