O centenário do Theatro José de Alencar deve tributos a um sem número de fortalezenses: servidores, platéia e contribuintes em geral. A história desses indivíduos está por trás da construção coletiva que esse equipamento cultural representa – esta é apenas mais uma delas
Por Yuri Leonardo Silva e Janaina Bezerra Pinto
"Não dá pra trabalhar no Theatro José de Alencar nessa condição, dona Silêda!" – esclareceu Seu Crispim. Já haviam se passado cinco minutos de conversa em que o marceneiro-eletricista-pedreiro-pintor-cenotécnico explicava para a Silêda Franklin, até hoje diretora administrativa do TJA, o motivo de todo constrangimento: um furo na sola do sapato.
Francisco Crispim de Oliveira foi o faz tudo mais aprumado de que se tem notícia no hoje centenário Theatro. Trabalhava a pano passado, de cinto, sapato e meia. A camisa abotoada de mangas compridas era tal qual uma segunda pele. Mesmo em face do trabalho braçal mais exaustivo, Crispim não abria mão da aparência impecável. “A elegância personificada”, nas palavras de Silêda.
Perceba que a disputa de homem mais cheiroso e bem vestido era arrolada também pelos lendários Seu Muriçoca, o porteiro, e Trepinha, o palhaço – carismáticos os dois e já conhecidos do público assíduo.
A fineza do quebra-galho, porém, estava também nos modos e no carinho declarado pela primeira casa de espetáculos pública de Fortaleza. Funcionário da Secretaria de Cultura do Estado, desde 1971, foi relocado para o Theatro durante a quinta e maior reforma da Casa, vinte anos depois.
Iniciada em 1989, a intervenção construiu um centro técnico e incorporou a estrutura da antiga Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Ceará – o Cena, frequentado por centenas de estudantes dia após dia. Com o acréscimo de três palcos, além de salas para ensaios e para a chamada residência artística, o José de Alencar transformou-se em um centro cultural.
Os amantes da Casa foram também agraciados com um sistema de ar-condicionado e com o aprimoramento da acústica do palco principal. Mas o significado daquelas paredes imponentes está além do monumento nacional tombado em 1964. As escadarias que dão acesso às altas e pesadas portas são testemunhas centenárias dos idos do século passado.
Bem ali, futuros nomes de rua sorriram das galhofas de figuras anônimas. Madrugadas adentro, os funcionários do Teatro se deixaram ficar um pouco mais no trabalho, escolhendo qual bar os receberia sóbrios para depois devolvê-los cambaleantes à calmaria das ruas.
Já no início da década de 1990, burburinhos sobre atos violentos tornavam-se a cada dia mais frequentes, e o comércio ambulante já tomava os espaços públicos, mas não sejamos avexados, que essa história teve um começo.
A testemunha de ferro e vidro
Um século antes, surgia em Fortaleza a Companhia Cearina, formada por idealistas inconformados com a inexistência de um grande teatro na Capital – já beneficiada com o progresso das estradas de ferro e com as novidades trazidas pelos navios que atracavam no porto.
Em paralelo, grupos amadorísticos de teatro pululavam na província de Fortaleza bem antes de o estado corresponder às necessidades da população de aproveitar o tempo livre. As horas de folga eram consumidas em tardes no Passeio Público, na fruição de bandas de música - fardadas ou das companhias de comércio, que perambulavam pelas ruas do Centro; além da programação de festas religiosas, clubes e bailes realizados nas casas de famílias da sociedade.
Mesmo com estas atividades preenchendo a “agenda cultural”, um desejo permanecia inalcançado pelos citadinos e era reverberado pela Companhia: a casa de espetáculos oficial do Estado, que deveria ser edificada à beira da Praça do Patrocínio – atual Praça José de Alencar.
À época, o grupo se desfez como uma tentativa frustrada, mas a história lhe dá os créditos pelo olhar visionário. Em 17 de junho de 1910, o Theatro José de Alencar já nasceu gigante, chegou como filho esperado da elite fortalezense.
O templo de ferro esverdeado e vidro multicolorido surgiu como um luxo, cresceu nos corações como um orgulho da terra e firmou-se como um abrigo de artistas ao longo das décadas da nossa história.
Entanto, acima de todos os títulos, o TJA foi testemunha das reinvenções do Centro. Viu insurgir a oposição à oligarquia Acciolina no mesmo Passeio Público que executou os Confederados do Equador. Presenciou os olhares cansados de quem vinha do Inhamuns arrastado pela fome, mas, sobretudo, pela esperança de encontrar abrigo entre as riquezas do algodão.
Sentiu crescerem os muros da cidade e as barreiras interpessoais. Presenciou os transeuntes mudarem de trajes, largarem mão dos chapéus, relaxarem nos botões abertos das camisas - as calçadas servindo de cama, de ponto de venda, de lata de lixo.
As pessoas deixaram de desejar morar no Centro. E, mesmo a Igreja do Patrocínio, patrimônio tombado pelo Estado, sem ter para onde ir, fincou cercas em torno de si para se resguardar da própria gente.
O Theatro viu tudo. Crispim e Teresinha eram meninote e mocinha quando damas e cavalheiros passeavam em seda francesa e linho irlandês pela Praça do Ferreira. Ainda brincavam nas ruas barrentas de Maranguape, ignorados do Centro das Coca-Colas - as moças prendadas e de família, namoradeiras dos soldados estadunidenses aportados em meado de 1940 na capital cearense dos 200 mil habitantes.
Mas algo nos modos e nas feições desse marceneiro e dessa caixeira-viajante, ele falecido e ela envelhecida, aproxima os dois e não está muito distante do refinamento fortalezense dos tempos da Segunda Guerra Mundial. O destino talvez já estivesse traçado para que se reencontrassem na década de 1980, no Centro do sol renitente espelhado em asfalto.
Os anos e a vida talhariam o jovem franzino em cavalheiro pobre e polido. Ao longo de conversas e experiências, o rapazote lograria a maestria de carpinteiros, eletricistas, pintores e tantos outros profissionais anônimos que permeavam o bairro. Perderia a mocidade, deixaria esvair pouco a pouco a saúde em maços de cigarro, doses de whisky e garrafas de cerveja. Encomendaria roupas feitas por alfaiates do bairro Parque Araxá, e conquistaria o coração de Maria Moura de Oliveira, a primeira mulher.
Através de um homem de poder, a cidade o agraciaria com a chave da casa de um marechal: Humberto de Alencar Castello Branco. Alguém, cujo cargo ninguém sabe ao certo, “botou uma pessoa pra cuidar do lugar porque a casa vivia fechada”, recorda a filha Edna de Oliveira, que décadas atrás se mudaria com o resto da família para o Centro.
O casal não viveu junto ali mais de dois anos: um derrame cerebral deixaria o pai viúvo. Consolos da dor e do desamparo, as tertúlias e os bares acolhiam o homem das várias profissões após as horas de trabalho. As pretendentes apareciam aos montes, mas a família era categórica: “eu queria uma mulher que cuidasse do meu pai”, relembra Edna.
Durante nossa prospecção por impressões do faz-tudo, tivemos o deleite de vivenciar uma reunião da velha guarda de funcionários do TJA sob o Palco Principal. Todos sentados nos velhos sofás negros do porão, às gargalhadas e atropelando as falas uns dos outros.
“Ele gostava de uma cervejinha danada!” apontou Francisco Brasil, enfático. “Mas não aprontava confusão com ninguém!”, retrucou Mauro Coutinho. Às vezes, chegava pra trabalhar com a “cara amassada”, ao que os amigos emendavam: “Tu num pode beber, Crispim!”
Por essa época, a comerciante Teresinha Silvério voltou do Norte do país, aonde foi ganhar a vida com a venda de confecções, e reencontrou o conterrâneo de Maranguape a procura de um rabo de saia que lhe engomasse as camisas. Do alto dos saltos Luís XV e com o lápis dos olhos irretocável, ela aceitou viver junto dele nos porões da General Bezerril, no 38.
PORTAS ABERTAS AO GRANDE PÚBLICO
O Centro de homens e mulheres rotos, das calçadas tomadas pela sobrevivência e dos prédios abandonados. Este é o cenário onde se redesenha o centenário Theatro. Sobrevivente de outros ares, mutante enraizado naquelas paragens, ele precisou subverter-se para resistir.
Passou de mimo das elites à praça do povo.
Desde 1999, abriu as portas ao grande público e viu reflorescer o jardim de Burle Marx. Mantendo a postura de proximidade com os inúmeros frequentadores anônimos do Centro, ao longo do ano do centenário, estão previstos cortejos com artistas de rua, brincantes e manifestações de festas e folguedos populares representativos da cultura cearense.
MEU AMADO FANTASMA
Já ia alta a madrugada de quinta-feira e Tereza não conseguia dormir. Faltava-lhe um pedaço, àquela hora entretido em um bingo qualquer e regado a várias doses de Dreher. Ela podia apostar, depois de tanto tempo de convívio, que a voz de Altemar Dutra embalava os jogos do companheiro. Levantou-se, ajeitou os cabelos à penteadeira, calçou os saltos e subiu altiva os lances de escada que a apartavam da rua.
Encontrou Francisco esquecido das horas. Nos dedos gastos, mais um cigarro. “Eu vou tirar você desse lugar/ eu vou levar você pra ficar comigo!” - gritava a vitrola. A mulher subiu o batente desbotado, repousando a mão direita sobre o ombro do marido. “Fia!”, ele arriscou, no tom de voz dos meninos travessos que escondem a baladeira detrás de si. “Bora pra casa, Crispim!” De braços dados, afinal, traçaram o caminho de volta.
A mesma cena se repetiu muitas vezes no passado e ainda faz saudade nos relatos da velha senhora. Viva lembrança nos sonhos das noites frias, quando ela imagina sentar-se no colo do esguio e agora fantasmagórico boêmio.
Das memórias, restou a imagem do homem que ano após ano pintava a fachada da casa do ex-presidente brasileiro. Não era o dono do sobrado, nem somente o pintor. Não tinha riquezas materiais, mas não era pobre. Crispim é representante legítimo da nobreza dos porões do Centro. No Theatro, ainda reina cheiroso e elegante, longe das vistas voltadas para o palco, próximo do apreço dos companheiros de trabalho.
Na própria casa, dividia espaço com os restos mortais de dias áureos: a morada do futuro marechal, depois o órgão administrativo, em seguida a pinacoteca e, por fim, a sede cearense da Associação dos Diplomados das Escolas Superiores de Guerra. Restaram apenas salas e corredores abandonados da casa de múltiplas identidades. O arquivo morto, há muitos anos, ocupa o sobrado onde Crispim e a família se ajeitavam no longo vão, abaixo das imensas toras de Carnaúba, sobre onde marchavam os generais.
Crédito: Jornal O Estado