O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na
Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado,
a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol,
com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se
queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu
valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês...
Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto
Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos
e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica.
Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas,
olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito
branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo.
Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que,
nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis
dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los
com seu nome, para não lhes macular a alvura.
No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos
ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...
Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz
Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro
de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era
o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava!
Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que
"seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela
primeira vez, se apaixonara!
Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata
de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de
arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo
da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira
cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos
Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc.
Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu
anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis
dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram
iguaizinhos aos meus!
Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos
uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água
e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso,
porque seu único alimento era bolachinhas Jacob* e cerveja...
Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom,
meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos...
Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz
Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo
a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado
pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle
Ibis":
Quando a vejo passar, franzina e leve,
mais delicada e frágil que as verbenas,
penso que aquele traje ocultar deve
a rainha grácil das açucenas.
Lírios, pérolas, lânguidas falenas,
rubis, Papoulas, flóculos de neve,
vêm nos trazer um fraco esboço apenas
do conjunto ideal da boca breve...
Dos seus olhos, mais puros que as estrelas,
a luz auroreal nos vêm falando
de cousas que é impossível concebê-las...
E quando passa, a rir, entre cortejos,
parece uma ilusão que vai boiando
num oceano de sonhos e desejos!
Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez
daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de
seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas
decassílabos:
UM SONETO D' AMOR
Anjo, mulher, demônio a quem venero,
sombra que amaldiçoo e que bendigo,
luz de meus olhos, infernal perigo,
causa de meu eterno desespero!
Se procuro esquecer-te é que mais quero
dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo,
e concentrando as lágrimas comigo
as minhas próprias carnes dilacero...
Do meu profundo amor sempre a falar-te
encontrarás o espectro solitário
disperso, a soluçar por toda a parte!
E se em teu peito a compaixão não medra,
eu irei pela senda do calvário
arrancando um soluço a cada pedra!
ALUCINADO
Ardendo em chamas de infernal cratera,
ao ver-te o corpo escultural, divino,
sinto rugir-me n'alma uma pantera
que ladra contra Deus e o meu destino...
Tu és a flor em plena primavera
eu sou o mendigo, o verme pequenino...
Deixa rolar no abismo da quimera
a paixão deste amor, que não domino.
Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia,
quando houveres baixado à campa fria,
na febre dos desejos indomados,
irei partindo o mármore das lousas,
visitar o mistério em que repousas
para beijar-te... os ossas descarnados!
Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:
O poeta é como a águia, anseia o infinito,
o olhar na luz da ideia eternamente fito,
desdenha o mundo vil e a existência ilusória,
e voa e cai e morre olhando o sol da glória
Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrínio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram...
Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o
Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez
houvesse desaparecido para todo o sempre.
Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos,
foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante
tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte?
"Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura
Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta de
A Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen,
esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias.
Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás,
segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou
. De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado
quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de
sua única e velha calça, em petição de miséria...
Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos
na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos
pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem
devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas
haviam desaparecido!
Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo,
ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem,
mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia
temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro
desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi,
aterrorizado, quando criança.
No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia
todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade,
ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como
a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de
uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como
a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea,
mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões,
diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos
e lhe beijar o pó das sandálias...
Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais
lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado
pela Mademoiselle Ibis:
VISÃO NOTURNA
Espairecendo incauta e descuidada
à fraca luz da lâmpada indecisa,
a cada passo um raio de alvorada
ilumina o lugar onde ela pisa...
Na mórbida indolência que desliza
a sua forma clássica, esmerada,
lembra um cisne de luar que se eteriza
no mar de luz da esfera constelada.
Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias
fazendo recordar dos grandes sábios
as cavernosas órbitas sombrias...
E as suas frases dúlcidas, singelas,
cada palavra que lhe sai dos lábios,
vou transcrevendo em sílabas de estrelas!
Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga,
quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha
grande valor.
Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao
som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta,
em chorosa surdina...
Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência
Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de
Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado
aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou
nossa cidade:
FORTALEZA
Lá, sob um claro céu de azul-turquesa,
Onde o sol seu tesouro em luz descerra,
Lá fulge a legendária Fortaleza,
Como um raro brilhante sobre a Terra.
Como um sacro penhor da Natureza,
Como um beijo auroral que a vida encerra,
Longínqua e bela, a lânguida princesa,
Arfando o peito, geme e os olhos cerra.
Porque nos batem temporais medonhos
E tivemos no mundo a mesma sorte,
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio
É ter a paz na comunhão da Morte,
Dormindo em sete palmos do teu seio...
Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.
Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento poético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adágios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça, 1992, uma memória histórica de nossa cidade.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra.
*
De acordo com minha amiga Isabel Pires, que foi quem conseguiu a foto da caixa das bolachas Jacob, a marca era Irlandesa e curiosamente, vendida nas mercearias da antiga Fortaleza.
Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.