Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Light
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes (Parte II)


Praça do Ferreira na década de 30.
No projeto de urbanização de Raimundo Girão, a retirada dos trilhos dos bondes da Light era imprescindível, principalmente em se tratando da Praça do Ferreira, cartão postal da cidade. A relação da companhia com a prefeitura, que já não era boa, ficou num patamar de tensão ainda maior:

Jornal A Rua de 16 de Dez. de 1933 
Após essas exigências e impasses, um funcionário da Light foi tomar satisfação com o Prefeito, explicando que não tinha condições de funcionar desta forma. Porém, a mediação encontrada por Raimundo Girão foi permitir que os bondes pernoitassem fora da estação. O chefe da municipalidade havia deixado claro que “a modernização” das ruas e das praças estavam no topo da hierarquia, e qualquer empresa deveria se adaptar a esse projeto.


Vista aérea da cidade na década de 30. Vemos a chaminé da Usina Light, a catedral metropolitana e o Gasômetro. Arquivo Nirez
Foto da Rua Major Facundo com vista da
Praça do Ferreira em 1937
O governo compreendia a importância de controlar os transportes, como parte de um complexo social maior que ia desde o esquadrinhamento das ruas em traçado xadrez, para evitar barricadas e facilitar o tráfego de mercadorias e transeuntes, até o isolamento e marginalização dos pobres em bairros afastados do perímetro central. Enquanto a Light, ou qualquer outra empresa, não aceitassem as regras do jogo, os prejuízos só tenderiam a se elevar até a falência. Pois o Estado brasileiro, com a ascensão de Getúlio Vargas no poder, não estava mais entregue “a mão invisível do mercado” (a experiência de 1929 foi muito educativa sobre os problemas que “tal liberdade” poderia causar), mas, trava-se na época de um Estado interventorial, e que tudo queria controlar.
Percebemos a dimensão desse controle numa matéria do Correio do Ceará, referente ao trânsito de animais pela cidade:


Vendedores em seus burricos - Parque da Liberdade
Todos sabem que não se pode contar com o abastecimento de água do Acarape que falta desde as primeiras horas do dia até a noite. É imprescindível que se recorram aos vendedores ambulantes e se estes não podem transitar com seus burricos como é que vai ser?[...] A situação é, pois, desesperadora para os que ficam sem o precioso líquido do abastecimento público e não podem comprar porque é proibido animais transitarem pelas ruas calçadas a paralelepípedo ou a concreto. 


Vendedores de água no início da Rua Marechal Deodoro,
esquina com a Domingos Olímpio. Arquivo Nirez
[...] Se se permite que animais puxando carroças com rodas de borracha penetrem nas ruas, porque impedir o trânsito deles só porque não estão atrelados a um veículo? A Avenida João Pessoa é calçada a concreto em toda a extensão do Benfica a Porangaba. Entretanto, por ali transitam, sem proibição nenhuma, animais de toda a espécie, sem que dali resulte qualquer dano ao calçamento. Reflita bem o Sr. Prefeito sobre os embaraços que essa medida ocasiona ao comércio e a população em geral e verá que convém revogá-la em bem do público e para maior simpatia da administração municipal. (CORREIO DO CEARÁ, 04/10/1934 p 01).

Praça do Ferreira na década de 30. Arquivo Nirez
A prefeitura proibiu os animais transitarem em algumas ruas do Centro da cidade que foram calçadas a paralelepípedo ou a concreto, alegando que poderia danificar o material do calçamento. Sendo que boa parte do abastecimento de água, venda de diversos produtos como frutas e outros gêneros de primeira necessidade, ainda eram realizado por ambulantes conduzindo as mercadorias nos animais. A contradição aumenta quando o periódico cita que da Avenida João Pessoa a Porangaba, os animais transitam sem nenhuma fiscalização, e mesmo assim não causaram dano algum no concreto. Na verdade, o que podemos inferir dessa medida da prefeitura, é que ela queria afastar os animais do perímetro central, escopo principal da modernização, lócus do comércio e anfiteatro do desenvolvimento, pois, como a Avenida João Pessoa ficava um pouco afastada do centro, sem falar da Porangaba (Atual Parangaba), que era ainda mais distante, não carecia de tanta fiscalização.


Praça Clóvis Beviláqua (Ainda sem a Faculdade de Direito) em 1931.
Arquivo Nirez
Dessa forma, animais transitando pelas artérias centrais causariam contrastes com a remodelação do centro, praças reformadas, introdução de novos cinemas, teatros, clubes recreativos, toda uma série de equipamentos modernos que estavam sendo instalados em Fortaleza na época. A modernização não foi apenas um projeto econômico e político, mas também estético e cultural. 


Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado do Cine Majestic, o Cine Polytheama. arquivo Nirez
O centro de Fortaleza foi remodelado como síntese de diversos processos convergentes e antagônicos. Só tem sentido em pensar nas reformas materiais das ruas, praças, avenidas, modernização do sistema de transporte, se comparado com a ausência dessas infraestruturas nos bairros mais afastados, nas favelas e nos subúrbios. O que houve no centro da capital foi uma dialética da modernização, uma relação tensa entre o todo e as partes, entre os anseios da população e o projeto de Raimundo Girão, entre a remodelação de algumas ruas e o total abandono de outras, entre uma Fortaleza que se queria moderna ao preço de expurgar costumes e valores rurais.

Veja AQUI a parte I

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

domingo, 19 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes


Fortaleza nos anos 30. Acervo de Carlos Augusto Rocha

Praça do Cristo Redentor com a rua Rufino de Alencar
ao fundo. Foto dos anos 20. 
O Sr. Governador da cidade deveria lançar as suas vistas para a Rua Rufino de Alencar, mais conhecida por Ladeira da Prainha. Por ali ainda não se passou o fio de pedra. Nem sequer o chefe da edilidade teve a boa vontade de mandar acertar o calçamento pontiagudo daquela via pública. Parece que o mesmo tem contrato com alguma fábrica de calçados. Os pisos dos passeios têm aspectos de uma escada. Uma verdadeira “montanha russa”....Cheia de altos e baixos. Os transeuntes vencem, de ida e volta aquele trajeto com maior sacrifício. Ora, a Rua Rufino fica situada no centro da cidade, ao lado do palácio Arquiepiscopal. Não se compreende, portanto, o abandono em que o tem deixado o Mairé da cidade. Além da falta de estética, logo no começo da Rua, no bifurcamento da Praça da Sé com a Rua São José, levanta-se um grande areal. Se o Sr. Prefeito tem olhos para ver a Praça do Ferreira, parece se descuidar do resto da nossa capital. (Jornal A Rua, 27/10/1933 p. 03).

Rua Major Facundo, 1930. Arquivo Nirez
Na década de 30 (se bem que hoje não é tão diferente assim....), esse “descuido”, ou negligência com os demais logradouros da cidade não era por acaso. A remodelação da capital, ao contrário do que pensavam alguns jornais citadinos, não se devia à falta de planejamento urbano, mas justamente o oposto. Existia um planejamento que beneficiava uma parte da cidade, tendo em vista principalmente o desenvolvimento do comércio e dos chamados bairros “aristocráticos”. A urbanização do Centro expressava interesses de dirigentes políticos, e de setores da classe capitalista. Não se tratava de um processo caótico e desordenado, mas de uma lógica que tinha como prioridade atender a demanda do Capital, seja ele ligado ao comércio, construção civil, transporte, importação e exportação. Não podemos entender o processo de urbanização de Fortaleza, se não considerarmos o papel que exerceu a necessidade de acumulação de capital, refletindo até na prioridade de reformar, equipar e sanear alguns bairros, em detrimento do abandono de outros.

Imposto sobre os meios fios. Jornal A Razão 11 de junho de 1929
A urbanização de Fortaleza foi resultado de um campo de disputas, de uma luta entre os diversos setores sociais. No caso do governo, estava claro que se tratava de um projeto, pois na época foi criado até um imposto sobre os meios fios, e quem não pagasse no prazo, acarretaria multa. Portanto, o governo crivava fontes de rendas voltadas, exclusivamente, para a construção de ruas. Mas as obras nem sempre correspondiam às expectativas, e às vezes eram motivos de chacotas na imprensa.

Rua Guilherme Rocha, final da década de 30.

Jornal A Razão de
25 de Fev de 1938
Por toda a parte observa-se uma falha no trabalho. Ora, é um bueiro, ora é um arremate mal feito, deixando, as vistas do público, o aspecto do desmantelo prefeitural. O paralelepípedo que estão sentando é tão áspero que tem a aparência do antigo calçamento. Corre até uma pilheria a respeito. Um paraense ironizando o trabalho, disse que aquilo não era paralelepípedo, mas cearenselepípedo. Ontem, ao passarmos pela Rua Dr. Pedro Borges, verificamos que o concreto, que se está fazendo, naquele trecho, nas mediações da Padaria Italiana, é trabalho de tapiação, pois que o concreto é sentado sobre uma camada de areia. Pelo menos, é o que se nota nas extremidades. De modo que a espessura da massa é diminuta, não correspondendo ao que ficou estipulado da firma empreiteira com nossa edilidade. (IDEM, 10/11/1933 p. 01).

À medida que a remodelação da cidade ocorria, as críticas na imprensa acompanhavam nas mesmas dimensões. Todavia, também existiam elogios sobre o aspecto estético da cidade, no sentido de uma urbe moderna, bela, nos parâmetros da “civilização europeia”. Os adjetivos sempre salientavam os equipamentos modernos, a arquitetura dos prédios, o desenvolvimento do comércio, a suntuosidade das sedes administrativas, os recursos de transporte e iluminação, todos apresentados como indispensável e essencial de um estereótipo de cidade moderna. Não obstante, mesmo os periódicos que teciam críticas “cauterizantes” à administração de Raimundo Girão, faziam reverência a Fortaleza como símbolo da modernidade.

Jornal A Razão de 10 de Nov de 1937
Jornal A Razão

É empolgante. Possui prédios colossais como o “Hospital de Santo Antônio dos Pobres”. O cinema como não há igual no sul do Estado; o prédio dos Correios e Telégraphos; o luxuoso Palacete Benevides; sedes da Associação Comercial e da União Artística; a igreja matriz; estação da R.V.C.; Usina C. I. D. A. O; Villa Margarida, Prefeitura, e outros. Duas lindas avenidas. Iluminação elétrica de primeira ordem. (O NORDESTE, 17/03/1934 p. 06).

Jornal A Razão de 10 de Março de 1938
Jornal A Razão
Trata-se de mais um dos paradoxos da modernidade. A elite que pertence ao local não deseja representá-lo como arcaico, prosaico, ou obsoleto. A modernidade adquire tanto um sentido denotativo, de expressão material das ruas e prédios da cidade, do novo suplantando o velho, como uma acepção conotativa, onde a população sintetiza valores “eurocêntricos”, desejando adquirir costumes e culturas de outro padrão societal. O moderno era almejado como um horizonte a ser seguido, ao qual toda a população citadina deveria se adaptar sem nenhuma denegação. Portanto, além de uma pavimentação nova e esteticamente bonita, a capital precisaria ter um sistema de transporte urbano novo e eficiente. A “mobilidade urbana”, para usarmos uma expressão hodierna, foi um dos problemas da modernização de Fortaleza, protagonizando lutas titânicas entre a prefeitura e a Light¹, empresa que exercia o monopólio do transporte na época. Uma dessas lutas ocorreu devido à reforma da Praça do Ferreira, e a prefeitura, no caso, criou um decreto para retirar os trilhos da Ligth, pois estaria atrapalhando a tal reforma e, segundo o prefeito, também estava causando congestionamento no local.

Rua Major Facundo no final da década de 30.

Jornal A Razão de 1931
Isto é o cúmulo. E falta de senso político. O chefe do executivo municipal deve convir que os trilhos da Light não podem ser removidos de um momento para o outro, e ao sabor de um desejo pessoal, da Praça do Ferreira para outro qualquer ponto da cidade. Quanto a rescisão do contrato, é pilheria que não vale a pena nem falar. Nós não temos alcance para capital de tão arrojada empresa. Salvo se desejamos voltar aos antigos bondes de burro.... (A RUA, 29/08/1933 p. 03).

O jornal A Rua, como o veículo que fazia oposição aberta ao prefeito sai em defesa da empresa, alegando arbitrariedade por parte de Raimundo Girão, que tinha ameaçado romper o contrato com a Light, caso ela não retirasse os trilhos da Praça do Ferreira. Porém, a problemática era muito mais complexa, tratava-se, além da questão da referida praça, uma discussão sobre o monopólio dos transportes urbanos. Era uma estrutura arcaica, para um capitalismo que “necessitava de concorrência”. Sem falar que a cidade estava se expandindo, a população aumentando, os subúrbios crescendo, e alargando a distância dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. O transporte não poderia ficar fora do projeto de modernização do Estado. Neste sentido, a intervenção do Estado no sistema de transporte se tornara inevitável. O que poderia variar seriam os aspectos dessa intervenção.

A última nota da prefeitura proibindo que viajem mais de 4 passageiros nos bondes da Light, não traz nenhum benefício a população. Ao contrário, acarreta prejuízos. As classes pobres não se utilizam dos ônibus, já pelo preço, que é mais caro, como também porque eles reclamam um traje mais descente. Resulta daí que o número de veículos, em determinadas horas do dia, é insuficiente para lotar os passageiros, e estes ficam naturalmente prejudicados com a nova invenção da prefeitura. Se tal providência é posta em prática com o objetivo de ferir a companhia inglesa, vá lá, nada temos a ver com isso. Acreditamos, porém, que não há de ser com esses processos que a municipalidade consiga que a Light retire os seus trilhos da Praça do Ferreira. (IDEM, 31/10/1933 p 01).

Existiam na época dois tipos de transporte que atendiam a maioria da população, os bondes e os auto-ônibus. Os bondes representavam o passado, o velho, com suas instalações antigas, serviço precário, com excessivas reclamações dos habitantes da urbe. Já os auto-ônibus, surgiram como o moderno, mais novo, mais flexível, visto que não necessitava de trilhos fixos para se locomover. Mais rapidez no transporte do trabalhador para o seu serviço, refletindo as necessidades de uma cidade que crescia e se desenvolvia.
A contenda com a Light figurava, além da questão do monopólio dos bondes, a necessidade de substituir um transporte obsoleto por um mais moderno. Por isso, acreditamos que Raimundo Girão restringiu os números de passageiros dos bondes, com o seu intuito de diminuir a quantidade de lucro da empresa, e incentivar a propagação do auto-ônibus, uma vez que a Ligth detinha o monopólio dos bondes, mas não dos auto-ônibus. Raimundo Girão também estava consciente da difícil fase que passava a empresa inglesa, pois a maioria dos países ainda estava, de maneira lenta, se recuperando da crise de 1929, e a Light não era “imune” a essa situação.

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul
Ônibus Ford - V8, ano 1936, carroceria de madeira,
fabricado em Fortaleza.
Pensará a municipalidade que Fortaleza é um ótimo campo de exploração para os serviços de transporte a cargo da empresa inglesa? Jornais de Londres anunciam, conforme estamos informados, exatamente o contrário. Dizem que as ações (debêntures) da Light, cujo valor nominal é de 100, estão sendo cotadas na bolsa da capital inglesa ao preço de 24,5. A notícia, a ter o fundamento que á mesma atribuímos, demonstra eloquentemente que a companhia estrangeira não está disposta a agravar uma situação já precária. Se a prefeitura quer tirar os trilhos da Praça do Ferreira sem ônus para empresa, deve fazê-lo. Sobrecarregando a companhia de maiores despesas é que não vai, salvo medidas vexatórias que de certo não hão de ser lá muito aconselháveis....(IBIDEM, 07/11/1933 p 01).

Fortaleza em 1930
Os auto-ônibus na Guilherme Rocha
Diante do texto do jornal, é quase certo que o prefeito sabia exatamente como andava a companhia, o que justificava ainda mais as suas medidas antilucrativas para com a empresa. Além do mais, o próprio jornal já modificou o seu discurso, edulcorando um pouco a linguagem, pois, “se a prefeitura que tirar os trilhos da Praça do Ferreira deve fazê-lo”, mas sem acarretar um “ônus” para empresa. Porém, era provavelmente esse ônus o alvo de Raimundo Girão. A Light passou muito tempo sem investir em equipamentos novos e renovação da frota, sem falar que “trilhos” não combinavam com o projeto urbanístico do governo. A relação de tensão da prefeitura com a companhia era bem mais complexa do que se supunham os periódicos da época, pois representavam dois projetos antagônicos, em várias dimensões: monopólio/concorrência; bondes/auto-ônibus; trilhos/pavimentação em concreto; e todas essas contradições tinham como pano de fundo o projeto de modernização do Estado. O que convergisse para o desenvolvimento do projeto seria mantido, ao mesmo tempo em que, os obstáculos seriam “extirpados” do meio do caminho da “modernidade”.

Capital cearense na década de 30. Arquivo Nirez
¹ “Concessionária do serviço de luz, força e viação elétrica no município de Fortaleza, a The Ceará Tramway, Light and Power C, Ltda, tem seu escritório na Rua Barão do Rio Branco nº 844. Tem como gerente o Cel. Francis Reginald Hull, e sub-gerente o Sr. João Batista de Paula. A extensão atual de sua linha é de 20 kms, tendo 38 bondes no tráfego, e 11 auto-ônibus. O número de passageiros transportados, nos bondes, no último ano 16.800.000, em ônibus 2. 160.000. Tem 7.200 consumidores de luz, e 480 de força”. Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 257


Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

sábado, 9 de setembro de 2017

Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte III)


3º Round


Assentamento dos trilhos dos bondes elétrico na rua Guilherme Rocha em 1913. Acervo Ary Bezerra Leite

Em 1927, Fortaleza adquiria um sistema de avenidas que faziam importantes ligações na cidade como pontos que ligavam o centro da cidade, o Palácio do Governo e a Assembleia Legislativa. Para melhorar a estrutura urbana e principalmente na parte estética, o prefeito de Fortaleza Álvaro Weyne (1928-1930) exigiu a mudança de antigos combustores das praças por lâmpadas da marca Littleton, que era utilizada nas melhores cidades do mundo.

No entanto, ainda na década de 20, as ações das autoridades públicas eram modestas.
Pautavam-se em pequenas reformas, especialmente na parte central da cidade. 

Nogueira¹ relata que uma atitude exercida pela municipalidade foi retirar a árvore denominada Oitizeiro do Rosário da via urbana de Fortaleza e os relatos de vários memorialistas descontentes com essa atuação:
Todavia justificativa presumida para o abatimento do Oitizeiro do Rosário 

repousava na intensificação do tráfego urbano, o que era confirmado pelo crescente número de automóveis que transitavam pelas ruas da cidade. A árvore erguia-se em uma via central – a um passo da Praça do Ferreira, ponto irradiante de veículos, onde

automóveis de aluguel estacionavam e passavam linhas de bondes.

O texto nos informa que algumas atitudes estavam sendo praticadas pelo poder municipal, entretanto não podemos considerar uma grande mudança, ou amplas reformas para o perfil urbano. O investimento no final do ano de 1929 para a circulação de veículos limitava-se, nesse caso, a uma simples retirada de uma árvore, fato muito insignificante para uma cidade que visava crescer. E no mesmo ano de 1929, Fortaleza era portadora de um calçamento totalmente impróprio para a circulação de veículos.

Porém mesmo com algumas mudanças ocorrendo na década de 1920, não podemos ainda considerar este o período de profundas transformações na capital. Como nos apresenta
Ary Bezerra Leite: “Na década de 1920, há relativo progresso, mas é nos anos de 30 que ocorre a expansão territorial, rompendo o zoneamento primitivo para buscar novas áreas de crescimento.”

Ratificamos esse pensamento com as afirmações do pesquisador Liberal de Castro. Para este autor, Fortaleza, na virada do século XX, podia ser considerada um aglomerado urbano ainda modesto. Em 1920, o censo da cidade apontava esta com uma população de 78.000 habitantes. A ponto de Liberal de Castro se referir à cidade chamando esta de “cidadezinha”, o que reflete sua opinião de que Fortaleza não atingia um índice de desenvolvimento urbano ampliado ainda na década de 1920.

Vemos um Bonde de tração animal na Prainha (Praia de Iracema-Rua Almirante Jaceguaí) em fevereiro de 1913.  À direita podemos observar a torre da casa de José Pio Moraes de Castro, que dali observava os navios do Lloyde Brasileiro, para o qual trabalhava. Depois foi vendida para o engenheiro da estrada de ferro Mister Hull, que fez da bela vista um observatório astronômico. A casa ficava no terreno onde hoje temos o Centro Dragão do Mar. (Foto Brun) - Acervo Lucas


Foto ao lado: Filhas e sobrinhas do empresário Alfredo Salgado numa tour pela cidade. Passeio de bonde de tração animal. Foto de 1913 de Jacob Nogueira. Acervo Lucas 


A estruturação do monopólio

Se Fortaleza caminhava na década de 1920 de maneira “devagar e arrumadamente”, as transformações no transporte coletivo no final desta década não caminhavam nesse mesmo ritmo, de maneira amistosa ou pacífica. Esse mercado de transporte foi alvo de disputas e conflitos, especialmente entre a empresa britânica, detentora do serviço de iluminação elétrica e transporte por bondes elétricos, The Ceará Tramway and Light Power, com os primeiros empresários de ônibus que também tencionavam adquirir um pedaço dessa fatia lucrativa, no final da década de 20.

A grande questão era que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza sempre foi pensado e realizado através de uma prática de concessões e privilégios. Ou seja, a empresa atuou por vários anos realizando suas atividades com a prerrogativa de monopólio do serviço de transporte coletivo por bondes elétricos, que, na prática, significava um controle sobre todo o sistema, haja vista que até a década de 20, ainda não havia ônibus fazendo esse tipo de trabalho regularmente. Em outras palavras, a empresa britânica gozava de privilégios do tráfego de carros elétricos na área urbana de Fortaleza, privilégio este que chegava a 75 anos.

O monopólio que a Light adquiriu viera de práticas exercidas pela municipalidade desde o século XIX, que repassava a particulares concessões de longos anos para atuar sobre alguns serviços. No trabalho com bondes elétricos, a responsabilidade ficou com essa empresa. Isso significa que o monopólio adquirido pela empresa foi um conjunto de concessões que esta conseguiu contrair com a compra de outras empresas que faziam esse serviço e eram beneficiadas com essa prática. Devido a esse longo período de concessão e privilégios, a instituição não via com bons olhos a chegada de novos veículos como os ônibus, que certamente iriam fazer concorrência e disputar passageiros, transformando-se, assim, em opositores perigosos para os lucros da companhia britânica no setor de transporte coletivo.

As longas concessões cedidas pelas autoridades públicas, que se transformaram em um monopólio do setor com o advento da Light, foram as grandes dificuldades que os novos empresários de ônibus tiveram que enfrentar e, por outro lado, este tipo de situação foi a principal luta pela qual a empresa defendeu para continuar. No cenário que perpassou o final do século XIX para o século XX, três empresas locais adquiriram concessões em troca da instalação de trilhos para a transição de bondes com força animal em algumas ruas de Fortaleza. Maior destaque se dá à companhia Ferro Carril do Ceará, que atuou desde 1880 até 1912, quando foi adquirida pela empresa Ceará Light, ficando esta última responsável pela manutenção do transporte nas linhas adquiridas pela antiga “Ferro Carril do Ceará”.

Passe de bonde em 1945. Acervo de Clóvis Acário Maciel

Nessa perspectiva, outras duas empresas, na década de 1890, adquiriram também concessões para conseguirem transitar em Fortaleza. A segunda empresa a ser formada foi a Companhia Ferro Carril de Porangaba², em 1894, transitando no percurso Benfica-Damas-Parangaba e teve sua atuação exercida até o ano de 1918. Em 1896, surgiu a última empresa de bondes com tração animal denominada Companhia Ferro Carril do Outeiro³, que teve sua atuação até o ano de 1912, quando foi comprada pela empresa inglesa de bondes elétricos, uma vez que já pertencia à “Companhia Ferro Carril do Ceará” desde 1898. O itinerário da terceira empresa começava na Praça do Ferreira, Praças General Tibúrcio (conhecida como Praça dos Leões), José de Alencar, atravessava a Praça Caio Prado (Praça da Sé), seguia pela Praça Figueira Mello, rua Gustavo Sampaio, até a Praça Benjamin Constant (Praça da Bandeira), que significava um percurso de 1.550 metros.

A partir desses fatores, podemos entender que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza foi estruturado da seguinte maneira: a cidade era fatiada para alguns empresários que investiam no setor de bondes, sendo repassado a esses capitalistas as concessões. Cada empresa tinha sua área de atuação, cuja circulação nas linhas era de privilégio da portadora da concessão.

Não, nesse sentido, havia espaço para uma concorrência entre empresas em uma mesma linha, já que cada uma era detentora de uma linha em que somente a concessionária podia atuar. Em uma cidade em que as empresas locais Ferro Carril do Ceará, Ferro Carril do Outeiro e Ferro Carril de Porangaba tinham essas concessões, como poderia a Light entrar nesse mercado? A empresa inglesa não podia disputar através da concorrência, restando uma alternativa para os ingleses, que era comprar a propriedade das empresas de bondes locais para atuar, e foi exatamente isso que fizeram. Com a compra das empresas Ferro Carril do Ceará e Ferro Carril do Outeiro, e a falência da Ferro Carril de Porangaba, em 1918, a Light passava a ser a única empresa detentora de concessões nas linhas urbanas, o que outorgava a esta um monopólio de transporte coletivo de bondes.

A nossa análise para entender a opção tomada pelas autoridades públicas em ceder as concessões com privilégios de tempo e sem concorrência para alguns grupos, é que o governo municipal não estava interessado em investir na construção de calçamentos e implantação de trilhos de bondes, deixando isso para a iniciativa privada, que por outro lado era recompensada com o uso exclusivo desses trilhos por um determinado tempo.

O funcionamento dos serviços urbanos também envolvia a iniciativa privada como agente ou beneficiária de algumas atividades básicas, sempre a usufruir de um protecionismo concedido pelos agentes governamentais em detrimento dos interesses coletivos. 


Para a construção desse serviço, as autoridades públicas se valeram de todo um arcabouço legislativo para colocar em atividade o serviço de transporte coletivo. Nesse sentido, a atuação das autoridades públicas se reportaria à fiscalização e à distribuição de concessão, enquanto a iniciativa privada realizaria as obras necessárias de infraestrutura.

Fortaleza compartilhou, no começo do século XX, situações parecidas com o que estava ocorrendo em parte nas grandes cidades do Brasil. O crescimento urbano demandou
investimentos na distribuição de água, iluminação e energia. No Brasil, inicialmente, a
prestação desses serviços ficou a cargo de pequenas empresas de âmbito municipal. Todavia,
o tempo de atuação dessas empresas não teve uma longa escala. Devido ao crescimento de
empresas internacionais, principalmente no que se refere à produção de materiais elétricos e distribuição de eletricidade, algumas empresas multinacionais assumiram o controle do mercado latino-americano. Na capital do Ceará esse processo teve origem em 1870, data em que foi sancionada a Lei nº 1382, concedendo um privilégio de 50 anos no contrato para Estevão José de AlmeidaFirmino Cândido de Figueiredo, Antonio Pinheiro da Palma e José Joaquim de Sousa Assunção, que ficariam encarregados de montarem os alicerces do serviço de transporte pautado no bonde com tração animal. Logo, demais leis foram sendo efetivadas e resultariam, em pouco tempo, em uma configuração concreta dos estatutos da Companhia Ferro Carril do Ceará, como a Lei Provincial nº 144 de 11 de outubro de 1871, que repassou a Estevão José de Almeida os direitos para colocação de trilhos de ferro nas ruas da cidade, com um ramal paraMecejana.

A transferência desses direito foi efetivada aos negociantes Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia. A Lei 1382, de dezembro de 1870, concedeu esse privilégio a Estevão José de Almeida (Lei Provincial nº 1631 de 05 de setembro de 1874) que se efetuou no contrato de 28 de agosto de 1875. O resultado do conjunto dessas leis levaria à aprovação dos primeiros estatutos da “Companhia Ferro Carril do Ceará” com o Decreto Imperial nº 5110, de 09 de outubro de 1872, e que seria ratificado com o Decreto Imperial, assinado pela princesa Isabel com o nº 6620, de 04 de julho de 1877:

Art. 1º Fica organizada uma sociedade anonyma que se denominará Companhia ferro-carril do Ceará, cujo fim é construir linhas de carris de ferro nas ruas da cidade de Fortaleza, capital a Província do Ceará, e mais uma linha que ligue a dita capital à povoação de Mecejana.
Art. 2º À Companhia ficam pertencendo todos os direitos e privilégios, que aos contractadores, Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia, foram
concedidos do dito contracto, de conformidade com a Lei provincial do Ceará nº1631 de 5 de Setembro de 1874 e outros que de futura venha a adquirir.
Art3º Pela cessão do privilégio com todas as suas vantagens, incorporação da companhia, etc. receberão os cessionários como indenização uma comissão de 10% sobre o capital, que vier a ter a Companhia, destinado à execução de todas as suas obras até Mecejana, em ações consideradas inteiramente pagas.
Art. 4º A companhia terá sua sede e direção geral na cidade da Fortaleza.

Art. 5º A duração da companhia será de 50 annos contados da data da approvação destes estatutos, prazo este prorrogável mediante deliberação da assembléia geral de accionistas para isso convocada e autorização do Governo Imperial.


Decreto Imperial nº 6620 de 04 de julho de 1877

A atitude do Presidente da Província era bem taxativa, pois além de ser concedido um bom tempo de privilégio de trabalho, a empresa de bondes ainda era premiada com isenção de
impostos aduaneiros e taxas para materiais importados que fossem necessários para o
assentamento da linha de bonde nesta capital. Mesmo querendo executar um serviço de
interesse público, que era a instalação de trilhos urbanos para a circulação dos bondes, o
grande privilegiado desse serviço acabava sendo a proprietária das concessões, Ferro Carril,
do sistema de transporte coletivo.


Rua Formosa, Barão do Rio Branco, em 1908. Bonde da Companhia Ferro Carril. 
Acervo Cepimar

Esta imagem refere-se ao bonde de tração elétrica em Fortaleza, circulando em uma das principais ruas da cidade nesse período. No ano em questão, a empresa de bonde Ferro Carril do Ceará tinha o maior número de linhas na cidade de Fortaleza. Com a configuração do estatuto da Companhia Ferro Carril do Ceará, percebemos como a concessão de privilégios foi sendo repassada juntamente com a construção do sistema de transporte coletivo. Essa primeira empresa teve privilégios que a vincularam a uma concessão de tempo de meio século para realizar suas atividades de uma maneira isenta de concorrência dentro de suas linhas, cujo material seria repassado à municipalidade. Não bastasse essa facilidade, o grupo que pretendeu investir no transporte coletivo também foi privilegiado por outras  prerrogativas das autoridades públicas. Isso foi confirmado quando o Doutor José Júlio de Albuquerque Barros, Presidente da Província do Ceará “Concede isenção de direitos para a Companhia Ferro Carril do Ceará” (
Lei Provincial nº1852 de 02 de outubro de 1879).


Continua...


¹Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira - Dissertação (mestrado) em História Social. Universidade Federal do Ceará, 2006.p.19. Tempo, progresso, memória : um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta. 

²A segunda Companhia de Bonde a se fundir foi a da Companhia Ferro-Carril de Porangaba, de propriedade de Gondim e filhos, dirigida pelo Cel. Arlindo Gondim, fundada em 10 de outubro de 1894. Vinha de Parangaba onde era a sua Estação e parava no fim da linha de Bondes do Benfica, defronte do Café do Eugênio, junto ao muro da Chácara das Amarais, onde do lado de fora existia um grande tanque com água para os animais dos bondes e dos comboieiros. A linha servia os bairros das Damas e de Parangaba. In: BEZERRA DE MENEZES, Antonio. Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar, 1992. p.194.

³A terceira Companhia foi a Ferro-Carril do Outeiro, fundada em 1896; o assentamento dos trilhos se iniciou em 13 de maio e foi inaugurada em 12 de outubro do mesmo ano de 1896. Era propriedade de membros da família Acioly. Sua Estação se localizava um pouco além da atual Rua Gonçalves Ledo, antiga Rua do Guariju e em seu local foi construído o prédio residencial do Dr. Aderbal Freire. Eram servidos dois bairros, o do Outeiro e da Aldeota. O bonde do Outeiro partia da Praça do Ferreira às horas certas e atingia até a frente do prédio que foi construído na seca de 1877 e se destinava a um asilo de mendicidade; em 1902 foi alugado para um Colégio de moças sob a direção da grande educadora e professora Ana Bilhar, que, mediante contrato com Governador Pedro Borges, o alugou com o prazo de nove anos, mediante o aluguel mensal de 150$000. "Suas alunas só trajavam verde e por isso eram apelidadas de periquitinhos verdes; hoje o prédio é ocupado pelo Colégio Militar. (Nota de Fernando Lima). IN: BEZERRA DE MENEZES, Antônio. op. cit., p.194.

Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

Veja também:
Parte I
Parte II
Parte IV

Fontes: CASTRO. José Liberal de. Arquitetura eclética no Ceará. In: Annateresa Fabris (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1988. p.220 – 230./ LEITE, Ary Bezerra. História da Energia no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996. P.51./CASTRO, José Liberal de. Fatores de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade de Fortaleza, 1977. p.35. /Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918, confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1918. p.197. / Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918,
confeccionado por João da Camara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1899. p.107./
JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000p.111. / SAES, Alexandre Macchione. Conflitos do Capital: Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927). Tese(doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, 2008. p.51./ NOBRE, Geraldo. Ceará: energia e progresso. Secretaria de Cultura e Desporto. Imprensa Oficial do Ceará.
Fortaleza, 1981. p. 103./ 

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte II)


2º Round


Postal colorizado dos anos 20. Praça do Ferreira sentido Praça José de Alencar pela rua Guilherme Rocha.

Fortaleza e o contexto capitalista 

Quando se fala em serviço para a coletividade, a cidade de Fortaleza teve como característica dotar sua população com serviços urbanos, que geralmente ficavam na mão da iniciativa privada, exercendo esses serviços mediante o aporte de concessões privilegiadas. Essa característica chama a atenção para refletirmos por que motivo quem assumiu determinados atributos urbanos, como distribuição de água, energia, transporte, foram empresas privadas e, principalmente, por que a necessidade dessas concessões. O tema do monopólio foi debatido na Assembleia Estadual e nessas discussões encontramos possíveis respostas para a implantação da forma de distribuição de um serviço público mediante interesses particulares. Em um debate sobre a diversificação do serviço de transporte, nos annaes(sic) da Assembleia Legislativa de 1926, podemos verificar uma grande defesa desse tipo de serviço: 

Considerando que, em taes casos, são admittidas as concessões de monopólios, em proveito da communhão, porque como ensina Araujo Castro, “serviços ha que, dependendo de avultado capital difficilmente seriam realizados sem a concessão de monopólio durante certo tempo. Além disso, acontece que, ás vezes, os interesses do publico são melhor attendidos colocando-se a cargo de um só indivíduo ou empreza a realização de serviços, taes como os de abastecimento de águas, tracção e illuminação electrica, esgostos, etc. Sobre esses monopólios não incide a proibição constitucional – Manual da Constituição Brasileira, pg.251” 


(Citações de acordo com a ortografia da época./Annaes da 

Assembleia Legislativa do Ceará. 75 ª Sessão em 01 de outubro de 1926. p.309.)


A Fortaleza dos anos 20 num postal restaurado/digitalizado da rua Floriano Peixoto, com o antigo Mercado de Ferro. Trabalho de Arriaga Matinez Juan

Nesse sentido, o que os deputados estaduais acreditavam, e a própria Constituição da época ratificava, era que determinados serviços demandavam grandes somas de recursos, especialmente para sua instalação, e só seria relevante para o capitalista investir se ele tivesse total controle desse serviço para restituir o investimento aplicado. Perante esse binômio estabelecido entre investimento privado e monopólio, quem soube explorar esse sistema foram empresários ingleses que desenvolveram, em Fortaleza, importantes atividades como o abastecimento de água com a Ceará Water Work Co. Ltd, iluminação pública e particular com a Ceará Gás Co. Ltd e o serviço de fornecimento de transporte coletivo com a empresa inglesa The Ceará Tramway and Light Power.

Por volta dos anos de 1920, mesmo que de maneira ainda discreta, a cidade de Fortaleza vai passando por algumas modificações: 

O cotidiano da capital tornou-se atribulado por conta também da intensificação dos fluxos urbanos desencadeada pelo adensamento populacional (nos anos 20 o número de habitantes atinge a casa dos 100 mil), e pela proliferação de automóveis, bondes, caminhões e estabelecimentos comerciais no perímetro urbano. 

É nesse sentido que Eduardo Campos nos apresenta o Ceará dos anos vinte, parafraseando Raimundo Girão como um momento de significância abrangente para o desenvolvimento econômico, social e político do Ceará. De fato, algumas mudanças ocorreram na década de 1920, mas no geral, especialmente no formato urbano, as mudanças não foram expressivas. Se formos observar o desenvolvimento urbano da capital desde o século XIX até o século XX, percebemos algumas abrangências na questão urbana, todavia a cidade ainda apresentava sérios problemas de infraestrutura. Nas palavras do viajante britânico Herry Kosterm em 1810, Fortaleza foi edificada por um terreno arenoso, havendo quatro ruas que partiam da praça. Tinha como pontos negativos seu comércio e as ruas sem calçamento. 



Este último problema parece ser uma constante na capital do Ceará que na chegada da década de 1920 ainda sofria com as ruas sem calçamento em pontos importantes para a circulação das pessoas. Podemos perceber um gradual crescimento da cidade perante as construções de obras que estavam sendo arquitetadas mediante as necessidades da capital. Essas mudanças começam a aparecer quando pesquisamos na planta da cidade de Fortaleza do ano de 1875, de Adolfo Herbster. Na planta é possível perceber novas obras como o “Cemitério Novo” de SãoJoão Batista, A “Estação Ferroviária”, o gasômetro, a designação do Passeio Público e o reajuste da malha urbana.
Liberal de Castro também nos dá uma visão de algumas mudanças urbanísticas encontradas em Fortaleza mediante as construções que estavam ocorrendo na cidade nas décadas de 1900-1910. Em 1905, de acordo com os padrões franceses de um ecletismo arquitetônico foi construído o prédio da Fênix Caixeral. Já em 1908, a Associação Comercial, na rua Formosa – Barão do Rio Branco – inaugurava sua sede no estilo Greco-romano. Nesse mesmo ano, daria início a mais bela construção da arquitetura cearense: o Teatro José de Alencar, cuja inauguração ocorreu em 1910. A primazia de pontes de concreto em Fortaleza se deu em 1918, no governo de João Tomé.

Na década de 20, os poderes públicos tiveram uma atuação urbanística no sentido de ampliar e reformar as ruas e avenidas, criando pavimentações, que visavam qualificar o serviço de trânsito e dinamizá-lo, devido, principalmente, a uma maior circulação de mercadorias e de pessoas. Nesse período, os legisladores começaram a pensar os locais de movimentação de uma maneira mais dinâmica, racionalizada, que se adaptasse às necessidades locais advindas de uma maior dinâmica no deslocamento. Exemplo disso foi a reforma da Praça do Ferreira, cuja primeira obra pautou-se no aformoseamento, mas em 1925 suas diretrizes se reverberaram em conceitos racionalizadores para facilitar a circulação de pedestres. 


A Praça do Ferreira nos anos 20. Arquivo Nirez

Essa racionalização do espaço urbano, especialmente na parte central da cidade, e a atuação da administração municipal em criar melhorias para o fluxo de veículos foram acontecimentos marcantes desse período, já que a cidade passava a conviver com uma grande circulação de bondes, caminhões, carros e passava a acolher a chegada dos primeiros ônibus: 

Na década de 20, embora a preocupação com o embelezamento urbano continuasse marcante, a administração municipal teve que lidar com novos problemas demandados pelo crescimento populacional e pela multiplicação dos meios de transporte que se verificaram no período. Tais questões requereram estudos e medidas que levassem em conta, além do fator estético, uma maior concentração espacial, o que compreendia recorrentes intervenções no sistema viário da cidade, objetivando torná-lo mais funcional.



Leia a primeira parte AQUI


Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

Fontes: SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913 – 1947. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós- Graduação em História Social, 2010. / JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000 / MENEZES, Patrícia. Fortaleza de ônibus: quebra-quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960. Dissertação (mestrado) *Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. / PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: SOUZA, Simone de.(Org.) Uma nova história do Ceará Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.185.
*KOSTER, Henry; CASCUDO, Luis da Câmara. Viagens ao nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco/ Massangana, 2002. / Fortaleza Prefeitura Municipal de; CASTRO, Jose Liberal de. Fortaleza: a administração Lúcio Alcântara (marco 1979/maio 1982) . Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982. P.69 / PONTE, Sebastião Rogério. A Cidade Remodelada. In: SOUZA, Simone de. et.all. Fortaleza a gestão da

Cidade: uma história política e administrativa. Fortaleza: Fundação Cultural de Fortaleza, 1995, p.44 e 45.


NOTÍCIAS DA FORTALEZA ANTIGA: