Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Moreira Campos
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sábado, 16 de outubro de 2010

Moreira Campos está entre nós




Raymundo Netto o reencontrou no bairro do Benfica e nos relata aqui a conversa que teve com o mestre maior do conto entre os cearenses.

Pois bem, estava cruzando o Benfica, bairro intelectual e boêmio de nossa Fortaleza, para visitar um amigo que mora próximo à universidade, quando vi um fusquinha verde entrar no estacionamento aberto do shopping. Como se fossem fogos, despertando a dormência da tarde, explodia-lhe o escapamento, deixando traçar no chão uma trilha de doze parafusos. Os taxistas e pedestres riam daquela “arrumação”.

Desceu do carro um senhor magro — aparentava uns oitenta anos — com o rosto marcado e pálido, testa larga e os fios de cabelos brancos puxados para trás das orelhas. Com as mãos à cintura, e numa delas uma rosa, olhava surpreso para os lados. Leon, um funcionário que trabalha no local há mais tempo, gentilmente tentava explicar-lhe algo. Aproximei e ouvi quando aquele senhor insistiu, impaciente: “Mas, meu filho, você é quem não está me entendendo... Eu moro aqui!”
Não tinha mais dúvida: aquele homem era mesmo o professor Moreira Campos!
Leon não sabia o que fazer. Decerto, deveria ser um engano. Fazia já algum tempo que ali funcionava o estacionamento, e antes, ouviu dizer, “havia apenas uma casa antiga onde moravam dois velhos, mas que o shopping havia comprado e demolido a tal casa”.

Percebi que o Moreira, então boquiaberto, deixara cair a rosa que aos poucos empalidecia como se a dizer “para tão longo amor, tão curta a vida''*. Ficou assim, estático, dirigindo um olhar atento e desesperançado para o pequeno rapaz que falava, falava e falava...

— Vamos tentar resumir essa história, faz-se longa demais!, concluiu, deixando o moço a falar com as moscas.
Um cachorro magro farejava latas de lixo, parou e pôs-se a latir, arranhando a porta do carro com a patinha: Dizem que os cães vêem coisas...
Contrariado e perdido, o professor sentou-se no meio-fio do passeio ensombrado por um benjamim; apoiou o queixo pessimista no dorso de uma das mãos e divisou aquele shopping, mergulhando em si mesmo, encolhido pela tristeza. “As moscas insistentes provavam-lhe os cantos dos olhos” e ele refletia: “A vida endurece”!
Não via mais a sua casa, mas por dentro, chorava-a. Ouvia as mesmas vozes, o ranger do armador, o tilintar dos talheres na cozinha, a zoada das crianças no corredor e o piano da companheira amada: a Zezé... Passou pela cabeça, penso, as alegres reuniões e o papo literário, o café, o convívio com amigos no pequeno jardim de sua casa, a delícia da beira da rede na varanda, o desgasto do piso comido por tantos passos, o gemer de ferros do relógio na parede, o cheiro da terra molhada pela chuva colorida em iluminuras pelas histórias da Natércia, o cheiro do inhame quente, do piqui, da manteiga da terra, os passeios na calçada depois do jantar, e daí, sentiu saudades da penumbra da noite, onde queimava o lume de um cigarro... Desabafou:

— Não tem coisa pior do que voltar para casa e encontrar as portas fechadas... O mestre Tchecov já dizia: “se você vai derrubar a casa, apodreça de logo a cumeeira”.
As pálpebras franjavam o olhar plangente. Ele resistia, mas não estava sendo fácil:
— Não podia ficar para semente, ora! — caiu num silêncio melancólico, uma sensação perturbadora de não reconhecimento. Sim, aquela casa o abrigara e o acolhera por tantos anos. De lá, do “buraco da gia”, gabinete construído nos fundos da casa, é que vaporaram muitos dos seus fantasmas! Agora, eram apenas lembranças que se perderam no pó das paredes que ruíram.

— E os meus amigos, o Manuelito Eduardo, Artur, Aderaldo, Colares, Caetano, Sânzio, Pedro, Inês, Ângela e os outros, se quiserem me ver? A casa era tão minha que se pejava de minha voz. Eu podia falar pelas colunas, paredes, telhados, janelas... E agora, quando quiserem me encontrar, como farão?

Abeirei-me do contista, mostrei-lhe um livro de sua autoria que, por felicidade, trazia. Pedi uma dedicatória. Moreira sorriu, compreendeu meu recado, e tomou-lhe às mãos.

Leu para mim um trecho de As Três Irmãs: “(...) tinham mandado demolir o casarão: queriam espaço para o estacionamento de automóveis, mais lucrativo (...) O senhor de cabelos brancos comentava:
— Uma pena!
— Isto era casa para ser tombada. Um patrimônio.
— Não temos tradição.
— Pura verdade.”
Fez-se novo silêncio. Recordou sua vinda para a cidade amada, pigarreando um pouco para depois declamar: “Fortaleza era então provinciana, era menina. Cadeiras nas calçadas e a tristeza dos lampiões a gás em cada esquina”.

— Pois é, professor Zé Maria, mas essas coisas não acontecem só no Ceará, não, viu? No Rio de Janeiro também deixaram demolir a casa do Machado de Assis.

— Sim, eu sei, estive com ele... Estava casmurro por conta disso: a casa foi-se indefesa! Nem os lidos... Contudo, sempre acreditei que “o destino é o mais fértil dos ficcionistas, aquele capaz de todas as tramas e enredos”. Quis o destino que esta casa não sobrevivesse. O consolo é que “valem todos os momentos que deixamos impregnados naquele chão de mosaicos tão antigo.”

Puxando um cadarço do mocassim e espantando uma mosca que lhe mordiscava o lábio, Moreira olhou a rua, apontava as pessoas que passavam: uma mulher que, arrastando cinco crianças descalças e alegres, trazia um prato enrolado com uma toalha;  o senhor de olhos grandes e brancos, onde as contas de um terço corriam-lhe pelos dedos; duas velhas moucas; uma moça de blusa de mangas compridas de bolinhas com o esmalte das unhas roído, e outra  que passava agitada com o dedo em riste, bradando: “Meu irmão foi um mártir!”

— Está dando uma de doida, criatura? — perguntou, a sorrir do gracejo, para ela. Confessou-me: — Toda a literatura que escrevi se inspirou neste território cearense e em sua gente. Sou seduzido pelo ser humano e pelo que ele tem de vulnerável! Aprenda, Raymundo: sem experiência vivida, é raro conseguir-se grande coisa em ficção. Falo da verdade artística. Para ser arte, tem de se recriar o real, caso contrário se torna matéria jornalística!

Levantou-se, bateu o fundo da calça, tossiu um bocadinho, olhou novamente para o vazio. Dirigiu-se, agora mais tranqüilo, ao Leon. Lembrou e falou de Leonete, sua prima-irmã, enquanto o rapaz recebia as chaves e registrava a placa de seu fusca: “XQ - 2992”. Moreira deu uma tapinha no capô duro e recomendou que “tivesse pena do bichinho...” Depois, colocando o braço sobre meu ombro, perguntou se naquele negócio (referia-se ao shopping) tinha, pelo menos, um cinema. Adorava cinema! No outro dia, disse, iria ao Bosque das Letras, tinha tantas saudades das árvores de lá... “Pelo menos elas continuam por lá, não? Olha, olha...”

Chegara a noite, as corujas apareceram rasgando mortalha “num cair de asas leves, impressentidas, como num sopro de morte” no alto do vazio que restou. 

Raymundo Netto

(*) Último verso do Soneto 88 de Camões

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Minha foto  Crédito - Jornal O Povo




Leia a biografia de Moreira Campos

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Moreira Campos


Moreira Campos com 12 anos - 1926

José Maria Moreira Campos nascido em Senador Pompeu/Ce em 6 de janeiro de 1914. Considerado um dos mais importantes do gênero no país, com obras traduzidas para o alemãofrancêshebraicoitaliano e inglês.
É filho do português Francisco Gonçalves Campos e Adélia Moreira Campos. 

Em 1924 a família, após andanças pelo interior do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, por ser o pai construtor de estradas, fixa-se em Lavras da Mangabeira. Em 1930 passando por sérias dificuldades, mudam-se para Fortaleza. Em 30 de outubro, falece em Quixadá o pai do escritor, aos 47 anos. Em abril de 1932, falece a mãe do escritor, aos 47 anos.
Em 14 de dezembro de 1937, casa-se com Maria José Alcides Campos. Deste casamento, nascem três filhos: Natércia, Marisa e Cid.
Moreira Campos e Maria José Alcides Campos - casamento em 1937

Em 1943 dá-se a fundação do Grupo Clã. Em 1946 é bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Publica em 1949 'Vidas Marginais'.
No ano de 1957 sai Portas Fechadas. Em 1958 recebe o Prêmio Artur de Azevedo, do Instituto Nacional do livro. No ano de 1962 ingressa na Academia Cearense de Letras. No ano seguinte, lança As Vozes do Morto. Em 1965 torna-se catedrático de Literatura Portuguesa do curso de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará.
Em 1969 é publicado O Puxador de Terço. Nos anos de 1970-1971 é chefe do Departamento de Letras Vernáculas, membro do Conselho Departamental da mesma unidade. Decano do Centro de Humanidades da UFC. Em 1971 publica Contos Escolhidos, nos anos de 1973-1979 é escolhido Pró-reitor de Graduação da UFC. Em 1976 publica Momentos.

PROFº MOREIRA CAMPOS

Ingressa na Academia Cearense da Língua Portuguesa no ano de 1977 e recebe no mesmo ano a Comenda Senador Fernandes Távora da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. No ano de 1978 publica Os 12 Parafusos. No ano de 1981, sai os 10 Contos Escolhidos.
Em 1985 lança A Grande mosca no copo de leite. Em 1987Dizem que os cães vêem coisas. Em dois de dezembro de 1992, recebe o título de professor emérito da Universidade Federal do Ceará.
No ano de 1993, no dia cinco de novembro, é agraciado com a Medalha da Abolição, a maior comenda concedida pelo governo do Estado do Ceará e recebe a placa de Honra ao Mérito da prefeitura Municipal de Fortaleza.


Falece em 06 de Maio de 1994 aos 80 anos. Em agosto, é instituída a Comenda “Moreira Campos” em Senador Pompeu, sua terra natal a ser entregue anualmente a três pessoas de destaque no município. os Encontros Literários do Departamento de Letras da UFC passam a se denominar “Moreira Campos”. É descerrada uma placa com o seu nome na sala dos professores do curso de Letras. Em novembro, é inaugurada a Sala Literária “Moreira Campos” no Palácio da Cultura.

Obras



  • 1949 Vidas Marginais, contos;
  • 1957 Portas Fechadas, contos;
  • 1963 As Vozes do Morto, contos;
  • 1969 O Puxador de Terço, contos;


  • 1971 Contos Escolhidos, contos;
  • 1976 Momentos, contos;
  • 1978 Os 12 Parafusos, contos;
  • 1981 10 Contos Escolhidos, contos;
  • 1985 A Grande mosca no copo de leite, contos;
  • 1987 Dizem que os cães vêem coisas, contos



Temístocles Linhares classifica o contista de Portas Fechadas de “um de nossos maiores contistas atuais”. E comenta: “Lê-lo, para mim, é reviver, em certos aspectos, transpostos para o ambiente de seu Ceará, os velhos mestres do naturalismo. Como eles, o autor também desconfia das grandes palavras e dos grandes gestos, preferindo tentar substituir os julgamentos de valor pelos julgamentos de existência”.

Assis Brasil escreveu: “Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.

Hélio Pólvora opina: Moreira Campos, “embora não sendo um tchekhoviano perfeito, dele (Tchekhov) se aproxima quando livra o conto de uma sobrecarga excessiva e procura atingir logo o alvo, localizar logo o nervo exposto”. E acrescenta: “Moreira Campos seleciona e filtra fatos que às vezes se resumem a instantes, e nesse processo informa ou sugere o conflito vivido pela personagem, mostrando, afinal, o que ela faz para resolver o conflito ou sucumbir”.


Segundo Herman Lima, no ensaio citado na primeira parte, Moreira Campos: (...) “é um mestre do conto moderno, desde o aparecimento do seu primeiro livro, Vidas Marginais (1949), no qual há pelo menos uma obra-prima do conto universal desta hora, “Lama e Folhas”. Diz mais: “As pequenas ou grandes tragédias, as comédias ocultas do cotidiano burguês, fixadas por ele, ganham, em sua mão experiente, uma especificidade que o aproxima dos maiores nomes do conto psicológico de todos os tempos, de Machado de Assis para cá, inclusive e principalmente Tchecov, de sua íntima e fiel convivência, ou, mais perto de nós, de um Joyce dos Dubliners ou um Sherwood Anderson, de Winesburg Ohio”.

Montenegro argumenta: “Moreira Campos será talvez não apenas o contista de maior projeção nas letras cearenses contemporâneas, porém, ainda, juntamente com Osman Lins, Dalton Trevisan e poucos outros, terá ele realizado o que de mais significativo existe no conto moderno brasileiro”.



Sânzio de Azevedo, principalmente no ensaio “Moreira Campos e a Arte do Conto” (Novos Ensaios de Literatura Cearense) faz algumas observações: “Na linhagem de Machado de Assis e por conseguinte na de Tchecov é que se entronca a obra ficcional de Moreira Campos” (...). Segunda: “apesar de haver optado pela narrativa sintética, extremamente despojada, com que tem enriquecido a nossa literatura através de não poucas obras-primas, não renegou os longos contos de seu primeiro livro” (...). Terceira observação: “Em Moreira Campos o que mais importa são os dramas da alma humana, e não a presença da terra, ostensivamente retratada nas páginas de Afonso Arinos e Gustavo Barroso.

Batista de Lima, no ensaio mencionado linhas atrás, fala da corrosão física dos personagens, dos agentes dessa corrosão, dos defeitos congênitos, da decrepitude, da doença e da morte. A seguir analisa o oposto disso, ou seja, a ordem: “A nova ordem começa a ser instaurada no momento em que o narrador doma a morte, colocando-a no convívio familiar dos personagens. E, passando da ordem narrada para a ordem vocabular, constata a constante evolução da arte do contista".





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Créditos: Wikipédia, Jornal de Poesia e pesquisas de internet
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