Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Mercado da Carne
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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A arquitetura do ferro em Fortaleza (Parte III) - Adaptação técnica e estética



No fim do Império, a criação da Escola Militar do Ceará, trouxe para a cidade oficiais matemáticos e engenheiros.


O século XIX assistiu à elaboração de novos esquemas de implantação da arquitetura urbana, representando um verdadeiro esforço de adaptação às condições de ingresso do país na modernidade. A integração do Brasil no mercado mundial, após a abertura dos portos, possibilitou a importação de equipamentos que contribuíram para a alteração da aparência das construções dos centros maiores do litoral, porém ainda respeitando o primitivismo das técnicas tradicionais.
A chegada tardia do neoclássico no Brasil se justapõe a uma duração prolongada dos caracteres austeros e simplificadores desse estilo na arquitetura, predominando no país até o final do terceiro quartel do século XIX.

É comum, e com razão,fazer uma ligação do neoclassicismo ao processo de europeização arquitetônica do Brasil, mesmo que algumas realizações nacionais dessa corrente formal estivesse presente, por via portuguesa, desde o século XVIII.
No Brasil costuma-se englobar, sob a mesma categoria, todos os edifícios que empregam o vocabulário arquitetônico cuja origem remonta à Antiguidade greco-romana, que se convencionou chamar neoclassicismo. Alguns elementos construtivos como cornijas, pilastras sob platibandas; paredes de tijolo, revestidas e pintadas de cores suaves; janelas e portas, enquadradas em pedra aparelhada e arrematadas em arco pleno, cujas bandeiras dispunham-se rosáceas com vidros coloridos; bem como os corpos de entrada, salientes, compunham-se de escadarias, colunatas e frontões de pedra aparente, formando conjuntos de linhas severas às normas vitruvianas, que eram características da influência da Academia e do estilo neoclássico.


Mercado da Carne, a primeira edificação pré-fabricada em ferro inaugurada na cidade.


Chegaram também os princípios de higiene que iriam modificar o urbanismo.
O saneamento das habitações e das cidades, a insolação e a aeração de todos os cômodos das habitações, foram medidas que alteraram profundamente os costumes.
Em Fortaleza, as obras de melhor acabamento, que só começaram a acontecer depois da metade do século XIX, resultaram uma ocasional sofisticação na vida urbana, atendidas em parte pelo aprimoramento técnico e a contribuição de profissionais mais capacitados para as novas necessidades. De início, foram militares engenheiros; depois engenheiros militares e, finalmente, engenheiros civis. O Ceará deve a esses profissionais, alguns de ascendência estrangeira, ou mesmo estrangeiros, a implantação e o desenvolvimento de sua arquitetura neoclássica, num primeiro momento. No fim do Império, a criação da Escola Militar do Ceará, trouxe para a cidade oficiais matemáticos e engenheiros. Os projetistas do neoclassicismo cearense não mantinham qualquer tipo de ligação com a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Eram em sua maior parte estrangeiros ou seus descendentes diretos, tais como Paulet, Gouveia, Folglare, Berthot, Théberge, Privat, Steffert, Herbster..
Tanto no Ceará, como em várias partes do Brasil, comprovam claramente a pouca ou nenhuma influência da Missão Francesa na implantação do neoclassicismo do país, pelo menos em pontos distantes do Rio de Janeiro, capital do Império.

Antigo mercado central de Fortaleza - Fonte Jucá Neto

No Ceará, mais precisamente em Fortaleza, o português Antônio José da Silva Paulet, Tenente-Coronel de Engenheiros, autor da malha em xadrez do primeiro plano de arruamento da cidade e elaborado segundo um traçado ortogonal de inspiração neoclássica, foi responsável, também, pelos primeiros projetos arquitetônicos desse estilo, implantados na cidade.
O projeto do novo mercado, da ainda vila, figurou como a mais antiga representação neoclássica da cidade, com características desse estilo na portada de acesso em pedra portuguesa. Silva Paulet foi responsável também pelo projeto e construção, iniciada em 1812 e concluída em 1822, da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, na sua última versão, com características do estilo neoclássico.


Antigo mercado central - Aquivo Jaime Correia

10ª Região Militar - Fonte Capelo Filho


Nessa época, a cidade demandava um conjunto de atividades burocráticas, para cujo exercício se impõe a devida correspondência arquitetônica. Além de igrejas na capital e no interior, merecem citação algumas obras dispersas pela Província, como o Teatro da Ribeira de Icó (1860), conforme projeto do médico, historiador e arquiteto amador, o francês Pedro Théberge; e o Teatro São João (1875-1882), em Sobral, projetado por João José da Veiga Braga.


Antiga cadeia pública - Arquivo Nirez


Em Fortaleza, o neoclassicismo oficial também foi representado no edifício da Cadeia Pública, projetada pelo engenheiro militar Manuel Caetano de Gouveia Filho, concluída em 1866; e na Assembléia Provincial do Ceará, cujas obras se iniciaram no ano de 1856 e foram concluídas em 1871, ainda, na época do Brasil-Império, projetada por Adolfo Herbster, descrito por Menezes (1895: 155), como sendo um majestoso edifício com dois pavimentos, frontão e “archivolta de cantaria ornando a porta principal, sobre a qual foi colocado pesado relevo, representando as armas imperiaes, arrancadas em 1890 a escopro para serem substituídas pelo emblema da Republica”
(Grafia da época)


Antiga Assembléia, hoje Museu do Ceará - Arquivo Nirez


O segundo e definitivo edifício da Estação Central, de acordo com o projeto do austríaco Henrique Foglare e inaugurado em 1880, ainda no Reinado de D. Pedro II, também merece destaque. A fachada do bloco principal da nova estação central de Fortaleza “possui colunas sobre pedestal encimado por frontão triangular, e escadaria demarcando o acesso ao interior do edifício”, com fachadas contíguas e janelas com aberturas em arco pleno, arrematadas superiormente por cornijas e platibandas, solução esta que foi adotada para integrar a antiga estação à nova.
No último quartel do século XIX, os edifícios construídos em Fortaleza apresentaram características da linguagem neoclássica, como a simplicidade das formas e a clareza construtiva. Na prática, porém, o neoclassicismo provincial ficou reduzido a simples vestígios simbólicos do estilo, tais como vergas de arco pleno, tímpano preenchido por bandeiras envidraçadas, e platibandas sobrepostas a cornijas de massa, raras vezes, a presença de algum frontão. Todos esses elementos revelam-se em algumas edificações inseridas no contexto urbano de Fortaleza, mais comuns em edifícios públicos.


Edifício da Estação Central do Álbum Vistas do Ceará


No Ceará, como em quase todo o país, a precisão formal neoclássica envolvia soluções pouco dispendiosas, sem grandes investimentos e sem precisar recorrer a trabalhadores altamente especializados. O tratamento enobrecido e distinto das pedras aparelhadas, geralmente lioz, muitas vezes já vinham prontas em partes, de Lisboa, para serem montadas no Brasil.
Era comum, também, substituir os vidros por grades de ferro batido nas bandeiras das portas principais de entrada; desenhos e a data da construção eram frenquentemente inseridos na parte central da peça. Por facilitar o arejamento, era utilizado também em lojas e armazéns.

Exemplos significativos podem ser encontrados em todas as cidades mais antigas do Brasil, especialmente em áreas junto ao porto. Essa bandeira de ferro pode ser vista como exemplo da época, sobre a porta principal da entrada da Assembléia do Ceará, e também sobre as portas da antiga Alfândega, inseridas num portal de pedra aparelhada, outro ornamento bastante característico desse período.

Bandeira de ferro e portal de pedra aparelhada da antiga Assembléia - 2014
Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva

Bandeira de ferro e portal de pedra aparelhada da Alfândega - 2014
Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva

Portanto, os autores desses projetos erguidos na Capital se enquadravam plenamente sob as influências desse estilo importado, mostrando uma ligação direta com a Europa, com a chegada dos arquitetos europeus e os também descendentes destes, na cidade.
Logo após a proclamação da República, o Ceará se viu dominado por uma oligarquia política comandada pelo comendador Antônio Pinto Nogueira Accioly. Os governos oligárquicos estaduais constituíram uma ocorrência nacional, a chamada política dos governadores inaugurada pelo presidente da República Campos Salles. O Ceará não foi exceção, inclusive com posterior destituição do grupo oligárquico, de forma violenta, no início de 1912.
Nesse período, em Fortaleza, duas obras têm grande importância no final do século XIX, no governo do Tenente-Coronel de Engenheiros José Freire Bezerril Fontenele, entre 1892 e 1896. O sóbrio quartel do Batalhão de Segurança (1893), na Praça Marquês do Herval, com reminiscências neogóticas e a sede do Liceu do Ceará (1894), provavelmente a primeira edificação a empregar elementos decorativos correlacionados ao ecletismo arquitetônico, localizada na Praça dos Voluntários. No governo de Bezerril Fontenele também foi iniciada a obra do Mercado da Carne, a primeira edificação pré-fabricada em ferro inaugurada na cidade.
Contudo, as manifestações da arquitetura eclética na Capital compreenderam as três primeiras décadas do século XX. As primeiras realizações já apareceram no final do século XIX, coincidindo com o período da oligarquia acciolina, iniciado no primeiro mandato em 1896. Apesar do número de obras de arquitetura nesse período ter sido modesto, no entanto, foram portadoras de alto valor simbólico no meio social de Fortaleza, envolvendo entidades e pessoas de notoriedade.


Batalhão de Segurança em foto de 1911

Prédio do Liceu na Praça dos Voluntários - Arquivo Nirez

Prédio do Liceu na Praça dos Voluntários, provavelmente a primeira edificação a empregar elementos decorativos correlacionados ao ecletismo arquitetônico. Arquivo Nirez


As transformações sociais e a expansão física da cidade vão ter consequências na organização espacial da casa e também dos lotes urbanos. As novas construções começavam a se afastar cada vez mais da chamada casa-corredor, de origem colonial. Durante o período imperial, Fortaleza havia mantido o aspecto comum da maioria das cidades brasileiras, uma arquitetura residencial constituída por alguns sobrados, uma grande parte de casas térreas e uma faixa de palhoças circundando a periferia urbana. Para romper com o velho sistema, alterou-se o plano tradicional, introduzindo acessos laterais às casas; assim começaram aparecer casas de esquina e casas situadas no meio dos quarteirões com entrada recuada em relação ao alinhamento da rua.
Nesse sentido, na arquitetura se processaram modificações ditadas não somente pelo gosto por estilos mais refinados, mas também por conveniências de mercado. As casas urbanas com telhados dotados de beirais, receberam platibandas que interrompiam esses mesmos beirais que jogavam água sobre as ruas, geralmente sem calçamento. Surgiam, assim, as calhas e descidas de águas pluviais executadas em ferro fundido e em ferro galvanizado, quase sempre produtos ingleses importados.




A primeira edificação, realmente construída segundo as normas do ecletismo arquitetônico, foi a sede da Fênix Caixeiral*, inaugurada em junho de 1905, em uma das esquinas da Praça Marquês de Herval, um dos locais da cidade mais valorizados na época.
O edifício reproduzia o plano das novas casas de esquina**, ou seja, com entrada lateral sem corredor; uma grande sala para festas, biblioteca e salas de aula. Mostrava um andar nobre sobre porão habitável, que dava um novo aspecto à arquitetura do prédio, com novidades tanto na implantação e localização, como na ornamentação da fachada, com abundância decorativa.

Associação Comercial (Palacete Guarani) - Arquivo Nirez

Em dezembro de 1908, foi inaugurada a Associação Comercial, uma antiga ambição do Barão de Camocim, Geminiano Maia, comerciante de posses, que havia passado parte da mocidade em Paris, voltando à Fortaleza, casado com uma jovem francesa. A nova edificação deveria dar lugar o “status que o alto comércio de importação e exportação reivindicava para si”, segundo Castro (1987: 220). O prédio também situava-se numa esquina, constava no térreo de locais destinados ao Banco Comercial e Agrícola, à exposição de produtos exportáveis e à Associação: e no andar superior, constavam vastos salões.

[...] tinha um vasto telhado de placas coloridas à feição de ardósia, formando desenhos geométricos cinza e róseos. O projeto recebera a assinatura do 1°. Tenente José de Castelo Branco e obedecia ao “estlylo greco-romano”, com “elegante pórtico formado por columnas jonicas” e intercolúnios “encimados por pilastras de ordem corinthia”. Os interiores do pavimento superior constavam de “quatro vastos e luxuosos salões: o de honra, gris-perle; o azul, o róseo, o verde”, com “ornamentos recordando Luis XV”, além do “forro de metal e o soalho todo de madeira de lei, formado por taboas escamadas, que produzem magnifico efeito, o unico no genero no Ceará” (CASTRO, 1987: 220). 
(Grafia da época)

Além dessas duas obras de arquitetura eclética, as sedes da Fênix Caixeiral e da Associação Comercial, a mais representativa nessa época, entretanto, é o Teatro José de Alencar, edificação metálica pré-fabricada, e o exemplar de maior significado da arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza.


*Fundada em 1891, a Fênix Caixeiral era uma sociedade assistencial e cultural que congregava o pessoal do comércio, representados pelas figuras de maiores aspirações sociais no segmento, geralmente guarda-livros. Rapidamente passaram a desfrutar de grande consideração em todos os círculos sociais da cidade (CASTRO, 1987: 220).

**O esquema consistia em recuar o edifício dos limites laterais, conservando-o sobre o alinhamento da via pública, o recuo era apenas de um dos lados, do outro quando existia, era reduzido ao mínimo (REIS FILHO, 1983: 44).


Leia também:
Parte I
Parte II


Crédito: Uma Revolução no tempo das trocas: Arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza (1860-1910) - Maria Claudia Vidal Lima Silva

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A arquitetura do ferro em Fortaleza (Parte II)




Os séculos XIX e XX foram marcantes no quesito da exportação de matérias-primas e a importação de produtos industrializados que chegavam introduzindo novas práticas sociais e e a introdução de novos valores culturais, que iriam favorecer as reformas urbanas e a inserção da arquitetura do ferro na cidade.

Por sua produção rural, Fortaleza passou a deter, um movimentado porto exportador-importador. Diante dessa expansão econômica e urbana da cidade, os poderes públicos, as elites enriquecidas e os setores intelectuais realizaram um conjunto de reformas urbanas com a intenção de alinhar a cidade aos códigos de civilização, usando como referência modelos materiais e estéticos dos grandes centros urbanos europeus.

Fortaleza teve seu desenvolvimento atrasado pelo tardio povoamento do Ceará, iniciado apenas no começo do século XVIII, principalmente por ser dependente da capitania de Pernambuco e impossibilitada desta forma de efetivar relações comerciais diretamente com a Corte e outros países europeus; e, também, pelo modelo de ocupação do território, que se deu do sertão para o litoral, mesmo que com o passar do tempo esse litoral seja fundamental para o desenvolvimento da capital.

Em 1726, Dom João V resolveu conceder o Forte com o título de Vila. Fortaleza passa a usar esse título, mas pouco muda seu aspecto de abandono e pobreza em que estava até então, quase ilhada no “montão de areia”. A primeira Planta da Vila de Fortaleza, de 1726, desenhada pelo Capitão-Mor Manuel Francês, mostra bem essa realidade. (Ver primeira foto da postagem).

Entretanto, o ano de 1799 seria para a pequena “Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção”, muito favorável. Enfim, por ordens reais, a capitania do Ceará se separa definitivamente de Pernambuco e cria-se, assim, a possibilidade de comércio direto com Lisboa. O porto de Fortaleza, um simples ancoradouro, encontrará finalmente uma função específica. 
No decorrer do século XIX, se dão as subsequentes ações transformadoras no espaço da cidade de Fortaleza.
Só a partir do segundo reinado, quando os presidentes de província passam a ser os agentes do poder central, é que a cidade de Fortaleza vai melhorar seus indicadores econômicos, principalmente em relação a Aracati. O limitado volume da produção e do mercado impediriam a possibilidade de sustentação das duas cidades e justificariam a disputa entre Aracati e Fortaleza. Porém, essa concorrência foi vencida por Fortaleza, por ser capital da província.



Um dos primeiros a relatar tais acontecimentos foi o viajante inglês Henry Koster, entre dezembro de 1810 e janeiro de 1811, quando visitou a cidade então vila, com não mais que cinco ruas e fez a seguinte descrição:

[...] edificada sobre terra arenosa, em formato quadrangular com quatro ruas, partindo da praça e mais outra, bem longa, do lado norte desse quadrado, correndo paralelamente, mas sem conexão. As casas têm apenas o pavimento térreo. Mas n‟algumas residências, há uma calçada de tijolos deante. Três igrejas, o palacio do governador, a Casa da Câmara e prisão, Alfândega e Tesouraria (KOSTER41, 1942: 165 apud CAMPOS, 1988: 60).

Precária formação urbana tem seus dias contados, quando o Senado da Câmara, a 21 de novembro de 1812, pleiteia a autorização do Governador para os procedimentos de elaboração de planta que oriente a edificação da cidade. Esta necessidade de racionalização aparece no tecido urbano a partir da chegada e influência do engenheiro Antônio José da Silva Paulet em 1812. Chegou como ajudante de ordens do 4º governador da Capitania do Ceará, o Coronel Manuel Ignácio de Sampaio, e foi o último engenheiro-militar enviado para a Capitania. Veio com o objetivo de realizar levantamentos cartográficos do território, como também implementar obras arquitetônicas e intervenções urbanísticas. As realizações materiais da administração do Governador Sampaio ficou marcada por obras de vulto, como a nova Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o edifício do mercado da vila e a abertura de ruas retas, com cruzamento em xadrez.

Fortaleza foi descrita da seguinte forma, pelo engenheiro-militar Silva Paulet em 1816:

Esta villa é a capital da capitania; assento do governo, com um batalhão de tropas regulares, um juiz de fora que é auditor da tropa e juiz de alfândega. Há uma caza de camara arruinada: não tem cadeia, e servem-se as autoridades civis de uma cadeia militar; o que dá motivo a uma infinidade de contradições e etiquetas, que se não podem emendar, em muito detrimento da expedição das dependencias criminaes. A villa é pobre, seo comercio de pouco vulto, ainda que o porto é soffrivel, apezar de ser uma enseada, mas como só as immediações do termo do Aquiraz, e parte da villa de Monte-mór o Novo se surtem da Fortaleza, o commercio é muito menor do que o do Aracati. Não há uma só caza de sobrado, e as terreas são muito inferiores. O sólo é de areia solta, o tijolo, cal e madeiras são caros, e tudo concorre para ser mui despendiosa a edificação. (PAULET, 1898: 16).

Respeitando o traçado original que encontrou, Silva Paulet sobrepôs uma nova malha, em xadrez, ajustável ao terreno quase plano, onde a cidade tinha se desenvolvido

No período imperial, em 17 de março de 1823, Dom Pedro I elevou a Vila de Fortaleza à categoria de Cidade da Fortaleza de Nova Bragança, denominação que pouco agradou e logo foi renomeada para Cidade da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Porém, um pouco antes desses acontecimento, em 1820, Paulet deixou o Ceará. Nessa situação, o arruador e profissional da municipalidade, Antônio Simões Ferreira de Farias, que era auxiliar de Paulet, desde 1812, nas obras de edificação e nos trabalhos de implantação do novo plano de desenho ortogonal aplicado à então vila, deu continuidade ao trabalho do engenheiro.

Na década de 1860, o suíço Luís Agassiz, que chefiava a missão científica Thayer Expedition, acompanhado de sua esposa Elizabeth Cary Agassiz e de um grupo de naturalistas, ao visitar Fortaleza, descreveu a capital cearense desta forma:

Gostei do aspecto da cidade do Ceará. Agradaram-me as ruas largas, limpas, bem calçadas, ostentando toda sorte de cores, pois as casas que as ladeiam são pintadas dos mais variados tons. Aos domingos e dias de festa, todas as sacadas se enchem de moças com alegres toaletes, e os grupos masculinos enchem as calçadas, conversando e fumando. Ceará não tem esse ar triste, sonolento, de muitas cidades brasileiras; sente-se aqui movimento, vida e prosperidade na cidade (AGASSIZ, 2000: 408).

Fortaleza começava a apresentar nesse período um certo progresso no cotidiano social, e em termos de mudanças nos aspectos construtivos das edificações, como tão bem observou Agassiz em sua passagem pela cidade:

As casas baixas, proletárias, de beira e bica, paredes de taipa e, também, as mais presunçosas, de beira e sub-beira, portas lisas e sem bandeirolas nem persianas, aos poucos eram substituídas por outras mais elegantes e burguesas, de cimalhas e cornijas, com fachadas artísticas, de frontões ogivais, varandas ou balcões de ferro, quais as sacadas onde postavam as moiçolas que Agassiz viu em elegantes tualetes. (GIRÃO, 1979: 106).

A partir de 1860, intensifica-se o cultivo do algodão em toda a província e em zonas não muito distantes da capital, abrindo oportunidades de um comércio direto com a Inglaterra estimulado, principalmente, pela retração dos Estados Unidos, um de seus principais fornecedores de algodão, que estava em guerra pela independência. O crescimento da exportação da produção algodoeira para o mercado externo contribuiu para tornar Fortaleza o principal entreposto comercial do Ceará.
A cidade teve demasiadas transformações a partir dos anos 1870. Entretanto, com a preocupação do poder público de esquadrinhar a malha urbana de Fortaleza, com o objetivo de sistematizar a expansão da cidade através do alinhamento de suas ruas e da abertura de novas avenidas, a Câmara decide solicitar a contribuição profissional de Adolfo Herbster, para elaborar e implementar um novo plano urbanístico. Esse momento seria o marco inicial da modernização urbana em Fortaleza.
Adolfo Herbster  já era contratado como engenheiro e diretor de obras da Província, desde 1855, cedido pelo governo de Pernambuco ao Ceará.
Na época da chegada de Herbster ao Ceará, Fortaleza enfrentava dois fatores negativos que impediam a expansão física da cidade; dificuldades de obtenção de material de construção, como tijolos e cal, a implantação da cidade em solo arenoso, além das péssimas condições das atividades portuárias e do abastecimento de água.



A Planta Exata da Capital do Ceará de 1859, proposta por Adolfo Herbster, deu origem ao sistema que orientou o desenvolvimento do bairro Aldeota, no lado leste da cidade. Essa planta por ser bastante detalhada, foi um retrato da cidade.
Herbster fez incluir legendas que esclarecem as denominações dos logradouros e a localização de todos os edifícios públicos, civis, religiosos e militares. Estão devidamente assinalados repartições públicas, escolas, igrejas, quartéis, a cadeia, o Cemitério de São Casemiro e o pequeno anexo dos ingleses, riachos, pontilhões, açudes, cacimbas (poços) das praças, coqueirais, “áreas”, “comoros” (dunas). Indica por meio de convenções gráficas os modos de ocupação e o relevo do solo, apontando os trechos de continuidade predial, as edificações isoladas, praças, largos e hortas, campos cultivados, baldios, zonas periféricas onde se espalhavam em vasto número as casas de palha (“choupanas”).



Fortaleza naquela época, não passava de um pequeno quadrilátero já arruado, justaposto à área ocupada pela vila no começo do século, ainda acomodada ao riacho Pajeú.
A pavimentação nem sempre acompanhou a expansão urbana, permanecendo até as primeiras décadas do século XX, as pontas de ruas, conhecidas por “areias” (Que representavam os bairros da periferia de Fortaleza), expressão de forte diminuição social.
Com a inauguração da estrada de ferro em 1873, o transporte do algodão e de pessoas para Fortaleza foi agilizado, consolidando a hegemonia econômica da cidade, encurtando as distâncias e estreitando a dependência do interior com a capital. O trem, um dos principais produtos do avanço tecnológico do século XIX, acentuou ainda mais a positividade dos efeitos sociais da noção de “progresso”.

A cidade nasceu voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea.
Nesse período a ocupação do litoral da cidade se limitava ao forte, uma vila de pescadores nos arredores da Prainha e um trapiche, cujo maior adensamento das construções estava um pouco distante da zona costeira, resultando num litoral quase desabitado.
Até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar faziam referência à presença do homem do sertão e seus utensílios.
Nesse entendimento, afirma o escritor Eduardo Campos (Livro Rural e Urbana. Fortaleza, 1988) :

Figuram aí, com nomenclatura antiga e saborosa, ruas e travessas referendadas por suas legítimas origens populares, quais as travessas das Hortas, das Flores, do Cajueiro, do Pocinho, da Cacimba, da Bica, em que se evidencia mais uma vez a formalização de nossos antecedentes rurais, e, indisfarçável, o entrelaçamento das relações do “sertão” com a cidade, e não com o mar, não obstante a proximidade imediata deste, responsável, como é apregoado, pela salubridade da população.              

As zonas de praia na capital cearense caracterizavam-se nesse período, principalmente, por duas funções que contribuíram para sua desvalorização, que eram o escoamento dos esgotos e as atividades da incipiente zona portuária. Praticamente por todo o período de crescimento da cidade no século XIX, a zona costeira está quase sempre à margem nos planos urbanísticos de ordenamento do traçado urbano, como se viu até então. Esta zona passa então a ter sua ocupação irregular pelos migrantes foragidos das constantes secas do sertão cearense na segunda metade do século XIX.

Apesar do visível crescimento, Fortaleza ainda não possuía um porto adequado para exportar seus produtos, entre eles, o algodão.

No final do século XIX, o engenheiro inglês John Hawkshaw, elaborou um relatório que trazia a então nova estrutura portuária de Fortaleza com base no Decreto Nº 8.943 de 12 de maio de 1883. O projeto do novo conjunto portuário não foi aprovado, sendo construído apenas o prédio da Alfândega. A execução ficou a cargo da Sociedade Inglesa Ceará Harbour Corporation Ltda (Empresa Concessionária dos Serviços do Porto de Fortaleza) sob direção dos engenheiros Tobias Lauriano Figueira de Mello e Ricardo Lange, sendo construtora a Firma Punchard M. Taggart Muntz & Companhia representada por E. Jackson & P.O. Meara, sendo o engenheiro chefe George Barclay Bruce. O local escolhido era um terreno baldio e cheio de árvores.

Coube ao engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva estudar um novo plano capaz de facilitar o movimento de pessoas e mercadorias no porto. O resultado foi apenas a construção de um trapiche em frente ao novo edifício da Alfândega. Era um viaduto com estrutura de ferro e piso de madeira, a chamada ponte metálica, cuja construção foi iniciada em 1902 e entregue somente em 1906.




Segundo Raimundo Girão, a ponte metálica era dotada de escada móvel para descida e subida de passageiros, não oferecendo por isso a melhor segurança. A carga e descarga de mercadorias era feita por meio de guindastes. Os navios ficavam ao longo, e o percurso até a ponte e vice-versa era efetuado por lanchas, alvarengas e botes.

A cidade crescia, experimentando novos regulamentos em favor da ordem urbanística. As normas enquadravam os habitantes, que muitas vezes não atentavam para as modificações da convivência social imposta pelo progresso da urbe. Assistir o crescimento do casario, a abertura e prolongamento de novas ruas, e cobrando melhor apresentação do indivíduo, sua adequação aos tempos de renovação ou aperfeiçoamento de hábitos. 
Hábitos e costumes marcadamente provincianos, em que se inseria o comportamento social naquela época, decorrentes da liberdade de viver no campo, os chamados “matutos”, gostavam de andar muito à vontade.
Fortaleza, como Capital, era referência, entre as cidades do Ceará, do “modelo hegemônico de bem-estar e estar bem no mundo”, unificado sob o capitalismo, que a Europa do século XIX impôs como modelo e parâmetro de civilização.

O primeiro estabelecimento de negócios estrangeiros foi fundado na cidade em 1811, a fim de manter intercâmbio direto com a Europa. O irlandês William Wara iniciou essa fase de influência britânica no desenvolvimento socioeconômico de Fortaleza. Lojas e armazéns além de ostentarem nomes, tabuletas e fachadas, gravados em língua inglesa, vendiam o melhor que a cidade usava, comia e vestia, tudo vindo das Ilhas Britânicas, segundo Raimundo Girão.

Um grande número de ingleses, franceses e portugueses tiveram atuação no comércio da Capital; mantinham lojas e empórios, habituados às exigências das grandes cidades europeias e, por essa razão, polidos, cavalheiros, num meio que apenas deixava os costumes sociais mais elementares. Exerciam, na sociedade, as melhores relações de ordem mundana, concorrendo para melhorar os costumes e a civilidade local.


As lojas, com suas vitrines, tinham um atraente acervo de artigos europeus constituídos de tecidos, sapatos, perfumes, chapéus, bijuterias, conservas, bebidas, maquinarias, entre outros. Além de vender objetos, roupas, quinquilharias de luxo, os desejos mundanos importados de Paris, as lojas ostentavam títulos em francês nas suas fachadas, como: Rendez-vous de Dames, Au Phare de La Bastille, Paris des Dames, Paris n’América, Bon Marché, Maison Moderne, Louvre (a mais luxuosa).
O mesmo ocorria com hotéis e restaurantes, como: Hotel de France (o melhor da cidade durante muitos anos) Restaurant Entaminet Europeu, Café Riche, Confeitaria Maison Art Nouveau, Notre Dame de Paris, além das Farmácias Francesa e Pasteur.


Nessa lógica, o culto do afrancesamento encontrou um terreno fértil na capital, entre os grupos citadinos ávidos por novidades importadas, se traduzindo de várias formas e sentidos.
Em 1908, a Casa Boris Frères & Cia. publicou o Álbum de Vistas do Ceará, 1908, editado e impresso na cidade de Nice, na França, por Berger et Humbolt Helmlinger, com fotografias de 1902 a 1907. Confeccionado em papel nobre, trazia 160 imagens de tudo que representava o aformoseamento e o progresso de Fortaleza, e também de algumas regiões do Ceará que estavam em processo de desenvolvimento, no início do século XX.
Significava, formalmente, uma homenagem à Fortaleza, em reconhecimento ao seu desenvolvimento e a sua formosura. Esse álbum de fotografias com imagens da Capital e de regiões do interior do Ceará, circulou pela cidade, para o entusiasmo dos agentes locais da modernização urbana.

No início do século XX, a cidade continuou a passar por transformações sócio-urbanas que intensificaram sua condição de principal cidade do Estado, posição hegemônica alcançada no final do século XIX. As autoridades, conforme o ideário de “progresso e civilização” da belle époque europeia, voltavam a administração municipal para o “aformoseamento e higienização” de ruas e praças, bem como o controle das crescentes e miseráveis camadas populares.

Fonte: Ofipro

Na atuação producente do administrador municipal Guilherme Rocha, que desde 1892 exercia o cargo de Intendente, foi inaugurado em 1897 o Mercado da Carne, uma das vaidades da Capital. Importado da França, para a venda de carnes e peixes, melhorando o sistema primitivista com que se efetuava aquele comércio. Em 1902, inaugurou-se na Praça do Ferreira, o belo jardim 7 de Setembro e, no ano seguinte, a Praça Marquês do Herval. Além desses logradouros, a Praça da Sé também sofreu uma intervenção estética, recebendo ornamentação semelhante ao Passeio Público.

Até então, a cidade contara apenas com um único logradouro urbanizado, que era o Passeio Público. Em ambas as praças, a par dos canteiros, cheios de flores, introduz cópias de originais de estatuária grega pertencentes ao acervo do Louvre. No meio dos jardins da Praça Marquês do Herval, Guilherme Rocha ergue também um pavilhão destinado à prática de patinação, às demonstrações de ginástica infantil e aos concertos do Batalhão de Segurança.


Também a construção de um teatro oficial em Fortaleza figurava como intenso desejo desde o início do século XIX. Entretanto, só foi concretizado em 1910, com a inauguração do Teatro José de Alencar, uma das últimas obras do governo oligárquico de Nogueira Accioly. Importado da Europa, o teatro com estrutura de ferro pré-fabricada, fornecida pela empresa escocesa Walter MacFarlane & Co., de Glasgow, chegou em Fortaleza em 1908, a bordo de um navio inglês, com negociação feita pela Casa Boris Frères. A arquitetura do ferro já era conhecida e admirada, significando para os adeptos locais um símbolo da afirmação civilizatória.

Catálogo MacFarlane’s Volume I

Mesmo antes da construção do Teatro José de Alencar, esta preferência se explicava, não só pela praticidade, mas sim pelo que representava: as maiores conquistas tecnológicas da construção civil, à época, como também por seu aspecto simbólico. Lembrava as grandes cidades europeias, com as quais a próspera classe de comerciantes importadores-exportadores cearenses mantinham contatos cada vez mais próximos, aspirando sonhos de civilização e riqueza.

Catálogo MacFarlane’s Volume I


Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Para atender a esses desejos de modernidade, nada mais natural do que transferir para o Brasil a arquitetura feita na Europa, através do emprego das estruturas metálicas importadas e pré-fabricadas, constituindo assim um prolongamento da europeização da vida brasileira, já que se tratava de um produto original, elaborado por matrizes culturais europeias, símbolos concretos de demonstração de poder de uma elite urbana em ascensão. 

1- Catálogo MacFarlane’s Volume I
2- Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Embora as edificações pré-fabricadas em ferro na Europa não possam ser consideradas competências de uma cultura brasileira, porém podem ser compreendidas por meio de uma dependência de uma cultura importada que expressava um símbolo de civilização e progresso. A inserção da arquitetura com seus exteriores significativos e os seus interiores direcionados à exibição dos novos hábitos sociais, objetivavam também integrar a cidade ao modelo civilizador ditado pelas nações europeias ditas mais desenvolvidas.


Leia também a Parte I



Crédito: Uma Revolução no tempo das trocas: Arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza (1860-1910) - Maria Claudia Vidal Lima Silva

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

A arquitetura do ferro em Fortaleza



A segunda metade do século XIX e início do século XX foram de grande impacto na vida da cidade, pois diversos equipamentos foram instalados e mudanças importantes ocorreram:

Criação das linhas de navio a vapor de Fortaleza para o Rio de Janeiro e Europa (1866); o surgimento do sistema de canalização pública (1867); a criação das linhas de bondes (1880); o telégrafo submarino que ligava a cidade ao sul do país e a Europa (1882), o telefone (1883) e a construção do Mercado da Carne (1897), importado da França. Também tivemos acontecimentos importantes como o Plano da Cidade de Fortaleza e Subúrbios de Adolfo Herbster (1875) complementado em 1888, bem como a aprovação do Código de Postura (1893) deram um novo impulso à capital com relação ao seu traçado e ordenamento. A construção da 
Igreja do Pequeno Grande (1903) e a instalação do Teatro José de Alencar (1910).


Esse conjunto de acontecimentos representavam evidências que o processo civilizador capitalista se implantava no Ceará e na Capital.

De acordo com a historiadora Cacilda Teixeira Costa, a partir do final do século XIX passou a existir um consenso mundial quanto ao repertório de edifícios públicos que as cidades deveriam ter para serem verdadeiramente “uma cidade”. Construídos na maior escala possível a cada cidade constavam basicamente de uma prefeitura ou palácio do governo, um fórum, uma bolsa de valores, uma ópera ou um grande teatro, um museu ou uma galeria de arte, uma ou mais estações ferroviárias, mercados, uma alfândega (caso se tratasse de um porto) e, se fosse capital do país, uma câmara e um senado, e um ou mais ministérios. Todas as cidades deveriam ter ao menos um parque público, na maior dimensão possível, e quando houvesse condições para isso, um jardim zoológico. Além disso, os novos costumes exigiam lojas, banhos públicos, restaurantes, cafés e salões de chá, instalações sanitárias, artefatos de iluminação.


As obras arquitetônicas dos engenheiros do século XIX baseavam-se amplamente no emprego do ferro. A história do ferro como material de utilidade mais que meramente auxiliar na arquitetura inicia-se durante a Revolução Industrial, depois de 1750, ao se descobrir uma maneira de produzi-lo industrialmente. Logo se fizeram tentativas de substituir a madeira ou a pedra pelo ferro. As vantagens do ferro e também do vidro eram evidentes para mercados cobertos e estações ferroviárias, dois tipos de construção trazidos para primeiro plano pelo extraordinário aumento da população urbana nos princípios do século XIX e pela crescente troca de materiais e de produtos entre as fábricas e as cidades.

Ainda segundo a historiadora, nesse entendimento, no período compreendido entre a segunda metade do século XIX e início do século XX, houve no Brasil uma grande importação de edifícios e complementos de ferro, pré-fabricados nas indústrias europeias, empregados para os mais variados fins, desde teatros, mercados, estações ferroviárias e quiosques, até fontes, postes de iluminação e todo tipo de acessórios de construção, cuja procedência variava entre Grã-Bretanha, França, Bélgica e Alemanha.

Através do porto de Fortaleza se dava a exportação de matérias-primas e a importação de produtos industrializados do continente europeu. Com a inauguração da Estação Central de Fortaleza, em 1880, surgia também pela primeira vez uma estrutura de ferro pré-fabricada¹ em uma edificação na cidade. Contudo, Fortaleza passou por um período de pouco investimento em sua infraestrutura, um pouco antes, durante a grande seca (1877-1879); e logo após, em 1880, retoma os investimentos no seu aformoseamento e novas construções urbanas.

A cidade assistiu a implantação de edificações inteiramente pré-fabricadas em ferro, importadas da Europa, num momento, talvez único, em que edificações completas se tornaram produtos industrializados, vendidos através de catálogos, como mercadorias. Três edificações, o Mercado da Carne² (1897), a Igreja do Pequeno Grande (1903) e o Teatro José de Alencar (1910), ainda existentes na cidade de Fortaleza, são representantes da arquitetura do ferro.

Arquivo Nirez

Página do Catálogo Guillot Pelletier com exemplo de mercado de ferro.
Fonte: www.delcampe.net

Conforme o historiador Sebastião Rogério Ponte, um grande estudioso da historiografia cearense, desde 1840, Fortaleza passou a deter a exclusividade do movimento exportador-importador, sendo assim o principal entreposto comercial da região. Diante dessa expansão econômica e urbana da cidade, os poderes públicos, as elites enriquecidas e os setores intelectuais realizaram um significativo conjunto de reformas urbanas capaz de alinhar a cidade aos códigos de civilização, usando como referência os padrões materiais e estéticos dos grandes centros urbanos europeus.

Estrutura de ferro da Igreja do Pequeno Grande.
Acervo de Maria Claudia Vidal Lima Silva.

Estrutura de ferro da Igreja do Pequeno Grande.
Acervo de Maria Claudia Vidal Lima Silva.

Sobretudo através de estratégicas medidas embelezadoras, saneadoras e higienistas para ordenar seu espaço e disciplinar sua população. A “civilização” enfim chegara a Fortaleza.
Mas não bastaria apenas dotar a cidade de equipamentos e serviços modernos: era necessário “civilizar e “domesticar” a população, acima de tudo os setores populares, “cujos hábitos e costumes eram tidos como rudes e selvagens pelos agentes daquele processo civilizador”.

No Brasil, dentre os edifícios pré-fabricados em ferro importados, nenhum tipo foi tão útil e tão disseminado quanto os mercados públicos. No período compreendido entre a segunda metade do século XIX e início do século XX, houve no Brasil uma grande importação de complementos e edifícios de ferro pré-fabricados, produzidos nas indústrias europeias, empregados para os mais variados fins, desde teatros, mercados, estações ferroviárias e quiosques, até fontes, postes de iluminação e todo tipo de acessórios de construção, cuja procedência variava entre Grã-Bretanha, França, Bélgica e Alemanha. Exemplares semelhantes ocorreram na mesma época, também em várias outras partes do mundo, como: Argentina, Peru, Chile, Uruguai, Paraguai, México, Vietnã, Índia, Marrocos, Austrália, África do Sul, Caribe, entre outros.

Como nessa época a siderurgia brasileira ainda não era capaz de tal produção em ferro, as construções foram importados para resolver demandas relativas ao crescimento, aformoseamento das cidades e muitas vezes eram entendidas como símbolo de progresso. Ao importar os produtor europeus, o Brasil recebia objetos “modernos”, frutos de uma tecnologia de ponta na época, sem que o país tivesse vivido o processo de industrialização e modernização.

Ilustração do Teatro José de Alencar no Suplemento especial Walter MacFarlane
Arquivo do IPHAN-CE.

Além das mudanças sócio-econômicas, as transformações tecnológicas ocorridas durante a segunda metade do século XIX provocaram também, modificações nos modos de habitar e construir. Com a instalação de ferrovias e linhas de navegação, novas condições de transporte no país, vieram permitir o surgimento desse novo fenômeno, edifícios importados e produzidos pela indústria.

[...] Fabricados nos países europeus, vinham desmontados, em partes, nos porões dos navios. A importação era completa, pois compreendiam de estruturas e vedações até coberturas, escadas e peças de acabamento, que eram aqui montadas, conforme as instruções e desenhos que as acompanhavam. [...] As peças, numeradas, facilitavam a montagem, tornando-a mais rápida e dispensavam em parte a mão-de-obra especializada no local (REIS FILHO, 1983: 156).

A importação de edifícios pré-fabricados de ferro não se deu, uniformemente pelo território nacional, como também, não se localizou especificamente em uma cidade ou região e nem tão pouco em grandes proporções. Essencialmente, esse tipo de edificação ocorreu em regiões beneficiadas pelo rápido crescimento econômico, subordinado à exportação de produtos agrícolas, tais como açúcar, algodão, café e borracha. Essas edificações metálicas ocorreram principalmente nos atuais estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Pará e Amazonas, mais especificamente em suas capitais, respectivamente, Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, Belém e Manaus. Nessas cidades e regiões aconteceu um intenso crescimento econômico na época. Porém, algumas dessas regiões tiveram um progresso econômico tardio, mas de intenso vigor, principalmente a partir do início do século XIX.

As fundições começaram a editar catálogos a partir do final da década de 1830, tanto na Grã-Bretanha, quanto no continente. Mas foi entre 1840 e 1870, o período de maior esplendor dessas publicações, em que as empresas de fundição ofereciam uma extraordinária série de produtos de ferro fundido, reunidos em catálogos ou álbuns comerciais com centenas de páginas ilustradas.
Os catálogos constituíam uma grande despesa para as fundições, tanto pelo custo de produção quanto pela necessidade de aumentar o número de modelos, que diversas vezes saiam de moda antes de serem reproduzidos o suficiente para se pagarem. Esses modelos ou protótipos exigiam mão de obra especializada, sobretudo dos moldadores, o que os encarecia demasiadamente.

Páginas de um dos Catálogos:





Trazia, ainda nos seus exemplos, os desenhos das vistas exterior e interior da platéia do Teatro José de Alencar, inaugurado em Fortaleza em 1910, como também algumas obras arquitetônicas completas escolhidas entre muitas apresentadas neste rico suplemento, desde mercados, casas, quiosques para venda de refrescos, coretos, jardins de inverno, fontes públicas, fachadas de edificações; além de equipamentos e peças de ferro em geral, como escadas, portões, grades, guarda-corpos, marquises, pias, banheiras, canos e equipamentos de esgotos.

Dificilmente poderia se imaginar como seriam as fachadas dos sobrados de cidades brasileiras sem as varandas de ferro fundido que as vestiam. As peças de ferro chegavam por mar, por trem ou eram transportadas por terra através de distâncias enormes.




¹ Cobertas das plataformas internas da Estação Central, construída segundo projeto do engenheiro austríaco Henrique Foglare.

² O local original onde foi montada a edificação, já não mais o possui. Atualmente encontra-se separado em dois Mercados independentes, um fica na Aldeota, denominado Mercado dos Pinhões, e o outro, o Mercado da Aerolândia, em bairro de mesmo nome. A estrutura de cobertura da rua, que ligava os dois pavilhões se perdeu depois da separação, no início da década de 1930.

Continua...


Crédito: Uma Revolução no tempo das trocas: Arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza (1860-1910) - Maria Claudia Vidal Lima Silva
Fotos: Arquivo Nirez, Arquivo do Iphan, Arquivo do site e Acervo de Maria Cláudia.

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