“Minha jangada de vela,
que ventos queres levar?
De dia, ventos da terra,
De noite, ventos do mar.” Juvenal Galeno
Duzentos e oitenta e sete anos passados, Fortaleza distanciou-se de suas origens, já não parece lembrar a sua identidade ancestral. Mas ganhou roupa nova, nem sempre de bom gosto, convenhamos, talhada às pressas, apertando no cóis e curta nas barras, segundo o impulso do momento, da imposição da moda, fiel ao espírito de “progresso” que animou os valentes empreendedores de passagem e os autóctones. Não terá sido diferente com outras cidades brasileiras, cravadas ao longo do litoral. O passado parece ser para os filhos desta terra um peso de cujo incômodo nos devíamos desfazer.
Destruímos, diligentemente, o que havia de mais significativo de seu acervo material. Continuamos, com aplicação, a apagar os vestígios de suas origens graças ao “bota-abaixo” incansável dos gestores públicos, inspirado nos interesses privados, e à ignorância que aqui fez morada, e ao desamor inculto, quase vergonha mal dissimulada, pelo pobre patrimônio acumulado, encorajados por uma reverência suspeita pelo futuro. Fomos, nós cearenses, no passado, um povo desinteressado pelas coisas de nossa própria cultura, avesso à informação e aos conhecimentos. Não por gosto, mas, certamente, pelas circunstâncias em que o povo cearense viveu, mergulhado na pobreza e na indigência da educação. Sob a proteção das oligarquias que, sob mil faces, perduram entre nós, vestidas por uma roupagem moderna e urbana.
Capitania sem “capitão-mor”
Não se há de esquecer que, dentre as Capitanias, anunciadas hereditárias, empreendimento público-privado inaugurado pelos colonizadores, a do Ceará foi a única que jamais conheceu o seu titular “arrendatário”, tendo vivido na dependência umbilical de Pernambuco. Para o bem ou para o mal, surgimos “terceirizados”, e aqui ficamos esquecidos, até mesmo quando alguns homens inspirados desenharam o “polígono das secas”, dentro de cujas fronteiras tantos pereceram e tantos sobreviveram, tocados pela sorte e pela riqueza.
Foram poucos os ladrilhadores
Com o passar do tempo o vilarejo elevado sobre as dunas foi crescendo como pôde, ganhando o interior das terras ribeirinhas, indo em direção norte e descendo para o sul. De vila à cidade, foi-se expandindo, sem que um projeto bem concebido lhe orientasse os passos e a conquista de espaços vazios. Do tempo quando se fez conhecer a intuição generosa do boticário Ferreira aos nossos dias, poucas tentativas sérias merecem registro. Entre elas, os planos urbanísticos desenvolvidos por Silva Paulet e Adolfo Herbster, os pioneiros, e Saboia Ribeiro e Hélio Modesto, a partir da década de 1950. De lá para cá, a cidade criou tentáculos, labirintos e artérias, ao ritmo de seus espasmos desordenados de crescimento. Predominou, na maior parte dos casos, a força do crescimento imobiliário. A destruição das obras mais representativas fez-se lentamente, em alguns casos, céleres, sempre que os interesses financeiros imprimem velocidade às obras e desideratos humanos.
O “bota-abaixo” para atrair o “futuro”
A “limpeza modernizante” começou em torno dos anos 40, com a cumplicidade dos entes públicos, senão a sua iniciativa, e a admiração ingênua dos fortalezenses, fascinados com as obras de desmonte das “velharias”. A cidade contraiu construções horrendas, modismos modernosos improvisados ao sabor das exigências de proprietários “nouveaux riches”, burgueses em ascensão aspirantes por “status” e pela respeitabilidade da riqueza notada e ostensiva. Essas criações indecorosas, do ponto de vista arquitetônico, foram trabalhadas nas pranchetas de engenheiros civis, bons de cálculos e ruins de aprumo vitruviano.
Não havia, por esse tempo, arquitetura como atividade ou profissão, era tida como uma ocupação pouco masculina que incutia suspeitas entre os homens de tradição conservadora e viril. Havia quem confundisse o arquiteto com os maneirismos dos decoradores. Com o advento da UFC e de sua Escola de Arquitetura, surgiram os primeiros profissionais, formados em casa, e, com eles, projetos inovadores que, de um certo modo, salvaram o perfil de Fortaleza, com linhas modernas e cores tropicais. Não sem que os horizontes não viessem a ser extirpados da paisagem, enquadrados entre construções de concreto que subiram, fechando a beleza da terra, deixando à vista, apenas, o azul claro dos céus cearenses…
As derradeiras lembranças da Fortaleza anterior aos anos 1930 foram erradicadas, graças ao trabalho e ao empenho de prefeitos e vereadores, artesãos do “novo” que nem a cidade, tampouco nós merecíamos. O prédio da Intendência Municipal, só para dar um pálido exemplo da capacidade destruidora de nossos edis, foi posto abaixo e em seu lugar levantado o que se chamou de “Abrigo Central”, concepção trágica, monumento ao mau gosto e à desocupação transformada em folclore. Essa obra, uma réplica de mau gusto do “Tabuleiro da Baiana”, do Rio de Janeiro, resistiu a todas as tentativas de demolição, de braços com a ignorância de nossos políticos e dos burgueses que foram erguendo os seus palacetes nos bairros tradicionais e em novas trilhas de expansão. Arrancaram-se os trilhos dos bondes e tiraram-nos de circulação, transformando em lenha os vagões de madeira de outros tempos. Alguns, muito poucos, escaparam, recolhidos a coleções que já não existem mais. O Palácio do Plácido, que chegou a ser considerado como possibilidade de lá instalar-se a reitoria da UFC, em 1954, foi demolido durante a noite: seus proprietários pretendendo furtar-se à proibição imposta pela prefeitura, fizeram um mutirão e o puseram abaixo em poucas horas.
O sequestro do passado ignorado
Monumentos e bens públicos, obras de arte de praças e pequenas localidades, desapareceram. Poucos se salvaram da desídia official, da ignorância dos seus gestores.
A fonte da Praça da Lagoinha foi salva pela Universidade Federal do Ceará e pelo Banco do Nordeste do Brasil, graças ao então prefeito Lúcio Alcântara e a pertinácia de Zuleide Martins de Menezes. O bebedouro de Mondubim, obra em metal importada da França (cuja tradição de bons forjadores é ainda hoje lembrada), desapareceu e poucos sabem onde possa encontrar-se. Havia replicas em outros pontos e bairros da cidade. As que escaparam à apreensão por particulares, foram fundidas a que se deu melhor aproveitamento. A estrutura dos mercados reduziu-se à que hoje acolhe vasto público, frequentadores de restaurantes, bares e casas de comida, na Praça dos Pinhões. Integraram-se á vida da cidade e milagrosamente sobreviveram aos cuidados da edilidade. Os outros não são mais vistos a olho nu.
Mais tempo houvesse e interesse de quem lê estas linhas desafinadas justificasse o esforço, poderíamos continuar nesses registros incômodos.
Matias Beck versus Soares Moreno, batalha a céu aberto
Lustosa da Costa empenhou-se por apaziguar a guerra que se estabeleceu entre os defensores de Matias Beck e Soares Moreno, como fundadores de Fortaleza. Historiadores e sodalícios da mais alta estirpe entraram em conflito aberto, uma verdadeira “jihad”, para nomear o fundador de Fortaleza. Dado a importância do embate Lustosa sugeriu, certa feita, que a cidade fosse dividida em Fortaleza Ocidental e Fortaleza Oriental, tendo como fronteira natural o riacho Pajeú, de saudosa memória, cada uma delas com o seu fundador. Não houve vencedores nem perdedores. Tornamo-nos uma cidade ecumenical, tendo um lusitano e um flamengo como fundadores “ad perpetuam rei memoria”.
Ismael Pordeus e Raimundo Girão terçaram armas e pesquisas, documentos e velhos papéis de arquivos, mesmo os que jaziam nas arcas do Além-mar para provar a precedência de seus heróis na fundação da cidade de Fortaleza. Até hoje essa disputa separa historiadores e os indispõem entre si.
Por esse tempo, quando os estudiosos porfiavam pela aceitação de suas teorias fundadoras, o professor Antônio Martins Filho, reitor da UFC, ao tempo, houve por bem fazer da Universidade terreno neutro entre os contendores. Floriano Teixeira foi contratado para pintar os retratos de Matias Beck e Martins Soares Moreno, não necessariamente nesta ordem. Pretendia, assim, Martins Filho fixar, cientificamente, a isenção da UFC em face da beligerância crescente entre as hostes beckistas e martinianas. Os quadros, dois óleos que ainda hoje devem estar por lá, foram afixados na antecâmara do gabinete do reitor, lugar de honra merecida por tão eminentes navegadores e funcionários. Comissão formada pelo Instituto do Ceará, Histórico e Geográfico deslocou-se ao Benfica para realizar verificação in loco do gesto pacificador do reitor.
Duas Fortalezas, uma de costas para a outra
Coexistem, hoje, duas cidades, uma de costas para a outra. Da Praça do Ferreira para o norte, é a pobreza das cidades miseráveis, mal servida, em processo de desagregação, por onde circula e mora uma população numerosa e desassistida e carente. Da Avenida Dom Manuel para o Sul, é outra cidade, com ares metropolitanos que se expandiu, entretanto, sem projetos urbanos, sem praças, atopetada de prédios cujo gabarito foge ao desejável, segundo os modernos padrões de qualidade de vida. As praças foram leiloadas, áreas verdes, com muitas árvores, cajueiros e mangueiras, vendidas para incorporações lucrativas, Antropotecas gigantescas que sobem para mais de 20 andares, fecham os horizontes e param o sopro dos ventos. A cidade foi, assim, emparedada, tornou-se um contra-forte erguido contra o mar-oceano, os verdes mares que banha as brancas terras, como diria Alencar.
A persistência do “xadrez”
Das cidades da região, Fortaleza caracteriza-se pelo arruado em xadrez. Traçado equilibrado, como se fosse um grande “puzzle”, com peças encaixadas. O centro urbano original era assim, é assim. O crescimento para o poente, em destino ao Alagadiço e ao seu vasto entorno conservou o mesmo traçado hígido; o que se deu para o nascente, na direção do Outeiro e, depois, da Aldeota guardou o quadriculado que aprisiona, hoje, o fluxo do tráfego e torna o transporte de superfície desafio para os urbanistas e padecimentos para os habitantes da cidade. O modelo que, se esperava, fosse abandonado sob a pressão da conquista de novos espaços e da sua urbanização, sobreviveu às circunstâncias e ao exemplo de outras cidades. Não temos uma cidade planejada, como Brasília ou Belo Horizonte, nascidas em prancheta de urbanistas. Mas é como se Fortaleza tivesse tido a mesma criação inspiradora…
Quarteirões pequenos, cruzamentos próximos, ruas estreitas, calçadas reduzidas e mal calçadas. As grandes vias surgiram, por imposição da realidade, mas são recentes. E servem aos fluxos com demanda de bairros periféricos, muitos deles já abraçados pelos tentáculos da cidade grande.
Por força dos impedimentos criados por uma urbanização “reprodutiva” da teia enxadrezada original, produziu-se entre nós uma cultura particular, com o surgimento do “centauro fortalezense”, o bípede transformado em carro, cabeça, tronco e rodas. Como não há calçadas, as pessoas não andam, salvo nos lugares onde praticam disciplinadamente o seu “cooper”. De modo geral, deixam suas moradas sobre rodas e estacionam em frente do destino. A insegurança que agora se abateu sobre os fortalezenses aprimoram a arte da direção auto-motiva. Não se há de saber o que é pior, se um cruzamento com semáforo ou se liberado à gana dos condutores de suas carruagens do ano.
Um “Manual do Usuário de Fortaleza”
Apesar de tudo, é uma cidade gostosa, alegre e ensolarada, que o sol não foi ainda removido por decreto municipal. É verdade que o trânsito tornou-se um inferno, os transportes coletivos viraram um aparelho de tortura. Mas é a nossa cidade.
Falta aos seus diletos habitantes um “Manual do Usuário de Fortaleza”, com regras pertinentes que nos mostrem como viver, conviver e sobreviver nesta cidade gentil e bela à beira mar plantada.
Texto de Paulo Elpídio de Menezes Neto