Com o mesmo panorama dos demais locais da nossa Cidade, personagens na época compunham o cenário da urbe com fatos ou feitos, perpassando algumas décadas por cenas dantescas. Algumas vezes, até modificando hábitos, pois havia casos em que apelidos se transformavam em nomes de família. Na ficção, por exemplo, Machado de Assis, com laivos de humor e ironia, transformou em sobrenome o apelido "Cubas" e ainda lhe deu uma origem nobre, nas Memórias Póstumas. Inúmeras são as famílias que ainda hoje são descendentes ou originárias de alcunhas. Mas disso não fazem menosprezo.
Mané Morcego
Manuel Morcego era um homem rústico, nascido nessa Cidade de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Era tido por todos como um fiel amigo, cuja descendência de escravos, trazia toda humildade da senzala por onde se abrigara no peito da mãe, quando esta o amamentara. Era estimado por famílias gradas e sua afeição se expandia como verdadeiro servo, ou amo como era mais reconhecido. Era recebido nas casas e tratado como pessoa da própria família, não sofrendo distinção por quem quer que fosse.
Alguns fatos
Famílias generosas, quando tinham a felicidade de adotar um desses "amos"; conservavam e passavam estima e consideração, fazendo-os assim como um verdadeiro parente de sangue. Muitas vezes o eram verdadeiramente, pois fruto de transgressões que, de modo até rotineiro, ocorriam nas casas que se serviam do regime de escravidão.
Ouvir falar de alguns casos assim. Manuel, operário desde muito jovem, passou a fazer parte de uma família como se membro fosse. Todos tinham por ele a mais alta consideração. Sabia de tudo que se passava no casarão do meu bisavô. Cuidava dos filhos menores, como companheiro, instrutor, amigo, zelador e segurança familiar (guardião). Assim todos o apreciavam, nada lhe era negado ou cobrado. Era um servo honesto e por todos muito estimado.
A labuta
Na adolescência à juventude, resolveu trabalhar na Construção da nossa Catedral da Sé. Tornou-se um audaz servente e chegou a ser pedreiro da Sé. Sua habilidade não chegou a tanto, porque designado para trabalhar na construção da torre da Igreja, certa vez, escorregou de um andaime que falseara com o vento, logo veio a cair das alturas. Tamanha foi à destreza e agilidade, que, ao cair rolando altura a baixo, deu de encontro às estroncas segurando a uma delas, como se dizia, "agarrando-se com unhas e dentes", enfrentando o medo de morrer ao cair daquelas alturas. Salvou-se graças a ajuda dos demais operários que, num átimo, o socorreram rapidamente.
Daí em diante passou a ser conhecido pelo epíteto de "Manuel Morcego", estendendo para acrescentar ao cognome (alcunha) de "Morcego" ao da família. Com a origem o apelido de "Manuel Morcego" estendeu-se à família, passando a ser conhecida como Família do Manuel Morcego. Nas residências onde trabalhava, "Manuel Morcego" era considerado como membro da própria família - pessoa de casa e para tudo era chamado e consultado. Assim quando lembrava o episódio que fora vitima na construção da Catedral da Sé, cuja queda da torre da igreja se salvara por milagre dizia: "quem duma escapa cem anos vive". Só do apelido não escapou até morrer
A rota
Cresceu, viveu, casou na casa do meu bisavô Joaquim Dias da Rocha; era empregado do seu armazém "Firma Dias da Rocha & Cia", local onde se ergueu o Edifício Jangada, na Rua Major Facundo esquina com a Rua Senador Alencar. Manuel Morcego, cujo epíteto verdadeiro era Manuel Ba(pis)tista Assun(pis)ção tinha certa dificuldade de soletrar o próprio nome, era uma pessoa sem instrução, escrevia o nome, porque tinha queda para desenho depois de muito exercitar a grafia.Casou constituindo família, com filhos de bons costumes, conservaram as amizades do pai por toda a existência. Esses tipos de pessoas povoaram com laços de afetos familiares se perpetuando com amor às antigas famílias de nossa Cidade nos tempo que o piano, violino e violoncelo faziam orquestra de pau e corda, sem preocupação de metais, entoando lindos fados, valsas vienenses, Strauss, polcas e mazurcas nas salas de visitas de gradas famílias fortalezenses, portugueses, estrangeiros de outras plagas. Nossa família, a começar por meu bisavô, Joaquim Dias da Rocha, português, antiescravista, nunca houve escravo. Pertencia ao Partido Libertador, formado pelos portugueses aqui residentes
Vulgarmente conhecida por "Tristeza", morava no Curral das Éguas. Era uma pobre coitada que não sabia se vivia. Quase não falava e pedia a todos quando dela achegava quantia de RS 500 (quinhentos réis) para tomar uma "bicada" ou "douradinha". Prestava serviços a "grinfas" do Arraial Moura Brasil, carregando lata d'água na cabeça para fornecer os banhos noturnos ou, senão, matinais.
Ladeira onde nascia a rua General Sampaio formando a bucólica praia Formosa. Hoje, nada existe dessas casas. O avanço do mar a Leste Oeste modificaram por completa esta paisagem. Hoje neste local está o viaduto que dar acesso a Leste Oeste e também ao hotel Marina Park. Foto da década de 40. Arquivo Nirez
O compromisso maior de cada "horizontal" era com o Serviço de Vigilância de Secretaria de Policia e Segurança Pública, Serviço de Ordem Social, por se encarregar de abrir um "Fichário Profissional" cadastrando cada uma - e convocando a vir passar o "visto" na Ficha Cadastral, visado pela autoridade sanitária, policial - Delegado ou Comissário do dia e exame por médico sanitarista para saber o estado de saúde de cada prostituta.
Esta era a delegacia da Rua Franco Rabelo, antro de prostituição que foi absorvido pela Avenida Leste-Oeste. Arquivo Nirez
Havia policiais atentos para esse serviço de vigilância pública, evitando que se alastrasse o "vírus da gonorreia", "esquentamento", "piolho de púbis" ou outro tipo de doença venérea comum na juventude. Mas tudo isso, são coisas que o tempo levou e não há inclusive saudades para esse tipo de recordação, porque a Elixir 914 e o óleo de "Fígado de Bacalhau" deixavam radicalmente curado, bem como injeção de bismuto.
Dois redutos
Por essa razão o Curral e a Cinza era temidos por jovens que chegava à puberdade e eram naturalmente levados a manter relações sexuais. Mesmo assim existiam as escapulidas secretas dos jovens mancebos com as serviçais. E por fim, era o Curral refúgio dos amores libertinos afastados do seio da família, até a purgação do pecado ou nódoa manchando a reputação da honra da família que não admitia tal comportamento.
A força simbólica dos nomes próprios
Para os egípcios da Antiguidade, o nome da pessoa era mais do que um signo de identificação. Tratava-se, em verdade, da dimensão do indivíduo, uma vez que os egípcios acreditavam no poder criador e coercitivo do nome. O Dicionário de Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 640 a 642) afirma que, no nome de alguém, encontram-se todas as características de um símbolo: é ele carregado de significação; escrevendo ou pronunciando o nome de uma pessoa, faz-se com que ela viva ou sobreviva, o que corresponde ao dinamismo do símbolo; o conhecimento do nome proporciona poder sobre a pessoa - aspecto mágico, liame misterioso do símbolo. O conhecimento do nome intervém nos ritos de conciliação, de feitiço, de aniquilação, de possessão. Por isso é que todos prezam por seu nome. E a mais radical das sentenças é afirmar que o nome de alguém já não mais estará entre os vivos.
Zenilo Almada
Matéria publicada no Jornal Diário do Nordeste