A palavra moleque é de origem africana e o Novo Dicionário da Língua
Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira diz que ela provém do
idioma Quimbundo onde o seu substantivo significava “negrinho” e o seu adjetivo “indivíduo sem gravidade, ou sem palavra”, ou ainda, “canalha, patife, velhaco”. Ainda, esse dicionário acrescenta que no português do Brasil a palavra passa a significar, também, “menino de pouca idade”.
Contudo, o termo ‘Ceará moleque’ foi cunhado nos fins do século XIX e apareceu pela primeira vez em uma obra literária que tinha a cidade
de Fortaleza como cenário: o romance A Normalista, de Adolfo Caminha, publicado em 1893. A obra retrata o cotidiano de uma Fortaleza provinciana, habitada por “alcoviteiros e uma gentinha canalha”. Neste romance de cunho naturalista, Caminha tenta criar uma crônica social sobre Fortaleza onde “buscou esmiuçar os detalhes sujos do cotidiano” (Albuquerque, 2000, p.16-17).
Logo, a alcunha ‘moleque’ indicava aí certa característica cultural do Ceará a ser interpretada negativamente como “canalhismo de província”.
Para Marco Aurélio Ferreira da Silva (2003), o romance de Caminha desenvolve sua trama na Fortaleza do final do século XIX, onde o ambiente provinciano é visto como um “antro de maledicências e coscuvilhice” e onde “a vida social se reduz a um jogo em que todos invadem o privado do outro”.
Com este mote é que a personagem principal deste romance, a normalista Maria do Carmo, reclama a Lídia, sua amiga mais próxima, do pasquim chamado A Matraca, que escreveu versos sobre seu envolvimento com o Zuza, estudante de Direito de Pernambuco e que passava férias em Fortaleza:
Lídia achou graça na versalhada. Ela também já saíra na Matraca. – Um desaforo,
não achas? Perguntou a normalista indignada. – Que se há de fazer, minha filha?
Ninguém está livre destas coisas no Ceará Moleque. Não se pode conversar com um
rapaz, porque não faltam alcoviteiros. (CAMINHA, 1997, p.37).
Na época deste romance, o Ceará figurava na economia internacional como um grande exportador de algodão. As indústrias têxteis europeias começaram a procurar pelo algodão cearense com maior intensidade no período em que foi suspenso o comércio com os EUA, o principal produtor de algodão até então, devido à eclosão da Guerra de Secessão, ocorrida nos anos 1860. Este fator foi fundamental para as transformações sócio-econômicas e culturais por que passou o território cearense, especialmente a capital da então Província, que se urbanizava e acelerava, modificando drasticamente o modo de vida de seus habitantes.
Em Fortaleza Belle Époque, Sebastião Rogério Ponte (2001) conta que nesse período surgiram em Fortaleza lazaretos, hospitais, asilos e cemitérios construídos fora do perímetro urbano seguindo, assim, uma ótica sanitarista – o saber médico social então em constituição – que fazia parte da lógica de remodelação e controle do projeto modernizador para a organização da capital. Na contracorrente desta lógica modeladora, Ponte (2001) identifica a “irreverência popular que se expressava em condutas debochadas e galhofeiras da população citadina”.
Tais condutas significaram uma espécie de rebeldia velada, um desvio que se constituiu em contraponto ao “mundanismo chique” que se instaurava na cidade. A época da Fortaleza Belle Époque, em que se tenta afrancesar os costumes da cidade é, ironicamente, aquela em que uma grande seca assolou o Ceará, coalhando a periferia da capital de retirantes esfomeados enquanto a burguesia se empoava e tomava chá. É também a época em que um grupo de debochados intelectuais, dentre os quais o próprio Adolfo Caminha (o padeiro Felix Guanabarino), funda a confraria denominada Padaria Espiritual.
Reunidos em torno do periódico O Pão, que buscava levar o pão do espírito a quem dele necessitasse, os espirituosos jovens debochavam, inclusive, do fenômeno absolutamente europeu das próprias confrarias e grupos de letrados que pipocavam pela cidade.
A compulsão popular pelo deboche e pela sátira era uma questão relevante para Fortaleza naquele período, e prova disso é, de acordo com Ponte (2001), a existência de “tantas referências a uma incorrigível ‘molecagem’ pública presente na cidade a partir do final do século XIX”. O autor encontra estas referências à molecagem do cearense na literatura, justamente no já citado A Normalista; em revistas de moda e atualidades como a Jandaia (1924) e a Ba-Ta-Clan (1926); e nos escritos dos memorialistas Otacílio de Azevedo,
Herman Lima e Raimundo de Menezes, que descreveram o cotidiano fortalezense do início do século XX.
A praça em 1963 - Arquivo O Povo
Num destes registros, Herman Lima (1997), no seu livro Imagens do Ceará, publicado em 1959, nos indica o lugar onde tal propensão popular ao deboche, ao escárnio ou aos ditos espirituosos exercia-se com maior intensidade: a Praça do Ferreira. O ensaísta Abelardo F. Montenegro, citado por Lima (1997), considera este logradouro, como a “sede social do Ceará Moleque”, nela “funciona cotidianamente uma escola de humor, em que professores e alunos permutam sofrimentos por gargalhadas, preocupações por cascalhadas” (apud
Lima, 1997, p.54).
Foi num dos cantos da praça, mais especificamente no Café Java, que Antonio Sales, o padeiro-mor Moacir Jurema, Rodolfo Teófilo (Marcos Serrano) e outros companheiros fundaram a Padaria Espiritual.
Raimundo de Menezes (2000), em seu Coisas que o tempo levou: crônicas
históricas da Fortaleza antiga, publicado originalmente em 1936, relata acontecimentos e curiosidades sobre os tipos populares – o Chagas, o Pilombeta, o Tostão, o Manezinho do Bispo (foto ao lado), o Casaca de Urubu, o Tertuliano, o Bode Ioiô e o De Rancho – que habitaram a capital no início do século XX. Dentre estes, Menezes (2000) destaca o Bode Ioiô como “um dos tipos mais populares e queridos da Fortaleza de outrora (...) era uma espécie de mascote da capital daqueles tempos, uma figura obrigatória na pacatez da cidade provinciana” (p.183). Segundo ele, Ioiô “representa bem a imagem do espírito irreverente e
profundamente irônico dos filhos desta gleba heroica de sofrimento” (p.185).
Na sua obra de crônicas, Fortaleza Velha, João Nogueira relata que, em certo culto religioso no ano de 1922, um moralista alertava aos de boa índole: “Não se queixem do automóvel nem de certas novidades de que está cheia a Fortaleza, mas do Ceará moleque, que tudo acanalha e desrespeita” (apud Silva, 2003, p.22-23). Para a moral e os bons costumes, geralmente desprovidos de humor, a molecagem deve ser banida, pois que toda irreverência é associada à canalhice.
A referência a uma molecagem do cearense ou ao ‘Ceará moleque’ se encontra presente em outros escritos como O Cajueiro de Fagundes de Tristão de Alencar Araripe Júnior (1909); nos pasquins Ceará Moleque – Revista Caricata (1897) e O Charutinho – Jornal Amolecado (1900). Digno de nota é igualmente o relato jornalístico da vaia ao sol na Praça do Ferreira. No ano de 1942, após longa estiagem e sem uma nuvem sequer que prenunciasse chuva no horizonte, os fortalezenses indignados e sem outra ação possível passaram a vaiar o astro-rei, que permaneceu impávido, na certa pensando que o que vem
de baixo não lhe atingia.
Também cabe lembrar que este atributo de identidade cultural não é oriundo da elite erudita, que preferiria antes ser identificada aos traços importados da cultura européia. Embora seja muitas vezes por esta retratado, como no romance de Caminha, sua origem deve ser encontrada junto às classes populares, menos abastadas financeiramente, mas ricas de um humor peculiar e pouco sutil.
A estética do grotesco, de que fala Bakhtin em sua obra sobre a cultura popular no Renascimento, está viva na Fortaleza de antanho e igualmente no mundo midiático de hoje em dia. Por ser identificada às classes populares e à sua estética particular, não é de estranhar o sucesso que tal imagem tem nos meios de comunicação de massa, onde há o império absoluto do grotesco, do bizarro, do exagero. É terreno fértil para a criatividade extravagante e sexualmente escrachada de homens, mulheres e homens travestidos de mulheres (digna de nota é a presença majoritária entre os humoristas locais de caricatos transformistas que atendem por nomes tais como Aurineide, Escolástica e Raimundinha).
Em síntese, existe uma construção histórica e simbólica do ‘Ceará moleque’ que não vem de hoje. Trata-se de uma invenção social que foi e é simbolizada coletivamente, fazendo parte do imaginário cearense e do imaginário sobre o cearense.
Crédito: A identidade cultural em tempos liquefeitos: o ‘Ceará moleque’ e
a contemporaneidade - Francisco Secundo da Silva Neto/Marcio Acselrad