Abril de 1964 foi talvez pior que março. Para algumas pessoas, os dias não passavam como de costume e o fim de mês não parecia voar. Haviam cortado suas asas e por isso os dias andavam peados, vazios de coisas triviais. O acordar com os galos, o esfregado matinal com a sinhazinha, a hora do homem da carroça d'água e o café coado em pano preto de borra... Nada. Nem o filho que chorava com o ''dordói'' e água morna que devolvia-lhe a vista... Nada. Coisas que todos os dias corriam iguais sendo diferentes.
Vovô foi quem inventou essa conversa de que o tempo voava. Foi ele. Era pra dizer que os segundos tinham vida e mexiam com a vida dele e a alheia. Nada a ver com rugas e com coisas desinfelizes. Adorava viver o dia, amá-lo à boquinha da noite, dormi-lo e, cedo, estar de pé pra viver outros despropósitos.
Angustiava-se quando caía enfermo. Sinal de que os dias caminhariam empanturrados, golfados. Que não aconteceriam triviais. Era como estar preso, isolado das acontecências e das coisas que seguiam seus inesperados sem ele.
A propósito disso, me enviaram carta de um preso que se angustiou com a desfelicidade de perder de vista o cotidiano dos seus... De perder os dias com os seus. Foi Blanchard Girão, em abril de 1964, ao padre Zé Nilson... Sacerdote do Mucuripe, protetor das meninas alegres. Foi assim:
''Meu bom e digno padre José Nilson,
Não estaria ausente à sua festa se os acontecimentos que se desencadearam em Abril não houvessem mudado o curso de minha vida. Daqui desta prisão onde me lançaram vi para sempre o adeus de meu Pai. Não assisti à chegada ao mundo de minha filhinha Martha, que está crescendo sem o meu carinho. Nunca mais deitei-me ao chão para servir de montaria a Luiz Carlos e Blanchard Filho. Os dias são iguais, meu amigo, são longos e tristes. Mas, não se surpreenda, ao dizer-lhe que são também cheios de esperança.
A você posso fazer-me entender muito bem. A poucos falaria com tanta confiança e maior certeza de ser compreendido. Sei da grandeza de sua alma, da lucidez de seu espírito, da bondade de seu coração aberto às aflições humanas. Posso lhe confessar tudo que guardo no íntimo de mim mesmo e que só daqui a muito tempo transmitirei, como subsídio à História, aos que respirarem um clima de Liberdade e Direito.
Quando você recebeu, há 17 anos, as vestes sacerdotais, tinha a convicção de que iria encontrar campo fácil à pregação da Doutrina de Cristo a todos os homens. Mas estou convencido de que a experiência lhe ensinou algo bem diferente, variando de camadas sociais, os homens divorciaram-se da doutrina cristã. Os ricos de há muito ergueram altares a outros deuses, aos novos ''bezerros de ouro'' da civilização contemporânea. Adoram acima de tudo o Prazer e o Luxo. Veneram o Conforto e a Glória dos salões. Seus valores morais estão limitados pelo materialismo de sua riqueza. E sei, e você sabe, que eles vão à Igreja. Fingem adorar a Deus. Mas em verdade mentem. São os novos fariseus do templo.
Quando se ajoelham e porventura oram, no seu consciente não acode a lembrança de que, inda há pouco, esmagavam sob o peso da exploração aqueles que constroem seu patrimônio. No seu ''ego'', uma crosta de insensibilidade fecha-lhes os olhos à brutal miséria em que a acumulação de seus bens lança a grande maioria de seus irmãos. E pedem - oh! inconscientes! - e pedem a Deus proteção para esse estado de coisas. E procuram iludir o céu com a oferenda de migalhas de sua mesa atiradas à pobreza faminta e humilhada!
E os miseráveis, meu amigo, será que ainda crêem e amam ao Criador? É difícil definir a alma dessa gente. Se entram na Igreja, não vão aos pés de Deus agradecer a graça suprema que seria a própria vida; vão chorar, meu amigo, vão implorar, vão contar suas desditas ao Todo Poderoso, última instância de seus anseios. Não vemos em seus olhos o brilho da alegria nem a beleza da felicidade. Seus corpos esquálidos, suas vestes em farrapos são o atestado de uma degradação física e social a que foram atirados pelas minorias ambiciosas e desumanas. A vida para eles é uma carga de sofrimentos e desencantos. Ainda aspiram pela lembrança de Deus, mas rastejam às portas do desespero.
E diante de todos, generoso e humano, você vai cumprindo sua missão divina. Conheço bem de perto o seu idealismo. Em muitas oportunidades - permita-me a franqueza - deplorei sua impotência diante da realidade que o cercava. As limitações eram tantas que um fraco recuaria. E você, ao contrário, sempre vibrante, disposto a fazer o mínimo que lhe é possível, rezando para que muitos o imitassem.
Nossos caminhos não sei se são os mesmos. Os fins, tenho certeza. E porque ansiei por uma transformação; porque não concordei com o endeusamento dos novos ''bezerros de ouro''; porque não me embruteci no culto à riqueza nem me insensibilizei ao sofrimento do povo; porque amei ao próximo como reflexo de mim mesmo que ele o é; por tudo isso, meu amigo Padre José Nilson, encarceraram-me. Destruiram o lar de meus Pais; roubaram-me o carinho e o afeto da esposa e de três filhos pequeninos.
A você também roubaram a suprema ânsia de sua vocação, que era, sem dúvida, ver os homens em harmonia, adorando a Deus na justeza da Idéia perfeita de que a vida deve ser vivida com dignidade, com amor, com paz e felicidade, não nesse entrechoque de interesses e ambições que faz do homem a fera a devorar constantemente o próprio homem.
Confundem-se os fins que buscamos. Triste e envelhecido, recalcando nalma a dor mais forte - a dor da injustiça! - a mesma dor do Cristo no tribunal de Pilatos, vou aceitando os meus dias com resignação, convencido de que num futuro não muito remoto a Verdade surja e com ela a Liberdade e o Direito; você, meu amigo muito amigo, também reflete no olhar a tristeza de sua incapacidade de derramar para todos os homens - e não para as minorias privilegiadas - a alegrias de felicidade terrena para a busca do Reino de Deus. Mas, igualmente a mim, tem no coração a plena consciência de que isto não é eterno, de que os homens amanhã encontrarão novamente a Doutrina e serão bons como sempre deveriam ter sido.
E é com essa síntese de nossos sofrimentos e anelos que me transporto à sua festa para, em meio a seus paroquianos humildes do Mucuripe, comungar da mesma felicidade que a todos domina no momento de abraçá-lo como amigo, na autêntica expressão desta palavra.
Vai meu abraço, amigo Padre Nilson. Que Deus escute as suas preces em favor dos pobres e dos bons.
Até um dia.
Blanchard Girão
Quartel do 23º B.C., em 29 de novembro de 1964''.
Não estaria ausente à sua festa se os acontecimentos que se desencadearam em Abril não houvessem mudado o curso de minha vida. Daqui desta prisão onde me lançaram vi para sempre o adeus de meu Pai. Não assisti à chegada ao mundo de minha filhinha Martha, que está crescendo sem o meu carinho. Nunca mais deitei-me ao chão para servir de montaria a Luiz Carlos e Blanchard Filho. Os dias são iguais, meu amigo, são longos e tristes. Mas, não se surpreenda, ao dizer-lhe que são também cheios de esperança.
A você posso fazer-me entender muito bem. A poucos falaria com tanta confiança e maior certeza de ser compreendido. Sei da grandeza de sua alma, da lucidez de seu espírito, da bondade de seu coração aberto às aflições humanas. Posso lhe confessar tudo que guardo no íntimo de mim mesmo e que só daqui a muito tempo transmitirei, como subsídio à História, aos que respirarem um clima de Liberdade e Direito.
Quando você recebeu, há 17 anos, as vestes sacerdotais, tinha a convicção de que iria encontrar campo fácil à pregação da Doutrina de Cristo a todos os homens. Mas estou convencido de que a experiência lhe ensinou algo bem diferente, variando de camadas sociais, os homens divorciaram-se da doutrina cristã. Os ricos de há muito ergueram altares a outros deuses, aos novos ''bezerros de ouro'' da civilização contemporânea. Adoram acima de tudo o Prazer e o Luxo. Veneram o Conforto e a Glória dos salões. Seus valores morais estão limitados pelo materialismo de sua riqueza. E sei, e você sabe, que eles vão à Igreja. Fingem adorar a Deus. Mas em verdade mentem. São os novos fariseus do templo.
Quando se ajoelham e porventura oram, no seu consciente não acode a lembrança de que, inda há pouco, esmagavam sob o peso da exploração aqueles que constroem seu patrimônio. No seu ''ego'', uma crosta de insensibilidade fecha-lhes os olhos à brutal miséria em que a acumulação de seus bens lança a grande maioria de seus irmãos. E pedem - oh! inconscientes! - e pedem a Deus proteção para esse estado de coisas. E procuram iludir o céu com a oferenda de migalhas de sua mesa atiradas à pobreza faminta e humilhada!
E os miseráveis, meu amigo, será que ainda crêem e amam ao Criador? É difícil definir a alma dessa gente. Se entram na Igreja, não vão aos pés de Deus agradecer a graça suprema que seria a própria vida; vão chorar, meu amigo, vão implorar, vão contar suas desditas ao Todo Poderoso, última instância de seus anseios. Não vemos em seus olhos o brilho da alegria nem a beleza da felicidade. Seus corpos esquálidos, suas vestes em farrapos são o atestado de uma degradação física e social a que foram atirados pelas minorias ambiciosas e desumanas. A vida para eles é uma carga de sofrimentos e desencantos. Ainda aspiram pela lembrança de Deus, mas rastejam às portas do desespero.
E diante de todos, generoso e humano, você vai cumprindo sua missão divina. Conheço bem de perto o seu idealismo. Em muitas oportunidades - permita-me a franqueza - deplorei sua impotência diante da realidade que o cercava. As limitações eram tantas que um fraco recuaria. E você, ao contrário, sempre vibrante, disposto a fazer o mínimo que lhe é possível, rezando para que muitos o imitassem.
Nossos caminhos não sei se são os mesmos. Os fins, tenho certeza. E porque ansiei por uma transformação; porque não concordei com o endeusamento dos novos ''bezerros de ouro''; porque não me embruteci no culto à riqueza nem me insensibilizei ao sofrimento do povo; porque amei ao próximo como reflexo de mim mesmo que ele o é; por tudo isso, meu amigo Padre José Nilson, encarceraram-me. Destruiram o lar de meus Pais; roubaram-me o carinho e o afeto da esposa e de três filhos pequeninos.
A você também roubaram a suprema ânsia de sua vocação, que era, sem dúvida, ver os homens em harmonia, adorando a Deus na justeza da Idéia perfeita de que a vida deve ser vivida com dignidade, com amor, com paz e felicidade, não nesse entrechoque de interesses e ambições que faz do homem a fera a devorar constantemente o próprio homem.
Confundem-se os fins que buscamos. Triste e envelhecido, recalcando nalma a dor mais forte - a dor da injustiça! - a mesma dor do Cristo no tribunal de Pilatos, vou aceitando os meus dias com resignação, convencido de que num futuro não muito remoto a Verdade surja e com ela a Liberdade e o Direito; você, meu amigo muito amigo, também reflete no olhar a tristeza de sua incapacidade de derramar para todos os homens - e não para as minorias privilegiadas - a alegrias de felicidade terrena para a busca do Reino de Deus. Mas, igualmente a mim, tem no coração a plena consciência de que isto não é eterno, de que os homens amanhã encontrarão novamente a Doutrina e serão bons como sempre deveriam ter sido.
E é com essa síntese de nossos sofrimentos e anelos que me transporto à sua festa para, em meio a seus paroquianos humildes do Mucuripe, comungar da mesma felicidade que a todos domina no momento de abraçá-lo como amigo, na autêntica expressão desta palavra.
Vai meu abraço, amigo Padre Nilson. Que Deus escute as suas preces em favor dos pobres e dos bons.
Até um dia.
Blanchard Girão
Quartel do 23º B.C., em 29 de novembro de 1964''.
Crédito: Jornal O Povo