ao longo dos caminhos das nove linhas de carris
e em arrabaldes bem mais distantes do Centro. Mas comprar novos bondes e
ampliar a instalação de trilhos e cabos elétricos impunha importantes negociações
com os capitalistas ingleses.
A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde
elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça
do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à
Mercearia Leão do Sul.
Portanto, resolver o problema de conservação da
frota existente, sem dúvida, já
seria um grande benefício para Fortaleza.
A preocupação de seu Batista em aumentar o
número de bondes urbanos era coisa que os jornais já estavam cansados de
reclamar. A cidade estava se transformando numa metrópole, fazendo da
desorganização da circulação e da deficiência do transporte coletivo problemas
urgentes. Essas questões haviam
inspirado o Secretário de Segurança Pública do
Estado, Raimundo Gomes de Matos, ainda em 1945, a contratar o senhor Rui
Toledo para planejar melhorias nos deslocamentos da Capital. Era sabido que o
descontrole do crescimento de Fortaleza transbordara as expectativas dos
planos urbanísticos anteriores e exigia que o saber técnico tentasse esquadrinhar
novamente o movimento da cidade.
Chegando de São Paulo pouco depois da
substituição do titular da Secretaria por Romeu Martins, o senhor Rui de
Toledo considerou o trânsito de Fortaleza um caos e, no tempo curto de seu
contrato, limitou-se a sugerir medidas que visavam “melhorar a educação” das pessoas
nas ruas. Recomendou, inclusive, a adoção de traves laterais nos
bondes, de forma a impedir que os passageiros subissem por qualquer lado do carro
e viajassem dependurados nos estribos, como bochecheiros³. Tais traves,
finalmente, poderiam evitar as constantes paradas dos bondes para embarques
fora dos pontos, que eram grandes obstáculos ao fluxo de automóveis.
As medidas eram tímidas. Mesmo com a confusão do
tráfego e a notória escassez de veículos de transporte coletivo,
havia dias que somente 8 dos 53 bondes elétricos entravam em circulação, tão
deteriorada estava a frota da Light.
Seu Batista alegava que a companhia não dispunha
de peças sobressalentes para reposição, pois a tecnologia dos tramways era
inglesa e a crise do comércio
marítimo durante a Guerra impedia que os navios
chegassem à Fortaleza.
Não há nervos que resistam à passagem na via
pública dos calhambeques da companhia inglesa. São tramways
desgastados pelo uso e máquinas corroídas pelo tempo. Controles
que descontrolam os motorneiros e desconsertam os tristes passageiros.
Então, restava improvisar. Em janeiro de 1946,
um grupo de trabalhadores da Light revelou ao repórter do Correio do Ceará
que algumas peças quebradas
eram substituídas por engenhos feitos de cimento
e cal pelos mecânicos da empresa, garantindo um número mínimo de bondes
circulando, mesmo em
condições duvidosas. Os resultados de tal
tática eram os frequentes acidentes e
incêndios espontâneos que revelavam aos
assustados passageiros as deficiências
da oficina da companhia. Uma semana depois da
revelação, o Unitário publicou o acidente com o bonde da linha José Bonifácio:
O bonde incendiou sua caixa de máquinas
provocando, além dos ferimentos em seu guiador, susto nos passageiros
que ali viajavam. Unitário, Fortaleza, 21 jan. 1946. Em março de 1946, a falha nos freios de um bonde causou uma colisão que levou um garoto à morte. Correio do Ceará, Fortaleza, 13 mar. de 1946.
Mas, com o final da Segunda Guerra, a retomada
do movimento internacional nos portos brasileiros e o
começo da recuperação da Europa, as esperanças do seu Batista de receber a encomenda
de peças da Grã Bretanha aumentaram. Ele planejava recolocar nas ruas os
bondes elétricos que estavam parados ainda no ano de 1946.
Tomadas as providências para receber o
carregamento, seu Batista viajou ao Rio de Janeiro para discutir com as
autoridades do governo soluções para a crise financeira da Light. Deixou a
gerência e a negociação sobre o dissídio dos
trabalhadores da empresa sob os cuidados de seu
imediato, o engenheiro chefe,
Mr. Brown.
Naquele tempo, a Light mobilizava grande número
de trabalhadores da cidade. Basta lembrar que logo no começo de suas
atividades, em 1913, tratou de empregar, só na operação dos carris urbanos, 64
motorneiros – que guiavam os bondes – 64 condutores – que cobravam as
passagens – e 25 fiscais, ou seja,
153 trabalhadores. Com o passar do tempo, o
contingente de empregados só fez
crescer, principalmente depois que a empresa
substitui a Ceará Gás Company na distribuição de eletricidade para iluminação das
ruas, em 1934.
Eram muitos funcionários, se comparados às
pequenas empresas de transporte por ônibus que existiam nos anos
1940. Trabalhavam em condições precárias mas, irmanados no embate com os
patrões ingleses, formavam um grupo mais ou menos homogêneo. No começo dos
anos 1920, criaram a Associação União e Progresso dos Trabalhadores
da Light que se transformou, em 1931, no Sindicato de Operários da Light. E no passo da sua organização, já haviam deflagrado grandes greves que chegaram a
paralisar a cidade em 1917, 1919 e 1926. Em 1926, o movimento paredista
obrigara o Presidente do Estado, José Moreira da Rocha, a mobilizar forças para
impor medidas de “caráter conciliador e, por último, de pronta reação,
[somente quando então] os ânimos se acalmaram voltando os grevistas ao labor honesto
e profícuo de sua profissão”. Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa pelo Desembargador José Moreira da Rocha, presidente do Estado. Fortaleza: Typographia Gadelha, 1926.
Os operários de bondes, força e luz eram,
portanto, protagonistas de uma longa
história de reivindicações de trabalho.
Enquanto seu Batista estava às voltas com a
crise da Light, em 1946, o governo federal regulou o direito de greve.
Então, o Sindicato dos Operários em Empresas de Carris Urbanos de Fortaleza
encaminhou à Delegacia Regional do Trabalho um memorial descrevendo as muitas
responsabilidades dos trabalhadores da Light. No documento, o
sindicato enumerava os desafios do aumento do custo de vida, das baixas
remunerações e propunha, enfim, um
aumento que variava entre 50% e 80% sobre os
salários. Naquele tempo de
escalada da carestia, os trabalhadores da Light
ganhavam entre Cr$ 145,00 e Cr$
1.000,00. A fórmula de reajuste escalonado dos
ordenados era uma alternativa à
conhecida inclinação da companhia em não
diminuir sua margem de lucros. A
Delegacia do Trabalho despachou o pedido à
gerencia da Light determinando um prazo de 48 horas para que patrões e empregados
entrassem em acordo.
No dia 30 de março o prazo se esgotou, mas a
Light não atendeu a reivindicação. Argumentava que não tinha
dinheiro para arcar com o aumento. Mr. Brown, “em todo o caso – frisou – na resposta a
ser enviada ao sindicato, ‘- Sugeriremos que seja utilizado, para cobrir esse
aumento, o saldo resultante do aumento das tarifas de força e luz e cuja
aplicação é da alçada do Governo’”.
Ou seja, naquele contrato em que as obrigações
da companhia e do Governo não estavam muito claras, tanto os
resultados dos aumentos de tarifa de bondes, luz e força quanto as responsabilidades
de oferecer o serviço de qualidade à população se confundiam. Aliás, nos
anos 1940, a constante das relações entre o Governo e Light era um jogo de
compensações no qual os pedidos da empresa para autorização de aumentos
no preço dos bondes correspondiam a compromissos de investimentos em
novas linhas, cuidados com os tramways ou com a folha de pagamento do
pessoal do tráfego. Mas, na maioria das vezes, os aumentos de tarifas não
bastavam para cobrir os gastos da empresa. Então, os investimentos no serviço de
transporte da cidade ficavam para depois.
Daí decorria o costumeiro desrespeito aos
acordos firmados com as autoridades. Pouca gente acreditava nas
promessas para minimizar o “castigo dos passageiros de bondes”. O sonho do seu Batista
de aumentar a frota tornou-se bravata de 1º de abril em 1946, junto com as
ironias urbanas sobre o funcionamento da iluminação e dos telefones, do
tabelamento do preço do peixe, da chegada de navios.
Mentiras do Dia:
A Light adquiriu quarenta bondes novos, com
assento de veludo e vai manter corrente contínua.
A sensação de que pouco se poderia esperar
tornou-se mais concreta quando o vapor Benedict chegou a Fortaleza, em 3
de maio de 1946, com peças capazes de restaurar somente 10 dos bondes
elétricos, que, segundo Mr. Brown, depois dos reparos, poderiam ser reintegrados às
linhas da cidade em 10 semanas.
A frustração daqueles que esperavam
que os 53 bondes operassem só foi minorada pelas manchetes de jornais que
sugeriam benfazejas expectativas do modelo alternativo de transporte coletivo na
cidade:
ÔNIBUS ENCOMENDADOS
Segundo o
nosso informante que é pessoa merecedora de fé, a “Empresa Pedreira”, que explora as linhas de
Jacarecanga e Brasil Oiticica, dentro de três meses, estará com mais
3 ônibus em circulação.
A
“Empresa Salvador”, cujos carros trafegam para Monte Castelo, antigo açude de João Lopes, lançou em circulação
um carro novo e tem
encomendado mais dois.
Como observam os nossos leitores, nos três
próximos meses, o nosso sistema de transportes inter-urbanos terá
melhorado consideravelmente, marchando para uma solução
definitiva e satisfatória a crise que ora nos aflige.
A comparação da ineficiência da gigante inglesa
com as pequenas empresas de ônibus era inevitável. Como explicar
que, cobrando passagens ao mesmo preço, os ônibus fossem tão mais
confortáveis, seguros e rápidos? Numa leve alfinetada na omissão dos homens públicos,
os passageiros acreditavam que “o cúmulo da boa vontade seria a gerência da
Light fazer alguns consertos nos calhambeques com que serve à população”.
No dia 14 de maio de 1946, seu Batista voltou do
Rio de Janeiro munido da panacéia que tiraria a Light do vermelho. Urgia
mudar a matriz de energia elétrica da cidade, substituindo a queima de carvão e
lenha por caldeiras capazes de processar óleo diesel na usina do Passeio
Público. Era uma alternativa eficiente que deixaria Fortaleza livre dos lapsos de
fornecimento e, de uma vez por todas, do fantasma da falta de energia elétrica. Ao mesmo
tempo, o diesel colocaria a Light novamente em condições financeiras de operar.
Mas tal mudança, como de costume, exigiria o
esforço coletivo, traduzido na elevação das tarifas de força e luz. Afinal,
não se podiam esperar novos investimentos da Inglaterra, abalada como estava
com os sacrifícios da Segunda Guerra, assim como todos os países do Velho
Continente... O dinheiro teria de sair do Brasil. De acordo com o seu Batista,
esses mesmos motivos tinham impedido as chegada das prometidas peças para os
bondes estragados no vapor Benediet:
Não é verdade que seja velho todo o material
recém chegado da Inglaterra. Recebemos Cr$ 600 mil cruzeiros de
equipamentos, rodas, engrenagem, etc. Apenas os motores e controles
indispensáveis não puderam vir saídos de fábrica. É que não houve
meios de trazer os novos. E a não vir nada, preferimos trazer uns usados, em
boas condições ainda. Que se compreenda: todas essas dificuldades de transporte em Fortaleza, de vinda de material
novo, tudo isso é doença geral, doença do após-guerra. Que é que podemos
fazer além do que
fazemos? Onde é que buscaremos bondes novos?
Enquanto isso, motorneiros e condutores esperavam
o fim do impasse dos
salários. E, em poucos dias, as alegações de que
a Light estava sem dinheiro
caíram por água abaixo. A Justiça do Trabalho
determinou o pagamento do
aumento salarial, descartando a desculpa de que
a empresa só dava prejuízos. Os juízes consideraram que há tempos a companhia
não cumpria seus acordos com o poder público. Na última negociação, por
exemplo, comprometera-se, em troca do aumento nas passagens, a retirada dos “bondes
da Praça do Ferreira, fazendo-se, em substituição, instalação de trilhos nas
ruas Barão do Rio Branco e Liberato Barroso. Além disso havia a junção das linhas
Via Férrea com Soares Moreno, o prolongamento da linha Jose Bonifácio e outros
serviços [...] A elevação das tarifas e das passagens de bondes entrou
imediatamente em vigor, mas os melhoramentos e ampliações que a Light se
obrigara ainda [continuavam] a ser esperados pela população de Fortaleza".
Uma devassa nas contas da Light revelou que "a
soma dos saldos verificados entre as despesas e a receita da
mesma [companhia] depois de 1932,
[ascendia] a elevada quantia de CR$
26.008.820,35. Ainda mesmo deduzido o
valor dos descontos de previsão reservados
anualmente pela empresa, apurou-se
um lucro liquido de mais de dez milhões de
cruzeiros". É certo que tal conta,
encomendada pela Justiça do Trabalho, divergia
completamente das planilhas
preparadas pelos guarda-livros da Light, que
apontavam um déficit muito maior. De qualquer forma, com os novos cálculos em
mãos, os trabalhadores pediram a prisão preventiva do gerente da Light, caso não
cedesse os novos salários.
Seu Batista estava certo de que a Light não
estava em condições de pagar novos salários. Argumentou que só a majoração nos
preços de luz e transporte
traria recursos para honrar o aumento, mas sabia
que tal solução demandava
muitos estudos do Governo do Ceara. Então,
desistiu. Pediu ao interventor federal no Ceará, Ministro Pedro Firmeza, que
providenciasse a intervenção federal na companhia.
Em 1° de junho de 1946, sob a orientação do
Ministro do Trabalho, o Presidente Dutra decretou a intervenção, nomeando
o Capitão Josias Ferreira Gomes novo administrador da Ceará Light.