Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Otacílio de Azevedo
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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segunda-feira, 5 de julho de 2021

Das Antigas - Os carregadores de Quimoas

Otacílio de Azevedo, em seu livro Fortaleza Descalça, nos conta que, antigamente, quando a capital cearense não tinha esgotos e quase não tinha calçamento, a não ser nas proximidades da Praça do do Ferreira, era costume de quase todas as residências encher de detritos fecais enormes barris de madeira (cuja exclusividade de fabricação parecia pertencer a Samuel Carão) e mandarem atirar o malcheiroso conteúdo nas proximidades da praia. Eram levados à cabeça por homens acostumados a esse anti-higiênico mister. Sim, acreditem!
Não faltava gente para executar esse malcheiroso trabalho de limpeza.  Em troca de algumas poucas moedas, os desempregados e sem tetos passavam de casa em casa recolhendo os restos da digestão dos outros.  Desciam rua abaixo, em direção ao mar, carregando na cabeça a fetidez da riqueza.  Muitos tinham que se embriagar, para poder suportar aquele trabalho sujo. 

Quimoeiro na antiga rua Formosa (Barão do Rio Branco) em 1915.

E lá saiam, rua afora, os Carregadores de Quimoas (era o nome que se dava ao depósito), enchendo da maior fedentina os lugares por onde passavam. Aquele horrendo vasilhame era uma séria ameaça não só à saúde, mas também aos brios de uma província que se dizia civilizada.

Cruzavam-se nas ruas os estranhos carregadores. E quando, cansados e bêbados, descansavam a barrica nas calçadas ou num providencial batente que lhes servisse de apoio…

À passagem dos quimoeiros havia grandes correrias, de homens, mulheres e crianças agarradas e arrastadas pelos pais. Portas e janelas fechavam-se com estrépito.
Quimoeiro na rua Floriano Peixoto, antiga rua Pitombeira
na década de 20.

Num tom de certo deboche, recheado de adjetivos substantivados, Otacílio de Azevedo narra o triste episódio de “Pisa-Macio”, um dos mais populares carregadores daquele malcheiroso lixo. 
"Certa ocasião, o “Pisa-Macio”, um dos mais populares quimoeiros, sujeito baixo e entroncado, amarelo, com profundas olheiras arroxeadas, passando com uma quimoa frente à Santa Casa de Misericórdia, quase morreu asfixiado; é que o vasilhame, muito velho e cheio demais, deslocou o seu fundo. A cabeça da vítima mergulhou completamente na matéria fétida. Diante daquela terrível situação, o infeliz corria, caía e levantava-se às tontas com a cabeça coberta pela barrica. Uma freira da Santa Casa, apiedada, arranjou dois trabalhadores que tiraram da cabeça do desgraçado, aos pedaços, a barrica arrebentada. A freira levou a vítima e mandou dar-lhe uma lavagem na cabeça. Três dias depois, o “Pisa-Macio” era cadáver."

Quimoeiro na então rua Pitombeira, atual Floriano Peixoto.

Ladeira do Gasômetro - Arquivo Nirez

De onde quer que partissem, os quimoeiros passavam obrigatoriamente pela frente da Santa Casa, descendo o calçamento que dava no velho Gasômetro, rumo à praia. Ali chegando, o fétido carregamento era atirado ao mar, a barrica lavada e o homem voltava, passando pela antiga Rua Formosa, hoje Barão do Rio Branco.

Matéria do Jornal A Razão de 22 de fevereiro de 1930


Do tempo dos
"Tigres" 


Talvez você não saiba, mas essa "prática" vem desde o Brasil Império. Sim, durante o Brasil Império, o país era o maior território escravagista do Ocidente, com quase 5 milhões de africanos escravizados. Tal número representa cerca de 40% do total embarcado para as Américas.

Com a mão de obra escrava sendo utilizada em larga escala, foram os cativos, apelidados de "tigres", os responsáveis pelo recolhimento e despejo da urina e fezes de muitos moradores das cidades durante cerca de 300 anos.

Nessa época, a maior parte das casas não contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em penicos e outros recipientes de metal ou porcelana. Esses objetos ficavam sob as camas ou em armários até a manhã seguinte, quando eram esvaziados em grandes tonéis que comportavam todos os dejetos dos moradores da casa. Os grandes tonéis, por sua vez, eram carregados nas costas por escravos, que os levavam até o mar ou a algum rio e por lá os despejavam.
Parte do conteúdo, que continha ureia e amônia, vazava dos tonéis e deixava marcas brancas sobre a pele negra, parecidas com listras. Por essa reação química, as marcas se pareciam com as do animal — daí o apelido em tom pejorativo dos "tigres" ou "tigrados".

O cheiro dos tonéis, obviamente, não era agradável e fazia com que as pessoas não se aproximassem dos "tigres" enquanto os carregavam.

A pele ficava listrada, com alternância de faixas pretas e outras descoloridas pela ação química dos dejetos. 





Otacílio de Azevedo, In: Fortaleza Descalça – Coleção Alagadiço Novo – Universidade Federal do Ceará – UFC – 2ª edição – 1992. / BBC News|Brasil


quinta-feira, 16 de março de 2017

Raimundo Varão - Por Otacílio de Azevedo



O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado, a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol, com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês... 
Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica. 
Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas, olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo. Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que, nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los com seu nome, para não lhes macular a alvura. 
No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...


Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava! 
Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que "seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela primeira vez, se apaixonara! 


Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc. 
Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram iguaizinhos aos meus! 

Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso, porque seu único alimento era bolachinhas Jacob* e cerveja... 

Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom, meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos... 


Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle Ibis": 


Quando a vejo passar, franzina e leve, 
mais delicada e frágil que as verbenas, 
penso que aquele traje ocultar deve 
a rainha grácil das açucenas. 

Lírios, pérolas, lânguidas falenas, 
rubis, Papoulas, flóculos de neve,
vêm nos trazer um fraco esboço apenas 
do conjunto ideal da boca breve... 


Dos seus olhos, mais puros que as estrelas, 
a luz auroreal nos vêm falando 
de cousas que é impossível concebê-las... 

E quando passa, a rir, entre cortejos, 
parece uma ilusão que vai boiando 
num oceano de sonhos e desejos! 

Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas decassílabos: 


UM SONETO D' AMOR 

Anjo, mulher, demônio a quem venero, 
sombra que amaldiçoo e que bendigo, 
luz de meus olhos, infernal perigo, 
causa de meu eterno desespero! 

Se procuro esquecer-te é que mais quero 
dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo, 
e concentrando as lágrimas comigo 
as minhas próprias carnes dilacero... 

Do meu profundo amor sempre a falar-te 
encontrarás o espectro solitário 
disperso, a soluçar por toda a parte! 

E se em teu peito a compaixão não medra, 
eu irei pela senda do calvário 
arrancando um soluço a cada pedra! 

ALUCINADO 

Ardendo em chamas de infernal cratera, 
ao ver-te o corpo escultural, divino, 
sinto rugir-me n'alma uma pantera 
que ladra contra Deus e o meu destino... 

Tu és a flor em plena primavera 
eu sou o mendigo, o verme pequenino... 
Deixa rolar no abismo da quimera 
a paixão deste amor, que não domino. 

Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia, 
quando houveres baixado à campa fria, 
na febre dos desejos indomados, 

irei partindo o mármore das lousas,
visitar o mistério em que repousas
para beijar-te... os ossas descarnados!

Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:

O poeta é como a águia, anseia o infinito,
o olhar na luz da ideia eternamente fito,
desdenha o mundo vil e a existência ilusória,

e voa e cai e morre olhando o sol da glória



Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrí­nio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram... 

Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez houvesse desaparecido para todo o sempre. 
Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos, foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte? "Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta de A Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen, esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias. 



Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás, segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou . De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de sua única e velha calça, em petição de miséria... 

Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas haviam desaparecido! 

Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo, ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem, mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi, aterrorizado, quando criança. 
No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade, ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea, mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões, diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos e lhe beijar o pó das sandálias... 
Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado pela Mademoiselle Ibis: 


VISÃO NOTURNA 

Espairecendo incauta e descuidada 
à fraca luz da lâmpada indecisa, 
a cada passo um raio de alvorada 
ilumina o lugar onde ela pisa... 

Na mórbida indolência que desliza 
a sua forma clássica, esmerada, 
lembra um cisne de luar que se eteriza 
no mar de luz da esfera constelada. 

Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias 
fazendo recordar dos grandes sábios 
as cavernosas órbitas sombrias...

E as suas frases dúlcidas, singelas, 
cada palavra que lhe sai dos lábios, 
vou transcrevendo em sílabas de estrelas! 

Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga, quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha grande valor. 
Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta, em chorosa surdina... 
Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou nossa cidade: 


FORTALEZA 

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...



Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.

Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento po­ético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adá­gios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça1992, uma memória histórica de nossa cidade.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra




* De acordo com minha amiga Isabel Pires, que foi quem conseguiu a foto da caixa das bolachas Jacob, a marca era Irlandesa e curiosamente,  vendida nas mercearias da antiga Fortaleza.


Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.

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